problema da identidade vincula-se, historicamente, a uma miscelânia de interpretações. Aspectos sociais, culturais, filosóficos, fisiológicos e psicológicos fomentam o 1 O trabalho apresentado é continuidade da pesquisa intitula Übermensch nietzschiano e o cristianismo: estudos sobre a filosofia da religião em Nietzsche. Para nos orientarmos sobre as chamadas das obras nietzschianas, recorreremos a organização do original sugerida pela edição das Obras Completas de Colli/Montinari em Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. München/Berlin/New York: dtv/Walter de Gruyter & Co., 1988. As demais obras serão apresentadas segundo as normas técnicas brasileiras. debate sobre a questão. Grosso modo, podemos compreender a identidade como sendo uma percepção de sujeito, ou de pessoa, que se sustenta por uma estrutura racional, ou melhor, por uma unidade psicológica constituída em um determinado espaço tempo. Nietzsche, por sua vez, enquanto extemporâneo identifica no escopo do problema características inerentes a formação da identidade ao longo do processo histórico. Nesse viés, convém-nos a interpretação de Jacques ao afirmar que "a importância conferida ao estudo da identidade foi variável ao longo da trajetória do conhecimento humano, acompanhando a relevância atribuída à individualidade e às expressões do eu nos diferentes períodos históricos" 2 . Senão vejamos: a) a antiguidade contribuiu com a metafísica valorando a noção de interioridade. A máxima "conhece-te a ti mesmo" 3 como norteamento. Com isso, estruturando "a composição do caráter enquanto representação da consciência, que definem a noção grega de persona" 4 o diagnóstico nietzschiano indica que foi a busca desenfreada pela salvação da alma, propugnada pelos primeiros filósofos, que conduziu tal encaminhamento, preliminar à emergência do cristianismo. A preocupação com a permanência da identidade pessoal é o que levou o . Além disso, possuindo na arte o impulso de criação/destruição e a manifestação da vida tal como compreendida. Tal concepção, por sua vez, sofreu influência da noção cristã de Pessoa de forma a perdurar até seu declínio com o enfraquecimento da interpretação dual de mundo (transcendente e imanente); conjuntamente, o retorno do humano ao centro das questões filosóficas e o surgimento das revoluções científicas. Em Nietzsche é apresentado uma reinterpretação de tais fatos. O estado de conservação da vida imposto pela caracterização socrático-platônica, posteriormente, apropriado pelo cristianismo alicerçam, segundo seu entendimento, uma mediocridade moral e cultural. De acordo com Onate, Nesse sentido, importante salientarmos que no percurso de criação de domínios que o ser humano se encontra inserido a ciência, apesar de possuir papel preponderante para uma possível autenticidade do humano, acaba por se apoderar dos mesmos valores da tradição. Em outras palavras, Nietzsche se encontra na contramão da valoração histórico-cultural. A partir de sua compreensão, genealogicamente, nossa noção de identidade, em particular, nossa identidade pessoal não se deve à ideia grega de interioridade sendo a máxima "nosce te ipsum [conhece-te a ti mesmo] a fórmula para a destruição, esquecer-se, mal entender-se, empequenecer, estreitar, mediocrizar-se [...] Expresso moralmente: amar o próximo, viver para outros e outras coisas pode ser a medida protetora para a conservação da mais dura subjetividade" 6 . Nossa identidade também não se deve ao domínio do conhecimento de si, tão pouco ao conhecimento científico, e sim, ao desdobramento das escolhas e ações que nos compõe enquanto pessoas; b) a modernidade proporcionou como marco das reflexões sobre o problema da identidade a questão da subjetividade 7 . O cogito ergo sum de Descartes tornou-se o slogan de uma reflexão absoluta do sujeito sobre a interioridade. O sujeito não mais pertence ao mundo, mas torna-se sujeito no mundo. Radicalizando com isso a significação de humano baseada na problemática relação corpo e alma. Todavia, segundo a interpretação nietzschiana, Descartes é compreendido como "superficial" 8 haja vista que o pensador francês, ao elaborar sua filosofia valorizando apenas aspectos mentais, desconsidera aspectos (psicológicos, sociológicos e fisiológicos) intrínsecos à formação da identidade do ser humano. Além disso, diferentemente da compreensão cartesiana, Nietzsche não promove o dualismo corpo e alma onde, para o filósofo, "corpo sou eu inteiramente, e nada mais, e alma é apenas uma palavra para um algo no corpo". 9 6 EH/EH, Por que sou tão inteligente, § 9. 7 O problema da subjetividade em Nietzsche que pretendemos abordar é direcionada particularmente a sua crítica a Descartes e Kant como expoentes da modernidade. Queremos destacar que o problema em Nietzsche,que parte de uma investigação genealógica,não é descartado em sua fase intermediária.Ao contrário, demonstra inseridono decorrer de sua filosofia apesar de possui maior expressividade na fase tardia de sua produção.Ao nosso ver, o problema compõe nossa especulação sobre a formação da identidade do ser humano de forma a contribuirpara nossa interpretação sobre o espírito livre. 8 JGB/BM, V, § 191. 9 Za/ZA, I, Dos desprezadores do corpo. Posteriormente, Kant postula a categorização a priori do "eu" como uma realidade simples, indivisível, independente e, portanto, fundamental. Nesse sentido, sua filosofia prima pela compreensão do sujeito enquanto ser consciente, quer dizer, prima por suas capacidades mentais. Enquanto Kant fundamenta-se na razão, Nietzsche, por sua vez, interpreta a consciência como um instrumento de segunda ordem valorando o corpo (Leib) como instrumento de primeira ordem. O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor. Instrumento de teu corpo é também tua pequena razão que chamas de "espírito", meu irmão, um pequeno instrumento e brinquedo de tua grande razão. "Eu", dizes tu, e tens orgulho dessa palavra. A coisa maior, porém, em que não queres crer -é teu corpo e sua grande razão: essa não diz eu, mas faz Eu. 10 tudo nos leva a considerar que Nietzsche trilhou o caminho daquilo que seria conhecido como fenomenologia do corpo, na medida em que considerou que não há qualquer possibilidade de conhecimento imparcial, posto que a vida atravessa, determina e se revela em qualquer expressão do intelecto humano. A partir da investigação dos fenômenos vivenciados no corpo faz-se possível lançar um vislumbre sobre a ideia de mundo, sendo ainda viável descrever tal experiência sem que despenquemos no objetivismo científico ou mesmo no subjetivismo absoluto. O corpo é o fenômeno chave que nos possibilita falar com propriedade sobre a existência" A referida citação demonstra como Nietzsche se contrapõe as interpretações subjetivas (cartesianas e kantianas) do sujeito que imperavam na modernidade concebendo, desta forma, um novo ponto de reflexão interpretado como um processo de desumanização (Entmenchlichung), ou melhor, de retorno a natureza que começa a ficar mais evidente a partir de sua segunda consideração extemporânea intitulada Da utilidades e os convenientes da história para a vida na qual, segundo sua interpretação, o ser humano passa a tomar consciência do sentido histórico dos valores preponderantes à sua existência. Para Nietzsche, tratase do humano libertar-se do eixo da traição cultural, do vir a ser, consequentemente, negar os valores metafísicos e, por sua vez, valorizar a Terra, o corpo, o humano e suas experiências. Nesse sentido, cabe-nos a assertiva de , um impulso intrínseco ao ser humano que 12 Embora se encontre, na maioria das obras dos comentadores estrangeiros, a tradução de Wille zur Macht do alemão e demais idiomas para o português como vontade de poder, optou-se por manter a tradução de Wille zur Macht por vontade de potência, mantendo a primeira tradução apenas nas citações dos comentadores utilizados na pesquisa. A existência de uma dupla tradução no termo Macht para o português não compromete o Volume XXI Issue XI Version I 30 ( ) caracteriza a afirmação da vida e valorização dos instintos. Apesar das significativas contribuições para o problema da identidade ao longo da história, é com Locke que a questão passa a possuir uma interpretação específica. Ainda que o pensador inglês se aproprie dos mesmos fundamentos do pensamento de Descartes, no que tange ao isolamento dos conteúdos mentais da realidade física do sujeito, esse o faz de forma menos radicalizada. Para Locke, a identidade é uma relação de um para um. É a continuidade de pensamento que constitui a identidade pessoal do sujeito e afirma-se, de certa forma, hierarquicamente, pela consciência e pela memória. Para Locke, a consciência, como critério de identidade, não deve sofrer interrupção cabendo a memória tornar "a maioria de nós consciente de nossa existência continuada ao longo do tempo" 13 . Tal definição endossa a afirmativa lockena de que a memória "é tão necessária em todas as partes e condições da vida, e há tão pouco que se possa fazer sem ela que não devemos temer que ela se torne fraca e inútil" 14 . Corrobora com a interpretação lockiana, ainda que com a ressalva de não considerar uma hierarquização existente entre consciência e memória o posicionamento huminiano. Segundo Hume, "apenas a memória nos faz conhecer a continuidade e a extensão [de] sucessão de percepções, devemos considerá-la, sobretudo por essa razão, como a fonte da identidade pessoal" 15 . Contudo, para Nietzsche, tão importante quanto a memória é o esquecimento 16 . Ambos atuam enquanto forças provenientes da vontade de poder, e como impulso intrínseco ao humano, constituem sua unidade enquanto sujeito. Para Nietzsche, "esquecer não é uma simples vis inertiae [força inercial], como creem os superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em nossa consciência" 17 significado da expressão. A opção por manter a tradução vontade de poder foi definida em detrimento das contextualizações da maioria dos comentadores e tradutores brasileiros pesquisados 13 PARFIT, D, 1984, p. 205. 14 ; e c) a pósmodernidade especula uma gama de interpretações sobre o problema da identidade, uma espécie de ramificação da filosofia do sujeito. Pensadores contemporâneos despontam suas críticas ao problema da identidade abordando um viés hermenêutico/ narrativo sobre o problema no qual ser pessoa é encontrar-se num espaço moral que estabelece os ditames de sua auto interpretação, quer dizer, "saber quem é você é estar orientado num espaço moral, um espaço no qual aparecem questões sobre o que é o bem e o mal, o que vale e não vale a pena fazer, o que tem ou não tem significado ou importância" 18 . Schechtmann, por sua vez, apresenta uma teoria antropológica da formação do sujeito ao descrever que quando se trata da identidade das pessoas "o desenvolvimento, por um lado, das capacidades cognitivas e agenciais e pelo outro de relações interpessoais cada vez mais complexas e autodirigidas e as interações não devem ser vistas como processos distintos, mas sim, como dois lados de uma mesma moeda" 19 Ou seja, no que tange ao problema da identidade percebemos na presente introdução não somente uma questão histórica, mas também, uma distinção na qual o conceito de identidade "passa a ser [qualificado] como identidade pessoal (atributos específicos do indivíduo) e/ou identidade social (atributos que assinalam a pertença a grupos ou categorias); esta última ainda recebe predicativos mais específicos como identidade étnica, religiosa, profissional, etc" . Isto é, a formação do sujeito encontra-se atrelada a infraestruturas sociais complexas que envolve questões morais, culturais e práticas normativas que se desenvolvem ao longo do tempo. O que se aproxima do sentido histórico compreendido por Nietzsche. Como veremos, a crítica nietzschiana se direciona diretamente aos valores estruturantes da sociedade nos quais, segundo o filósofo, são responsáveis pela consolidação de uma identidade cativa e gregária. # 20 . Cabe-nos ressaltar que não é objetivo do presente artigo retomar as correntes que debatem o problema da identidade, mas referenciandonos delas para especularmos sobre a seguinte questão: sendo o problema da identidade a caracterização que o sujeito possui de ter consciência de si, portanto, uma questão que envolve não somente os aspectos mentais (psicológicos e intelectuais), mas também, aspectos morais e fisiológicos, seria possível caracterizar o sujeito para além de tais juízos segundo a interpretação nietzschiana? No intuído de contribuir para o debate em questão relacionaremos a temática com a interpretação nietzschiana de espírito livre 21 A compreensão de espírito livre que pretendemos apresentar se contrapõe, inicialmente, aos princípios identitários e valores morais-metafísicosreligiosos, mas não nega o valor da cultura como meio de educação, elevação e afirmação do ser humano. O que fica evidenciado, em especial, nas obras Aurora, A gaia ciência e Além do bem e do mal. Contudo, a definição do tema que se pretende na presente pesquisa se faz no sentido de investigar a abordagem de Nietzsche a partir dos escritos de Humano demasiado humano. Portanto, procuraremos apresentar o apontamento de Nietzsche a favor da afirmação e valoração da vida a partir de sua compreensão de espírito livre frente aos valores vigentes na sociedade moderna de forma a contribuir para uma possível autonomia da identidade do humano. Sua filosofia nos proporcionará uma distinta reflexão sobre o problema proposto. Principalmente porque no que tange a interpretação nietzschiana, a formação da identidade sob o domínio da cultura na qual o poder político, a ciência, a arte e a religião são manifestações que perpetuam os valores morais-metafísicos-religiosos que, de acordo com sua filosofia, contribuíram para o ser humano perder sua identidade. II. Domínio da Cultura x a Autonomia da Identidade: O Ideal de Espírito Livre A noção de "Eu" (Self) enquanto princípio de investigação filosófica é uma especificação da modernidade. O sujeito que passa a ter consciência de si. Mas no que se refere ao ponto de vista nietzschiano o ser humano, historicamente, não se encontra livre para exercer tal autonomia. Sua crítica desponta para a necessidade do humano ser "[...] capaz de contradizer, ter boa consciência ao hostilizar o habitual, o tradicional e consagrado -isso é [...] o que há de verdadeiramente grande, novo e surpreendente em nossa cultura, o maior dos passos do espírito liberto" 22 não é uma preocupação teórica. Por esta razão não iremos aprofundar sobre a temática na presente pesquisa. Somente a partir de final de 1880 e, de modo mais enfático, a partir de 1885, é que Nietzsche elabora um pensamento sobre o niilismo. Portanto, somente na fase madura. Nesse sentido, optamos em delinear sua compreensão de espírito livre da fase intermediária (Freigeist, que possui uma liberdade negativa, de livramento dos valores da tradição) distinguindo-a da compreensão da fase tardia (der freie Geist, que possui uma tarefa preparatória para a transvaloração dos valores). 22 FW/GC, IV, § 297. . Ponto relevante, trata-se da modernidade ser marcada pela identidade dos valores morais-metafísicos-religiosos que começam a colapsar com a retomada do ser humano como centro das questões filosóficas. Contudo, o enfraquecimento dos valores não corresponde a seu aniquilamento e, com isso, o humano permanece na escuridão dos valores transcendentes, não conseguindo possuir uma identidade autêntica, pois caminha com os pesos da tradição que o faz estagnar permanecendo "morto de imortalidade" 23 A valorização da liberdade na formação da identidade do ser humano no que se refere à importância de "'dar estilo' a seu caráter" . Com isso, a crítica de Nietzsche aponta para estruturação dos valores transcendentais, a desejabilidade e a liberdade do humano. 24 é ponto preponderante da crítica nietzschiana. Haja vista que o humano se direcionou, culturalmente, para uma supervalorização da racionalidade, em outras palavras, a uma supremacia do logos, restringindo assim a dualidade dos impulsos (apolíneo e dionisíaco) inerentes à vida de forma a consolidar um ideal transcendente. Desde a antiguidade com o menosprezo da arte trágica 25 devido a ascensão do socratismo-platonismo-cristianismo; passando pela consolidação do cogito 26 de Descartes até a crise dos valores 27 do século XIX, o ser humano encontra-se preso, segundo Nietzsche, a herança da tradição consagrando, por assim dizer, a inautenticidade de sua identidade. É a partir da compreensão de ser senhor de suas próprias ações, de sua liberdade, que o ser humano se conduz para possibilidade de criar valores e legitimar sua identidade em um processo de afirmação da vida. Mas é possível o humano afirmar sua identidade para além da cultura? Sendo a própria cultura um conjunto de elementos que formam a identidade tanto do sujeito quanto de um determinado grupo social, não se trata de uma possível exclusão, e sim, segundo o entendimento nietzschiano, de uma tipificação 28 23 EH/EH, Assim falou Zaratustra, § 4. 24 FW/GC, IV, § 290. 25 Nietzsche, ao diagnosticar as potencialidades do ser humano e suas manifestações propensas a uma nova forma de valorar a vida, descreve a arte como uma das suas mais distintas afirmações. A arte como processo de afirmação da vida possui características inerentes em seu desempenho de transmitir significado à vida humana. No entanto, a diferenciação que existe entre a arte e a arte trágica para Nietzsche é que a arte trágica seria uma expressão possibilitada por meio de suas próprias máximas, sem imposições moralizadoras. 26 Apesar de Descartes formular seu pensamento com a pretensão de encontrar a verdade através do método investigativo compreendendo o pensar (cogito) como a primeira e distinta verdade e conservando, através da radicalização da dúvida, o impulso para o desenvolvimento da ciência acabou consolidando, ainda que inicialmente contrário aos valores da tradição, os mesmos princípios geradores da crença na verdade. 27 Ponto central para caracterizar o referido período, segundo Nietzsche, é definido como sendo a morte de Deus. Cabe-nos ressaltar que a morte de Deus, para Nietzsche, não constitui a negação de Deus, mas a morte de qualquer tipo de fundamento dogmático, verdade e valores absolutos, consolidando a ascensão do niilismo. . 28 Para elucidar tal tipologia, aponta-nos Silva (2008) que fator de suma importância nas obras de Nietzsche é sua compreensão sobre personagens históricos e literários para exemplificar suas ideias. Desta forma, sua problematização avança sobre as formas de valoração e seus tipos são apresentados como forma de Volume XXI Issue XI Version I 32 ( ) Ao buscar compreender a cultura da modernidade através de um processo investigativo, Nietzsche diagnostica dois determinados tipos de vida. De um lado, os espíritos livres caracterizados por uma boa consciência, e por isso, buscam afirmar a vida, libertando-se de dogmas e valores determinados e aceitando os impasses que a vida possa acarretar, sendo que através de seu "páthos da distância" 29 Dito de outro modo, significa dizer que a tradição despreza o corpo e estabelece o que é proveitoso para o humano, desconsiderando e ou aniquilando suas potencialidades em prol de uma verdade absoluta e "a todo custo" , dos conceitos modernos e da moralidade tradicional da cultura, cria valores legitimando a autenticidade de sua identidade. Do outro lado, a tradição como ocasionadora do processo de decadência da sociedade, criadora de espíritos aprisionados que proporciona uma vida decadente a seus adeptos caracterizada por uma vontade fraca, uma identidade cativa, uma má consciência e um sentimento de culpabilidade com valores determinados, conveniente a sua estruturação. Desse modo, Nietzsche compreende que os valores da tradição são classificados como detentores de uma cultura marcada pela propensão à decadência e pela não aceitação dos intrínsecos ao ser humano. 30 exemplificação. Com esse método, Nietzsche descreve através de sua tipologia uma abrangente compreensão do ser humano. Este apontamento figura tanto no campo filosófico, quanto cultural, psicológico e moral. No desenvolver de sua filosofia, Nietzsche busca exemplificar princípios valorativos que representam diferentes naturezas humanas, sempre possíveis de transformação. Ao longo de suas obras, hierarquicamente, foi dividido os tipos em dois grupos: o primeiro apresenta o tipo forte, afirmativo, que exerce sua vontade de poder ascendente com menor reatividade no comportamento valorizando seus instintos. Como exemplo, Nietzsche apresenta o gênio, o aristocrata, o nobre, o homem superior, o espírito livre e como proposta o além-do-homem. O segundo é caracterizado por um tipo fraco, negativo, possuidor de uma vontade de poder descendente e possuidor de um sentimento de ressentimento. Exemplificando, Nietzsche descreve os escravos, a plebe, os servos, os animais de rebanho, o último homem. É importante salientar que para compreendermos a tipologia nietzscheana não devemos compreendê-la sob os olhos da moral da tradição (socrático-judaicocristã), mas sobre a concepção de valorar os instintos intrínsecos ao ser humano sem amarras humanizadas (ciência, educação, formação, por exemplo) e suas relações instrumentalizadas. Nesse contexto, sua crítica se apresenta como uma transvaloração dos valores supremos, diferenciando-se das antigas doutrinas que edificaram a formação do mundo de forma a valorizar o espírito livre como figura de exceção. Isto é, como postulado a autenticidade identitária da vida humana. , diferenciando-se do espírito livre. Segundo Giacoia Junior, "o corpo pode servir de paradigma para a constituição de uma hipótese sobre a subjetividade, muito mais rica e plausível do que aquela formulada pela metafísica e 29 GM/GM, I, § 2. 30 . Esses erros (Deus, justiça, bem-estar, facilitação da vida, amor ao próximo?), ou melhor, essas instâncias fora do corpo são apresentadas por Nietzsche como insustentáveis e são reconhecidas como estruturantes de uma cultura inferior, que fizeram com que o mundo verdadeiro se tornasse uma fábula. E devido aos valores da identidade social, o ser humano está sujeito a se submeter a estes erros impostos pela tradição. Todavia, cabe-nos ressaltar que em A gaia ciência, afirma Nietzsche que estes mesmos princípios também aludem ao posicionamento de homens de uma "cultura superior" 35 Pesquisadores do conhecimento, ímpios inimigos da metafísica, nós próprios, ainda acendemos fogo na fogueira acesa por milenária crença, pela fé cristã, crença que foi também a de Platão, para quem o verdadeiro se identifica com Deus e toda a verdade é divina? Mas se isso se torna cada vez mais inacreditável? Se nada já se revela divino, excetuando o erro, a cegueira e a mentira?? e se pode prever-se que o próprio Deus foi a nossa maior mentira? . 36 Embora se evidencie um rompimento de Nietzsche com Schopenhauer e Wagner antes dos escritos de 1874 é posterior aos escritos de Schopenhauer como educador, que fica mais evidente o processo de ruptura entre o filósofo e seus predecessores. E com a publicação de Humano demasiado humano o conceito fica evidente em sua obra. Ao diagnosticar o posicionamento da ciência frente os valores da sociedade, Nietzsche abandona . O que Nietzsche busca com esse combate aos valores metafísicos é que o ser humano passe a se reportar à Terra e valorar o corpo tendo-os como meta e não ao transcendente como determinado pela tradição. Nietzsche mostra com esse posicionamento que homens de uma cultura superior estão propensos a se tornarem espíritos livres em razão de sua natureza aristocrática, devido sua compreensão hierarquizada da vida. Entretanto, como foi apresentado, o que prevalece na cultura moderna é que a aristocracia é suprimida pela ideia de igualdade, passividade e bem-estar entre os homens possuidores de instinto de rebanho. Mas afinal, quando e por que se estabelece o conceito de espírito livre em Nietzsche? 37 35 Entende-se por cultura superior uma cultura desvinculada dos costumes e da moral da tradição, e não como superior a outro tipo de cultura. Para Nietzsche, é uma cultura classificada como sendo seus detentores os espíritos livres, devido a formação de espírito elevada. Na definição nietzschiana, cultura não se remete aos hábitos e crenças da humanidade, mas sim alude ao significado de educação, de formação, de modo de vida. Daí sua separação entre cultura superior e cultura inferior. Essa afirmação fica evidenciada na obra Crepúsculo dos ídolos, onde Nietzsche adverte sobre os perigos que a sociedade alemã está sujeitada com a deficiência da formação dos seus contemporâneos. Segundo Dias (2003), Nietzsche, em sua conferência "Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino", relata sobre a inseparável relação que existe entre cultura e educação, entretanto faz-se necessário que os indivíduos aprendessem determinadas regras, adquirindo certos hábitos, começando a educarem a si mesmos e contra si mesmos, ou melhor, contra a educação que lhes foi inculcada, devido à educação recebida nas escolas alemãs partir de uma concepção historicista que dava origem a uma pseudocultura. 36 FW/GC, V, § 344. 37 Ao abandonar seu projeto inicial, Nietzsche não tem mais o renascimento de uma cultura trágica, fundada na arte como objetivo. Segundo Vattimo (1990), Nietzsche, em Humano demasiado humano, passa a se ocupar mais da moral, entendida em um sentido global como sujeição da vida a valores considerados transcendentes. seu projeto primário de ter o gênio (apolíneo/dionisíaco) como um referencial para vida, e apresenta um rompimento definitivo com seus mestres. Para Nietzsche, fazia-se necessária a existência de um tipo que se sobrepusesse a condição do homem moderno para rebelar-se contra os conceitos e tradições de sua época, possuidor de um espírito livre, tal como o filósofo o descreve no capítulo intitulado Sinais de cultura superior e inferior. É chamado de espírito livre aquele que pensa de modo diverso do que se esperaria com base em sua procedência, seu meio, sua posição e função, ou com base nas opiniões que predominam em seu tempo. Ele é a exceção, os espíritos cativos são a regra; estes lhe objetam que seus princípios têm origem na ânsia de ser notado ou até mesmo levam à inferência de atos livres, isto é, inconciliáveis com a moral cativa. [?] De resto, não é próprio da essência do espírito livre ter opiniões mais corretas, mas sim ter se libertado da tradição, com felicidade ou com fracasso. Normalmente, porém, ele terá ao seu lado a verdade, ou pelo menor o espírito da busca da verdade: ele exige razões, os outros, fé. 38 O espírito livre de Nietzsche, ao longo de suas obras, aponta para três distintos posicionamentos que, segundo D'Iorio, seriam o "rompimento, a evolução e a continuidade" 39 . Ele é um aniquilador dos valores e costumes preestabelecidos pela tradição, os quais, devido ao socratismo-platonismo-cristianismo, a sociedade moderna encontrava-se inserida. Ademais, é justamente contra a inalterabilidade que o homem moderno abrangia em seus costumes, sua igualdade entre os homens e sua moral, ou seja, sua submissão às imposições da tradição que o espírito livre assume sua individualidade. O espírito livre é um tipo de homem superior, um tipo nobre que questiona os princípios de criação dos valores. Seu posicionamento perante a cultura da modernidade o conduz a afirmar que com a decadência da aristocracia, na relação "senhor e escravo", predominara o conceito moral de igualdade abarcado pela democracia, obtendo assim "'a utilidade', 'o esquecimento', 'o hábito' e por fim 'o erro', tudo servindo de base a uma valoração da qual o homem superior até agora teve orgulho, como se fosse um privilégio do próprio homem" 40 Em outras palavras, passa-se a ter, na constatação nietzschiana, uma definição dos conceitos de valores que regem a sociedade moderna contrária . 38 (MAI/HHI, V, § 225). A aos apreciados por uma sociedade aristocrática, em que as definições de "bom" e "ruim" possuem outro sentido. O que podemos constatar é que os conceitos passaram por uma inversão ao longo da história da tradição. A moralidade, ao igualar os homens, fez com que o homem fraco possuidor de instinto de rebanho passasse a possuir o mesmo grau de importância e direitos que o nobre aristocrata, o qual Nietzsche enxergava como sendo um determinador de valores. Enquanto o conceito de bom pertencente ao homem moderno é interpretado como sinônimo de apropriado, adequado, correto e mais, ruim é definido como mau, desprezível, repudiável. Na concepção nietzschiana, "os dois valores contrapostos, "bom e ruim", "bom e mau", travaram na Terra uma luta terrível, milenar; e embora o segundo valor há muito predominante, ainda agora não faltam lugares em que a luta não foi decidida" 41 . Ao se contrapor a tradição cultural, o espírito livre é interpretado pela sociedade moderna como ruim por não se submeter à igualdade de uma moral fraca. Por isso, para o filósofo, o espírito livre ao procurar se desvencilhar dos paradigmas da tradição se encontra além do bem e do mal, em virtude de sua busca pelo esclarecimento. Ao rejeitar os valores impostos pela tradição, ele rejeita toda forma de hierarquização dos valores impostos como consolidantes da identidade de um sujeito moral. De acordo com Nietzsche, "para o espírito livre o 'devoto do conhecimento', a pia fraus é ainda mais ofensiva ao gosto (à sua "devoção") que a impia fraus" 42 O espírito livre se opõe à tradição cultural do cristianismo, à moralidade e seu otimismo socrático devido seus posicionamentos apresentarem-se como o possível caminho para afirmar a vida através de conceitos predeterminados que, na visão do filósofo, não valorizam a vida em sua essência, ou seja, não permitem a autonomia do humano, concomitantemente, a autenticidade de sua identidade. Desse modo, o filósofo percebe no espírito livre uma nova perspectiva , caracterizando um profundo repúdio a qualquer manifestação de caráter moralizador. 41 GM/GM, III, § 16. 42 JGB/BM, IV, § 105. "Fraude piedosa", "mentira piedosa". Logo, impia fraus é a mentira mal-intencionada. Segundo Frezzatti (2008), o termo aparece na filosofia nietzschiana a partir dos escritos de 1879. Seu significado é apontado como uma justificativa para processo de transformação cultural do comportamento do povo em uma atitude automática. Nietzsche descreve a pia fraus de duas formas distintas. A primeira, recusando-a e compreendendo-a como um método de decadência que anula os instintos do ser humano, enfraquecendo-o. Diferentemente, a segunda é entendida como uma forma necessária para manutenção e garantia do desenvolvimento do processo cultural devido sua ligação com o conceito de moralidade. Sendo a moral entendida como um "melhoramento" do ser humano. Contudo, Nietzsche compreende que o enfraquecimento dos instintos, naperspectiva da moral, culturalmente, é entendido como um melhoramento. É a essa condição que Nietzsche denomina pia fraus. Na compreensão de Frezzatti, presente em todos os filósofos e sacerdotes que "melhoraram" a humanidade. para uma possível valoração. Para Nietzsche, o ser humano deve ser o único senhor de suas vontades, sendo esta disposição denominada "a grande saúdeuma tal que não apenas se tem, mas constantemente se adquire e é preciso adquirir, pois sempre de novo se abandona e é preciso abandonar" 43 Com efeito, nos escritos de 1876, Nietzsche não somente se intitula um espírito livre, mas também seus contemporâneos, os devidamente esclarecidos, como espíritos livres; devido suas propensões para tal nomeação, através das quais "a maravilhosa cultura dos provençais se distingue de todas as culturas equívocas" , ou seja, uma vontade comprometida com sua afirmação de identidade. # 44 . A criação do espírito livre foi efetuada para que servisse de companhia ao filósofo na empreitada contra os desígnios da cultura vigente, objetivando uma anulação da moralidade até então instituída com a sua teorização estruturada pelo socratismo e com o dogmatismo do cristianismo. Segundo Nietzsche, antes de sua formulação, "esses espíritos livres, nunca existiram" 45 43 FW/GC, V, § 382. 44 EH/EH, A gaia ciência, § 1. 45 MAI/HHI, Prólogo, § 2. , ou seja, não havia um apontamento para esses espíritos livres antes de sua criação realizada pelo filósofo que foi objetivada para acompanhá-lo em sua guerra solitária. Dessa forma, esses espíritos apresentam-se na modernidade como livres por não buscarem na eternidade imposta pela religião ou na tradição filosófica, na arte ou na ciência como sua vontade afirmadora da vida; embora se utilize desta última como caminho para o esclarecimento, possibilitando posicionar-se no mundo independentemente dos valores morais-metafísicosreligiosos, o que o espírito livre faz é criar uma dúvida em relação a qualquer conceito tido como absoluto. Esses conceitos, valorados e justificados pela religião e pela ciência como sendo a busca pela verdade, pelo conhecimento estruturado pelo otimismo socrático. Contextualizando tal problemática, Nietzsche descreve em um fragmento póstumo, 22 (28), da primavera/verão de 1887, que o homem não é somente conhecimento, o que Nietzsche faz é denominar as razões e os conceitos dessas manifestações (religião e ciência) como um processo para a decadência. O espírito livre é livre por razões de utilizar da ciência como caminho para desvencilhar-se da sujeição aos ideais que o próprio homem arquitetou, e não por viver conformado pelo conhecimento científico. Assim, a ciência se faz necessária para compreender a rigorosidade da busca pelo esclarecimento, sendo a cientificidade importante para o processo de compreensão do ser humano na história, entretanto não o compreende em sua totalidade. O valor de praticar com rigor, por algum tempo, uma ciência rigorosa não está propriamente em seus resultados: pois eles sempre serão uma gota ínfima, ante o mar das coisas dignas de saber. Mas isso produz um aumento de energia, de capacidade dedutiva, de tenacidade; aprendese a alcançar um fim de forma pertinente. Neste sentido é valioso [?]. 46 Nietzsche atribui ao caráter metodológico da ciência um aspecto positivo, em contraposição aos anseios do homem moderno e suas expectativas ainda alicerçadas em um conceito platônico-cristão. Entretanto, mesmo tendo a ciência sua autonomia frente aos paradigmas da sociedade, não deixou de ser influenciada pelo cristianismo. "Ao cristianismo, [...] devemos uma abundância de sentimentos profundamente excitados: para que eles não nos sufoquem, devemos invocar o espírito da ciência, que no geral nos faz um tanto mais frios e céticos, e arrefece a torrente inflamada da fé em verdades finais e definitivas" 47 . Nesse sentido, Nietzsche compreende que da ciência se deve manter um determinado distanciamento mesmo que ela tenha, num primeiro momento, um caráter positivo de libertação da tradição, pelo fato de possuir na modernidade uma fundamentação negativa 48 Podemos perceber que, com essa definição, o caminho adotado pelo filósofo na busca rigorosa pelo conhecimento o conduz a uma condição de solidão . 49 em consequência de sua dura e difícil exigência de afirmação da vida perante os erros da humanidade. Segundo Araldi, para Nietzsche, os espíritos livres, por serem imorais tal qual o próprio filósofo, são amigos da solidão. Tal afirmação é descrita por Nietzsche em Humano, demasiado humano II, na seção "O andarilho e sua sombra", em que esse movimento de perder e encontrar a si mesmo como forma de afirmar a vida "é caracterizado por uma circularidade" 50 46 MAI/HHI, V, § 256. 47 MAI/HHI, V, § 244. 48 Em nota, Araldi (2004, p. 242) indica que, em A gaia ciência, Nietzsche descreve o conhecimento científico de seu período como um processo distante de alcançar "as forças artísticas e a sabedoria prática da vida". 49 Esta condição de solidão, para compreender o processo de afirmação da vida, fica evidenciada na filosofia de Nietzsche com maior nitidez a partir dos escritos deAssim falou Zaratustra. 50 ARALDI, 2004, p. 264. A ideia de circularidade realizada pelo espírito livre não deve ser remetida à ideia do eterno retorno do alémdohomem. Enquanto o primeiro caracteriza-se por uma autocompreensão, uma autodeterminação de se desprender do passado, seja ele natural, de crenças ou hábitos, o segundo define-se por uma atitude de viver a vida em sua totalidade de tal forma que se queira vivê-la infinitas vezes. que o espírito livre deve realizar de tempos em tempos. Ademais, o espírito livre não dá continuidade aos mesmos valores da tradição e ou da ciência, mas cria valores possibilitando uma desantropomorfização do humano de forma a possibilitar sua autonomia, consequentemente, legitimando uma identidade autêntica. Ou seja, seria capaz de perceber e compreender a proposta nietzschiana de valorização do corpo e de fidelidade a Terra ao exercer sua vontade de poder. Desse modo, percebemos que, durante o período caracterizado pelo espírito livre, o conceito de niilismo 51 começa a ser percebido na filosofia nietzschiana. Nietzsche, ao compreender a ameaça que o espírito livre possuíra de se prender na negatividade do seu próprio rompimento com os erros da sociedade, descreve a necessidade de criar um tipo superior ao homem que lhe permitisse afirmar-se e "preservar-se: a mais dura prova de independência" 52 . O espírito livre é compreendido, portanto, como precursor dos filósofos do futuro. Para Nietzsche, os filósofos do futuro, assim como os demais filósofos da história, buscariam defender seu posicionamento, entretanto não o fariam de forma dogmática, pois tal atitude seria contrária aos seus juízos. "Meu juízo é o meu juízo: dificilmente um outro tem direito a ele" 53 [?] preciso dizer que também eles serão espíritos livres, muito livres, esses filósofos do futuro -e que tão pouco serão apenas espíritos livres, porém algo mais, maior, mais alto, radicalmente outro, que não quer ser mal entendido e confundido? [?] algo diverso de "libres penseaurs", "liberi pensatori", "Freidenker" [livres pensadores], ou como quer que se chamem esses bravos defensores das "ideias modernas" . Dessa forma, esses filósofos do futuro são distintos dos "livres pensadores" da modernidade. # 54 Enquanto para Nietzsche os espíritos livres são os espíritos mais comunicativos que buscam se libertar de qualquer forma de dominação ou conceito dogmático, o livre pensador possui uma liberdade implicada nas mesmas fontes da moralidade tradicional que sobrepujava a modernidade. Dessa forma, mudavam-se os dominadores e não os seus embasamentos morais perante a humanidade. Esses livres pensadores são definidos por Nietzsche como os pensadores influenciados pelas ideias iluministas de que mesmo com a tentativa de rompimento com a tradição; com a passagem da crença em um Ser transcendente absoluto para uma crença . 55 51 É importante ressaltar que não podemos ter uma interpretação deste acontecimento durante este período do pensamento nietzschiano como finalizado, devido a não existir uma compreensão incondicional entre negação e destruição. Isso é que irá determinar a diferenciação de niilismo negativo do niilismo ativo no pensamento de Nietzsche, sendo mais perceptível em sua filosofia a partir dos escritos da fase tardia do pensador. 52 . Dessa forma, o posicionamento iluminista é chamado pelo filósofo em Aurora de "últimas ressonâncias do cristianismo da moral". 57 Para Nietzsche, o livre pensador, com suas ideias modernas, apresenta uma limitação ao homem por manter os ideais do cristianismo, mesmo se intitulando contrário aos seus dogmas. Ou seja, mesmo com a apresentação de uma tentativa de superação dos conceitos impostos pela tradição, os mesmos princípios de moralidade, definições de bem e mal, bom e ruim imperavam na estruturação das formulações do livre pensador sobre a definição de um tipo humano evoluído. Esses ideais de homens bons estruturado em bases cristãs mantiveram a humanidade mergulhada em uma falsa afirmação da vida, conservando-a inerte. Tal posicionamento constituiu para o filósofo como sendo "a maldição sobre a realidade, através dela a humanidade mesma tornou-se mendaz e falsa até seus instintos mais básicos [?]" . 58 toda manifestação do homem compreendida como forma de verdade . 56 # Considerações Finais . Enquanto crítico da cultura, Nietzsche propõe um combate aos princípios e valores característicos de uma identidade psicossocial que, teleologicamente, compôs a constituição de sujeito ao longo de dois mil anos como uma figura eterna. Além disso, sua filosofia nos proporciona especular sua compreensão sobre a fisiologia do humano como fundamento primeiro de uma identidade individual, autêntica e autônoma frente a uma cultura propensa à decadência. Ainda que o problema da identidade não incorpore os grandes temas do corpus nietzschiano, o pensador não negligencia sua importância enquanto categoria necessária de investigação. Sua crítica à consciência caracteriza-se por não haver, segundo sua compreensão, nenhum sentido ontológico ou racional, e sim, interpretativo no qual prevalece uma estruturação autorreferencial. Diferentemente da sua compreensão de má consciência ou consciência moral que descreve a ideia de consciência coletiva, de instinto de rebanho. O espírito livre não dá continuidade aos mesmos valores da religião e/ou da ciência, mas cria valores, referenciando-se desses, de forma a caracterizar um processo de desumanização (Entmenchlichung), de desmoralização (Entmoralisirung) combativo à instrumentalização das relações humanas. Dessa forma, o espírito livre enquanto proposta aos filósofos do futuro, seria capaz de perceber e compreender a meta proposta por Nietzsche, a fidelidade à Terra. Nesse ínterim, a definição de espírito livre, enquanto figura de exceção, demonstra-se dentro de sua filosofia como precursora da autenticidade do humano que busca exercer sua vontade de poder para defender sua autonomia independentemente da tradição ou do avanço científico, quer dizer, ainda que inserido no mesmo contexto histórico-cultural, não o faria de forma dogmática ou sistemática, pois tais atitudes seriam contrárias aos seus juízos, concomitantemente, a afirmação de sua identidade enquanto sujeito consciente de si. peloplatonismo" 31 .Paracompreendermosaimportância do corpo e sua relação com a consciênciano pensamento nietzschiano, partiremos do aforismaDo "gênio da espécie", de A gaia ciência, no qual oautor descreve sua posição de forma a enfatizar umapsicossocial-fisiologia do problema.O problema da consciência (ou, mais precisamente, dotorna-se consciente) só nos aparece quando começamos aentender em que medida poderíamos passar sem ela: eagora a fisiologia e os estudos dos animais nos colocamnesse começo de entendimento [...]. pois nós poderíamospensar, sentir, querer, recordar, poderíamos igualmente"agir" em todo sentido da palavra: e, não obstante, nadadisso precisaria "entrar na consciência" (como se dizfiguradamente). [...] Meu pensamento, como se vê, é que aconsciência não faz parte realmente da existência individualdo ser humano, mas antes daquilo que nele é naturezacomunitária e gregária; que, em consequência, apenas emligação com a utilidade comunitária e gregária ela sedesenvolveu sutilmente, e que, portanto, cada um de nós,com toda vontade que tenha de entender a si próprio damaneira mais individual possível, de "conhecer a simesmo",, sempre traz à consciência justamente o quepossui de individual, o que nele é "médio" -que nossospensamentos mesmo é continuamente suplantado ,digamos, pelo caráter da consciência -pelo "gênio daespécie" que nela domina -e traduzido de volta para aperspectiva gregária32.Desse modo, o corpo é compreendido porNietzsche como condição factual de identidadeindividual frente a sua crítica à consciência ou de torna-se consciente enquanto característica superficial deuma identidade psicossocial, coletiva e gregária na qualnão corresponde as particularidades do humano, e sim,as generalidades (a igualdade e a autoconservação,por exemplo) e aos erros do instinto de rebanho pois"assim é na vida social"33 .Mas no que tange o espírito livre, segundoAraldi, "ele julga poder progressivamente se subtrairaos erros, aos motivos e hábitos herdados queperfaziam (e ainda perfazem) a vida humana [?].Renunciando à vida ativa, a tudo, ou quase tudo o queos homens conferem valor?"3431 GIACOIA JUNIOR, 2001, p.59.32 FW/GC, V, § 354.33 KSA 9 [207]. 34 ARALDI, 2004, p. 247. demasiadamente humano propriamente, partindo dapremissa do pensamento de "liberdade, igualdade efraternidade" entre os homens, não questionam aorigem do bem, mas sim como conquistá-lo.Enfatizando o pensamento nietzschiano, Ribeiro afirmaque o posicionamento desses pensadores é regidopelas "falsas promessas do Iluminismo, que, aopretender-se como libertador [...] dos dogmas, dassuperstições e da metafísica, institui novas formas desubordinação (exploração, dominação, discriminação)através das ciências, [?] e do Estado" 5636Volume XXI Issue XI Version I)(no humano55 55 Importante ressaltarmos que o termo crença (Glaube) no discursonietzschiano não se limita à crença religiosa, mas abrange a ciência e JACQUES, 1998, p. 159. 3 EH/EH, Por que sou tão inteligente, § 9. 4 LOPES, 2002. TAYLOR, 1989, p. 28.19 SCHECHTMAN, 2014, p. 112. 20 JACQUES, 1998, p. 161. . 21 Não é nosso intuito trabalhar a compreensão feita pelo filósofo alemão sobre os espíritos livres na sua fase intermediária na busca por afirmar a vida, em face do niilismo afirmativo. Quando Nietzsche elabora a filosofia do espírito livre, a partir de 1876, o niilismo ainda © 2021 Global Journals Volume XXI Issue XI Version I 31 ( ) Free Spirit: A Nietzschian Approach to the Concept of Identity © 2021 Global JournalsFree Spirit: A Nietzschian Approach to the Concept of Identity * Niilismo, criação, aniquilamento: Nietzsche e a filosofia dos extremos. Ijuí: Unijuí ClademirAraldi Luís 2004 * Nietzsche -Philosophie de l D'Iorio ;Paulo OlieverPonton 2004 Dir.; Paris; Ulm esprit libre: presses de l"École Normale Supérieuere * Cultura e educação no pensamento de Nietzsche. 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