# Gramsci, Leitor de Marx Antonio Carlos Figueiredo Costa Resumo-No artigo é sugerida uma aproximação entre as proposições contidas nas teses do "jovem" Karl Marx (1818-1883) e do pensador italiano Antonio Gramsci (1891Gramsci ( -1937) ) em período de sua vida anterior ao cárcere fascista, ou seja, antes de 1926. Contrariamente a qualquer arroubo extemporâneo de minimizar o valor e a originalidade das obras de maturidade de Gramsci, este trabalho pretende assinalar a consistência teórica e a prática política amadurecida em um crisol de lutas, ambiente no qual foram lavrados os escritos anteriores aos 'Quaderni del carcere', obra considerada como uma atualização cabal das estratégias do marxismo para ação na contemporaneidade. Palavras-chave: antonio gramsci; karl marx; marxismo; cultura; praxis. # I. Introdução ste trabalho pretende oferecer algumas achegas ao entendimento das contribuições do intelectual marxista Antonio Gramsci (1891Gramsci ( -1937) ) em algumas análises e estratégias de luta sob viés do pensamento marxista que pretenderam fazer frente aos desafios do século XX, e que acabaram contribuindo para revigorar essa doutrina. As sociedades ocidentais vivenciadas por Gramsci apresentavam fenômenos sociais bastante diversos da época de Marx, apresentando não mais o capitalismo concorrencial, mas monopolista, além de contar com a disseminação de modernidades tecnológicas tais como o telégrafo, o telefone e o rádio, e meios de transporte mais rápidos e de maior regularidade. Controles cada vez mais tangíveis sobre os processos materiais de produção eram então mantidos pelos interesses do grande capital, em uma conspícua cumplicidade com governos de viés liberal conservador. Podemos dizer que a juventude de Gramsci decorreu sob um ambiente político bastante movimentado, permeado pela 'Grande Guerra' (1914)(1915)(1916)(1917)(1918), bem como pelos impactos da Revolução Russa nos partidos socialistas do Ocidente. Integrante da ala radical do movimento da classe trabalhadora italiana, Antonio Gramsci viveu uma existência de assinalada pobreza que lhe valeu o agravamento de uma saúde bastante frágil. Viveu ativamente a ascendente revolucionária que tomou a Itália no pós-guerra, bem como o seu desvanecimento, que culminou na ascensão do fascismo, sob Benito Mussolini. Contando com uma formação acadêmica bastante irregular, Gramsci acabaria por ver-se ombreado, em termos de pensamento político, aos grandes ícones da esquerda da sua época, tais como Lênin e Rosa Luxemburgo. Ele foi um dos fundadores do Partido Comunista Italiano no ano de 1921, e conheceu os experimentos da revolução soviética, para onde viajou entre 1923 e 1924, e de onde retornou, através da Áustria, ao seu país como deputado eleito por circunscrição vêneta, para lutar contra o regime fascista. Preso a mando do governo de Mussolini, após uma farsesca tentativa de assassinato encenada com vistas a culpabilizar os comunistas, e com isso favorecer a implantação total da ditadura fascista na Itália, Gramsci é levado a julgamento em um tribunal de exceção. Condenado a 20 anos e 4 meses de prisão, Gramsci cumpriu onze anos de cárcere nas piores condições imagináveis para alguém com saúde precária, sendo libertado somente para evitar que morresse na prisão, e com isso, causasse embaraços ao regime fascista que então vivia seu auge interno, e aprovação internacional de líderes políticos como Winston Churchill. Viveu sua vida de prisioneiro com uma grandeza shakespeariana, chegando a ponto de recusar um pedido de clemência que lhe fora estendido por intermédio de um enviado do próprio Mussolini. Porém, mais do que resistir, Gramsci foi capaz de aliar seus cogitos às experiências práticas, realizando análises que foram alinhadas em cerca de 33 cadernos escolares, construindo uma relação dialógica de conservação/renovação do Marxismo de Karl Marx e Lênin. Lendo o que lhe era permitido pelos seus carcereiros, foi capaz de reavaliar as estratégias de luta política, sobretudo nos países ocidentaisrompendo assim com a ortodoxia leninista imposta pelos bolcheviques e com os dogmas do sectarismo da II Internacional, quanto às estratégias de conquista do poder, que acabaram por agregar novos atores -como os intelectuais -o que levou ao reexame do esquema teórico do materialismo histórico, oferecendo assim, uma nova dimensão que enriqueceu a teoria política do Estado, bem como uma reavaliação do papel da cultura nas lutas sociais. A tudo isso acresçamos um substancial redimensionamento do valor da sociedade civil, doravante entendida como parte do próprio aparelho de governo e aparelho 'privado' de hegemonia de classe à qual esse Estado em uma sociedade de classes, foi posto a serviço. Nossa intenção é oferecer alguma contribuição para que venhamos a entender melhor o desenvolvimento de algumas das categorias teóricas mobilizadas por Antonio Gramsci, à luz dos desafios práticos da sua biografia política nos anos de juventude. # II. De Antonio Labriola A Benedetto Croce: Resistência Ao Economicismo Da II Internacional No aprendizado do marxismo, quais efetivamente eram as fontes que podia contar, em sua juventude, Antonio Gramsci? O primeiro ponto que devemos considerar foi sua irregular formação acadêmica. Diferentemente de Marx, que estudara em um bom ginásio de província, e cursara as Universidades de Bonn e Berlin, culminando por defender tese de doutorado em Iena, Antonio Gramsci, por absoluta falta de recursos materiais, chegou a ficar afastado da escola por dois anos, apesar de ser o melhor aluno da sua classe nos exames de admissão ao ginásio (Coutinho, 1981, p.15). Eram grandes as necessidades da família, que obrigaram o jovem deficiente físico -Gramsci ficara corcunda em consequência de uma queda quando tinha quatro anos 1 Tais dificuldades familiares ficam melhor esclarecidas pela detenção do seu pai, Francesco, acusado em 1898 -Gramsci contava 7 anos -pelo crime de malversação de recursos da repartição pública que dirigia, o Registro de Imóveis de Sorgono, província de Nuoro, no centro da Sardenha. -a um penoso trabalho em uma repartição pública de Ghilarza, onde passava dez horas carregando pastas de processos que às vezes superavam seu próprio peso (Konder, 1967, p.110). Mesmo em idade adulta, Antonio Gramsci não teria alcançado 1,50 m. de altura (Maestri e Candreva, 2007, p.20). 2 1 Quanto às causas da deformidade de Gramsci, há controvérsias entre autores. Enquanto Carlos Nélson Coutinho (1981) fala dessa queda, Maestri e Candreva (2007, p. 20) referem-se a uma tuberculose óssea contraída aos 18 meses. Assim, para esses últimos, talvez a queda sofrida, que teria ocorrido quando era cuidado por uma empregada, fosse até imaginária, versão criada para explicar a deformidade. O que não elimina o fato que, aos 4 anos, Gramsci sofreu hemorragia e convulsões por 3 dias, fazendo seus pais providenciaram uma veste mortuária e um pequeno caixão. 2 Maestri e Candreva referem-se a uma inspeção administrativa levada a efeito no início do ano de 1897, em momento de ausência de Francesco. A gestão financeira do Registro apresentava problemas pelo menos desde 1891, ou seja, dois anos antes do pai de Antonio Gramsci assumir o cargo. Os autores inferem ter ocorrido vingança motivada por oposição política (2007, p. 21). Francesco foi condenado a quase cinco anos de prisão, cumprida em Oristano e Gaeta. Malgrado todos esses dramáticos percalços, Gramsci, contando com os esforços da mãe e das irmãs, retoma os estudos e conclui o ginásio. Segundo Carlos Nélson Coutinho (1989, p. 1), o início do seu aprendizado político dataria desse período, ocorrido entre 1904 e 1908, momento no qual residiu, em condições extremamente precárias, na casa de uma camponesa, na cidade de Santu Lussurgiu, localizada a cerca de 15 kilômetros de Ghilarza. Foi nessa época que travou seu primeiro contato com a imprensa socialista, dado que seu irmão mais velho, Gennaro, que havia emigrado para Turim, enviava periodicamente o jornal Avanti (Coutinho, 1981, p.16;e, Coutinho, 1989, p.1), órgão de divulgação do Partido Socialista Italiano (PSI). Com vistas ao prosseguimento dos estudos, Antonio Gramsci desloca-se para Cagliari, onde passou a morar com Gennaro. O irmão voltara de Turim para trabalhar como tesoureiro da Câmara do Trabalho. Em Cagliari, Gramsci passou então a frequentar as reuniões do movimento socialista local. Iniciava-se então uma fase na vida de Gramsci -recorte temporal marcado entre 1910 e 1918 -que Coutinho (1981 e 1989) denominou como sendo uma contraditória formação juvenil. O PSI italiano havia sido fundado tardiamente, no ano de 1892, e sob um determinismo vulgar e fatalista (Coutinho, 1989, p.3), mas a priori, coerente com os desdobramentos conduzidos pela II Internacional, não obstante se apresentasse pouco sedutor aos olhos do estudante diligente que era Antonio Gramsci. Classificado em um concurso de bolsas para estudantes pobres, em 1911, ele ingressa na Faculdade de Letras de Turim. Porém, as 70 liras mensais que a bolsa lhe oferece, em dez parcelas ao ano, cobrem de forma insuficiente seus gastos. Turim era a cidade do proletariado, mas naquela universidade: A vida universitária de Antonio Gramsci se deu em luta ingente e permanente contra miseráveis condições, tendo como inimigos a fome, o frio e a falta de livros. Dava aulas particulares para complementar a exígua bolsa de estudos, completada pela limitada ajuda familiar. Grande era sua determinação, a ponto de vender parte dos alimentos recebidos da família para usar na compra de livros. Possuía o método de estudo de organizar cadernos com reflexões que classificava por temas, prática que se prolongaria, ao que sabemos, por toda a vida, conforme testemunham os escritos do cárcere, trabalho que executaria a partir de 1930. Problemas de uma saúde frágil agravada pelas condições de miserabilidade em que vivia, fizeram Gramsci abandonar a universidade no último ano. Antonio Gramsci aproximou-se do pensamento de Marx, tanto em razão da Revolução Russa de outubro de 1917 -que havia reafirmado a validade normativa das obras desse filósofo, interpretado contudo à luz de experiências práticas -quanto em virtude de suas próprias demandas no jornal L'Ordine Nuovo, periódico que esteve no centro das lutas do 4 Cabe realçar que os socialistas italianos encontravam-se divididos entre reformistas e maximalistas. De acordo com diversos autores (Coutinho, 1981); Coutinho (1989), Maestri e Candreva (2007); Vacca (2016); e, Areco (2018), Gramsci não se sentia nem um pouco à vontade no ambiente de falso dualismo, passividade e verbalismo vazio. O socialismo praticado pela II Internacional, sob a batuta de Kautsky e aparato do Partido Social-Democrata Alemão, e seguido como espécie de cartilha nos partidos socialistas europeus do período, afirmavam-se em um evolucionismo vulgar e fatalista. As leituras de Croce e Gentile contribuíram para que Gramsci percebesse uma concepção do marxismo na qual não é a economia o verdadeiro motor da história, mas a práxis humana. Coerente com essas idéias, e reagindo às críticas de que estaria se desviando em um projeto idealista e de pura perda de tempo, Gramsci: "funda em fins de 1917 -fora dos quadros do PSI -um 'Clube de Vida Moral', um grêmio destinado a promover debates intelectuais que eduquem moral e culturalmente os jovens socialistas. Os debates -orientados por Gramscidestinavam-se quase sempre a desenvolver a personalidade moral dos integrantes do clube, contribuindo para que superassem o individualismo e adquirissem uma consciência do valor da solidariedade humana. Gramsci via esse desenvolvimento da personalidade como um pressuposto ético do socialismo integral que queria construir." (Coutinho, 1981, p. 24). A partir da Revolução de Outubro, Lêninconsiderado por ele como sendo " o maior teórico moderno da filosofia da práxis" 5 Mas afinal, o que o jovem Antonio Gramsci teria lido diretamente da lavra de Karl Marx -passa também a integrar o rol de autores visitados por Gramsci. O que se pretende frisar no entanto, não é prática livresca de Antonio Gramsci em relação à obra de Marx, mas a sua capacidade de oferecer certa originalidade ao socialismo do século XX, conforme o 'corifeu da filosofia crítica' havia realizado para a conjuntura do momento fundador do materialismo histórico ao longo dos anos de 1840, evidenciando com isso, a quebra de validades eternas para o marxismo, o esvaziamento de certas pretensas ortodoxias, ao mesmo tempo que busca reforçar o seu estatuto de ciência em construção. 5 Trata-se de um expediente desenvolvido por Gramsci na sua condição de prisioneiro do regime fascista italiano, estratégia posta sob a forma de um glossário, que objetivava substituir nomes e termos que poderiam chamar a atenção da censura. Assim, Marx e Engels eram "o primeiro e o segundo fundadores da filosofia da práxis"; O Capital, de Marx seria a "crítica da economia política", enquanto Marx se tornava "o corifeu da filosofia da praxis"; "o fundador da filosofia da práxis"; ou ainda, " o autor da economia crítica". (Gramsci, 1978). 6 Como é sabido, parte considerável dos textos do jovem Marx, somente foram levados à prensa após sua morte. Não obstante, muitos desses escritos que haviam sido publicados estavam disponíveis a um público muito restrito, além de ainda não terem sido traduzidos para outros idiomas. Entre os textos mais conhecidos da juventude de Marx encontram-se os artigos da Gazeta Renana, mas também seu trabalho anterior, de conclusão do curso de Filosofia (Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro, 1841), os Manuscritos de Kreuznach -também conhecidos pelo título de Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, 1843 (publicação póstuma) -a Crítica da filosofia do direito de Hegel. Introdução, publicada em 1844 nos Anais Franco-Alemães -mesmo periódico no qual veio a lume Para a questão judaica (1844). A miséria da Filosofia ganhou edição francesa em 1847. A obra de juventude de Karl Marx é completada pelos famosos Manuscritos econômico-filosóficos (1844), também publicados postumamente bem como das suas duas primeiras colaborações com o grande parceiro intelectual de toda a vida, Friedrich Engels, A Sagrada Família (1845), e A ideologia alemã (1846), essa última também somente impressa muitos anos após a morte de Marx e Engels. No caso das Teses sobre Feuerbach, escrita por Marx na primavera de 1845, somente seria publicada postumamente, em 1888, como apêndice da edição em folheto à parte do Ludwig Feuerbach, de Friedrich Engels. proletariado turinense a partir de 1919. Cabe esclarecer que o semanário socialista turinense L'Ordine Nuovo mantinha, como um dos seus propósitos, "traduzir as lições da Revolução Russa no contexto italiano com a criação de um porta-voz para os conselhos de fábricas, que então se desenvolvia na Itália em ritmo acelerado" (Sassoon, 1988, p. 166). Convém insistir que o socialismo da II Internacional possuía o que certos autores classificam como deformações positivistas, as quais destilavam, em suas análises, o economicismo, o determinismo e o evolucionismo, onde se acreditava que, para que a revolução ocorresse, teria que se aguardar o pleno desenvolvimento das forças capitalistas de produção. unidade entre teoria e prática política que já era oferecida, em esboço, na lavra de Gramsci anterior aos Cadernos do Cárcere. Em compromisso a essa ideia, o que aqui intentaremos, será apontar alguns referenciais de natureza histórica que refluem nas obras de Marx e de Gramsci a um mesmo evento -a Revolução Francesa -que se acreditava, inaugurara uma nova era -formalizando o domínio hegemônico de uma classe social: a burguesia. Ao tempo de Marx, divisava-se uma 'primavera dos povos' nas revoluções eclodidas em 1848; no século XX de Gramsci, acreditava-se estar na ante sala da revolução mundial do proletariado, condições que estariam possibilitadas pelo agravamento do cenário econômico que emergiu após a 1ª Grande Guerra, bem como dos exemplos oferecidos pelos bolcheviques russos de outubro de 1917. # III. # Gramsci Reexamina A Concepção Materialista da História Um mesmo ponto de partida, em termos do estudo da História, mas com referenciais historiográficos bastante diversos. A História com tantos já falaram, é inegavelmente filha do seu tempo. Karl Marx estudara a Revolução Francesa a partir das obras de Guizot e Thierry; Gramsci o fará a partir de Mathiez. Marx se dispôs a conhecer melhor a História francesa para entender a ascensão da burguesia, e talvez melhor identificar, nas 'rachaduras do edifício burguês', a mais promissora brecha para a sua demolição. Assim, se a literatura do 'Terceiro Estado', estudada por Marx, fora originada da restauração dos Bourbon, tendo sido, nas palavras de Franz Mehring: "desenvolvida por homens de grande talento histórico que investigavam a existência histórica de sua classe desde o século 11 e apresentavam a história francesa como uma série ininterrupta de lutas de classes. Marx deveu seu conhecimento da natureza histórica das classes e suas lutas a esses historiadores..." (2014, p. 96). 7 7 Segundo Delacroix;Dosse e Garcia (2012), a motivação que atraía para a História a geração que chegara à maturidade depois da queda do Império Napoleônico seria de ordem política. Entre os numerosos autores dessa historiografia estavam Augustin Thierry e François Guizot, que seriam "representativos do que está em jogo na escrita da história" (p. 23). Para Thierry, a inteligibilidade da história se construía a partir do presente. Thierry identificava a França e o Terceiro Estado, desqualificava a nobreza e primava por conferir sentido a cada um dos eventos passados. Assim, para ele, a história da França seria uma espécie de caminhada para a consagração do Terceiro Estado, representado por 1789. A caminhada teria fim quando as instituições políticas francesas estivessem plenamente adequadas aos princípios liberais. Por seu turno, François Guizot procurava evidenciar os laços que unem as gerações. Dessa forma, sem fazer tábula rasa do passado, a concepção de história de Guizot seria uma lição de moderação política, ao assimilar a fratura revolucionária, mas relativizando-a sob uma espécie de conservadorismo 'dinâmico', cujo papel era reservar espaço à tradição. (p. [23][24][25][26][27][28][29][30][31][32]. Devemos entender da mesma forma que, economistas burgueses como Smith e Ricardo ofereceram a Marx a anatomia econômica das classes. Assim, a crítica a Hegel, articulada ao estudo dos economistas clássicos, posta sob a cobertura da narrativa dos tempos pretéritos dos historiadores da restauração passavam a autorizar a Marx afirmar uma tese, cujo telos era a comprovação definitiva que a luta de classes necessariamente deveria levar à ditadura do proletariado. Por seu turno, Antonio Gramsci debatia-se contra o imobilismo do Partido Socialista Italiano e o cartorialismo impregnado nos sindicatos operários, certo que a maré revolucionária que tomara de assalto a Europa, logo entraria em uma vazante. Suas previsões se confirmariam em tempo breve, com o assalto ao poder perpetrado por Benito Mussolini, que num crescente, entre 1922 e 1926, poria fim aos últimos vestígios da frágil democracia italiana. À época de Marx, o motor inicial que alimentava a urgência da luta por parte do proletariado eram as condições materiais de subsistência, cada vez mais achatadas na fase concorrencial do capitalismo. Para Gramsci, ficara claramente sancionado no século XX, a entronização dos valores estabelecidos pela classe dominante, acolhidos inclusive por parte expressiva do movimento operário, quanto à separação definitiva entre o trabalho intelectual -trabalho de planejamento e direção -e o trabalho manual, que condenava irremediavelmente o proletariado à unidimensionalidade, e à alienação do produto final do seu trabalho, coisificando o homo sapiens sob a capa alienante do homo oeconômico. Tratava-se de um naturalização pseudo-científica manipulada ideologicamente nas massas trabalhadoras pelo catecismo liberal. Sem conhecer os Manuscritos Econômico-Filosóficos de Marx, que somente vieram a lume em 1931, Gramsci chegara a conclusões muito semelhantes, e no chamado biênio vermelho (1919/1920) utiliza do L'Ordine Nuovo como uma espécie de farol para o proletariado que ocupa as fábricas em Turim, organizados sob a forma de conselhos de fábrica, sob inspiração tomada dos sovietes da Rússia revolucionária. A experiência dos conselhos de fábrica 8 tradução do experimento russo -se revelaram contudo, dramáticas para os comunistas italianos. Com a experiência dos conselhos ficara provada a possibilidade de separação entre industrialismo e capitalismo. Supérfluos seriam portanto, "o comando Volume XXI Issue XI Version I 22 ( ) capitalista sobre a produção e a figura mesma do 'capitalista'" (Gramsci apud. Vacca, 2016, p.57). No entanto, a experiência russa, havia de ser relativizada. As revoluções na Alemanha, Áustria, Baviera e Ucrânia haviam fracassado. E a Italiana nem sequer seria iniciada. A luta anticapitalista não poderia prescindir de um partido que a dirigisse, e no caso italiano, haveria que ser avaliado o papel a ser ocupado pelo proletariado rural (as massas camponesas meridionais), no processo revolucionário. De forma quase compulsória, Gramsci retoma a leitura de Marx -as quais ao que tudo indica interrompera no agitado biênio 1919/1920 -através do Prefácio à contribuição à crítica da economia política -texto magistral alinhado em 1859. E, assim como Marx propusera em seu texto 9 Ao mesmo passo, no tocante ao estudo da Revolução Francesa, que Marx fizera principalmente sob as obras de Guizot e Thierry, o foco principal da análise gramsciana , passaria a propor a reunificação do ser humano sob o signo da ominidimensionalidade. O território da classe operária não poderia ficar restrito, como na experiência com os conselhos, à fábrica. Dessa forma, Gramsci formulou sob a experiência italiana uma estratégia na qual a cultura passava a desempenhar papel fundamental na conquista da hegemonia. Esse é o momento no qual Gramsci introduz no esquema teórico do materialismo histórico, o tema dos intelectuais. Segundo sua análise, esses intelectuais ocupariam nas sociedades ocidentais, cuja sociedade civil apresentava-se mais densa e elaborada, um papel proeminente. Então, Gramsci desloca a sociedade civil da posição de infraestrutura -conforme a posicionara Marx, para postá-la na superestrutura. Assim, o "esquema dicotômico" (Vacca, 2016, p. 78) que Marx formulara ainda na primeira metade do século XIX, sobre o materialismo histórico, passa a contar com o tema dos intelectuais. 10 9 Marx escrevera que: "O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência" (2008, p.49). 10 De acordo com Sabrina Areco, "a Revolução Francesa é citada [por Gramsci] como um exemplo histórico no qual um processo de crítica e penetração cultural antecedeu uma mudança social radical." (2018, p. 49). ainda era mantido sob os jacobinos -como em Thierry -porém, a fonte primordial de Gramsci seriam os textos estampados por Albert Mathiez. Mathiez revalorizara o papel dos jacobinos franceses, facção mais radical do republicanismo liberal, e os aproximara dos bolcheviques russos, e logo, sobre a questão da importância do partido enquanto estratégia revolucionária além das fábricas. Tendo que olhar para fora do imediato terreno onde se realizava a produção, Gramsci se viu obrigado a despregar-se das análises de Georges Sorel, que considerava a função do partido político como um organismo distinto e parasitário da classe (Charzat, 2013). Assim, aproximou suas análises de Lênin e de Albert Mathiez. Vista sob a avaliação de Mathiez, realizada em certa forma sob ouropéis franceses -os revolucionários russos de 1917 teriam a tarefa que os jacobinos do dezoito executaram com maestria: a emergência de massas revolucionárias nos campos e nas cidades. Considerando o proletariado rural italiano, em seu potencial revolucionário, Gramsci poderia então, reavaliar as chances da revolução social prosperar em sociedades onde a sociedade civil possuísse elaboração mais complexa que na Rússia do Czar. Valorizando a cultura humanística, poderia ser pavimentado um constructo que viesse a fornecer a cultura histórica e filosófica necessária à mediação entre o logos e o pathos revolucionário, onde a racionalidade fundamentada no pensamento logicamente formulado, e a vontade subjetiva, entendida aqui como a vontade e a paixão política, passam a permitir que a práxis humana se revele como o verdadeiro motor da história. IV. # Considerações Finais Antonio Gramsci logrou atualizar para o século XX alguns dos conceitos marxistas capitais desenvolvidos por Karl Marx e Friedrich Engels no dezenove, acabando por elevá-los à condição de verdadeiras categorias de análise. Destaque deve ser dado, considerando o roteiro que perseguimos, às noções de cultura e práxis. Tendo se posicionado desde a aurora da sua juventude contra o determinismo, o positivismo e o evolucionismo defendidos pela II Internacional, Gramsci optou desde as primeiras horas pelo trabalho de favorecimento das condições subjetivas que julgava necessárias à práxis revolucionária. Daí o espaço ocupado em seus estudos pelos intelectuais. A isso, somou-se a consideração extremamente enriquecedora dos pontos de vista considerados válidos, mesmo nos seus adversários políticos. É assim que podemos entender a respeitosa admiração que manteve às obras de Gentile e Croce. Por fim, a observação atenta à realidade em movimento, que o levou a refutar alguns pontos de vista que não se revelaram factíveis, como do conceito de Sorel acerca dos partidos políticos, da reavaliação do papel dos jacobinos, das lições da História. Talvez por todas essas virtudes, o pensamento de Antonio Gramsci se revele ainda hoje, pleno de atualidade. © 2021 Global Journals Gramsci, Leitor de Marx Year 2021 A * Passado presente: a Revolução Francesa no pensamento de Gramsci SabrinaAreco 2018 Appris Curitiba * Dicionário do Pensamento Marxista TomBottomore Verbete Arte Rio de Janeiro: Zahar 1988 BOTTOMORE * Teoria da organização política II. 2.ed. São Paulo: Expressão Popular AdemarBogo 2010 * Dicionário Gramsciano: 1926 -1937 GiuseppeCacciatore ;Verbete Historicismo Liguori ;Guido PasqualeVoza 2017 Boitempo São Paulo * Sobre a origem do "marxismo" de Gramsci. Novos rumos. 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