# Vinicius Tonollier Resumo-Este trabalho é parte de uma pesquisa mais ampla que investiga quais são e como se revelam as representações sociais de profissionais da psicologia que atuam nos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) sobre os(as) usuários(as) deste serviço que compõe o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) no Brasil. Com o estudo, buscou-se compreender profundamente as concepções construídas e compartilhadas sobre os(as) usuários(as). Como método, utilizaram-se entrevistas abertas, com um tópico guia de referência. No total, foram entrevistadas 21 psicólogas, em 20 diferentes CRAS de 14 municípios da região metropolitana e central do Rio Grande do Sul, Brasil. As participantes foram reunidas por conveniência. O material transcrito foi submetido à análise de discurso. Dentre os resultados da pesquisa, aparecem sentidos referentes à representação social da vulnerabilidade, aqui apresentados, que caracteriza fortemente os(as) usuários(as) do CRAS/SUAS na visão das entrevistadas, especialmente quanto à situação de pobreza e às outras violações de direitos humanos básicos associadas a isto, revelando o caráter múltiplo da vulnerabilidade, que demarca um espaço próprio e também determinadas formas de relação da população nessa situação de vida. # Abstract-This work is part of a broader research that investigates what the social representations of psychology professionals who work in the Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) are about the users of this service that make up the Sistema Único de Assistência Social (SUAS) in Brazil. With the study, it was sought to deeply understand the conceptions built and shared about the users. As a method, open interviews were used, with a reference guide topic. In total, 21 psychologists were interviewed, in 20 different CRAS from 14 municipalities in the metropolitan and central region of Rio Grande do Sul, Brazil. Participants were gathered for convenience. The transcribed material was submitted to discourse analysis. Among the results of the research, meanings referring to the social representation of vulnerability appear, presented here, which strongly characterizes the users of CRAS/SUAS in the view of the interviewees, especially regarding the situation of poverty and other violations of rights basic human beings associated with this, revealing the multiple character of vulnerability, which demarcates its own space and also certain forms of relationship of the population in this life situation. # I. Introdução ste trabalho é parte do resultado de uma pesquisa de dissertação que se propôs a investigar as representações sociais de psicólogos(as) que atuam nos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) sobre os(as) usuários(as) deste serviço. A justificativa para tal estudo é compreender mais profundamente a concepção de profissionais da psicologia sobre os(as) usuários(as) da assistência social. Acreditamos que isso é fundamental e balizador para suas práticas profissionais. Muitas formações acadêmicas privilegiam ainda o conhecimento técnico e científico pautado em práticas avaliativas e adaptacionistas. Além disso, a criação do próprio Sistema Único de Assistência Social (SUAS) no Brasil é relativamente recente, sendo ainda incipiente sua abordagem nos currículos de graduação. Isso faz com que o profissional que se insira na política da assistência social necessite de sensibilidade para questões muitas vezes pouco contempladas na academia. Dentro da pesquisa mais ampla (Pereira, 2013), recorta-se para apresentação neste trabalho uma ampla construção de sentidos relacionada a vulnerabilidades as quais os(as) usuários(as) do CRAS e do SUAS estão submetidos(as), o que acaba incidindo direta e incisivamente sobre suas vidas e, consequentemente, sobre seus modos de singularização e subjetividade. A Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais (MDS, 2009a, p. 7) concebe a vulnerabilidade social como "decorrente da pobreza, do precário ou nulo acesso aos serviços públicos, da fragilização de vínculos de pertencimento e sociabilidade". Ou seja, não somente associada à pobreza econômica, mas corelacionada a uma multiplicidade de fatores. Assim, a vulnerabilidade social constitui hoje um novo conceito, conforme corroboram diversos autores -como Yazbek (1993); Aguinsky, Fernandes e Tejadas (2009); Teixeira (2010); Wanderlei (2010); e Iamamoto (2011)alcançando planos políticos, morais e espirituais, através da desigualdade de acesso aos direitos, de informações, de poder, de possibilidades e oportunidades, situações de risco e empobrecimento das redes sociais, discriminação por questões de etnia, cultura e gênero, dentro outros. A vivência dessas precariedades se origina em dinâmicas sócio-históricas discriminatórias, resultado dos jogos de poder da sociedade, relacionadas aos processos de produção e reprodução de desigualdades sociais e da violação de direitos. Portanto, em síntese, conforme Torossian e Rivero (2009), a vulnerabilidade, para além da questão puramente econômica, pode ser compreendida como um processo dinâmico em relação à inclusão e à exclusão dos serviços e políticas públicas garantidoras de direitos. Pochmann (2004) reitera isto ao afirmar que apenas a transferência de renda não permite a plena superação das situações de vulnerabilidade, pois isto não inclui os possíveis problemas de saúde, escolaridade, moradia, transporte, dentre outras condições de risco social, indicando uma vez mais a abrangência desse conceito. a) Sobre a psicologia e o contexto da política de assistência social O advento do SUAS inseriu definitivamente a psicologia no campo da assistência social no Brasil, já que a presença de profissionais psicólogos é prevista e inclusive obrigatória, em alguns casos, na composição das equipes dos dois principais serviços de proteção social que estruturam essa política: CRAS e CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social). A Proteção Social Básica (PSB), foco deste estudo, materializada nos CRAS, unidades públicas estatais localizadas geralmente nas áreas de maior pobreza e vulnerabilidade social, tem como objetivo evitar situações de risco, desenvolvendo potencialidades e fortalecendo vínculos familiares e comunitários (MDS, 2004). Algumas atividades realizadas pelas equipes dos CRAS, incluindo a psicologia, são descritas pelos cadernos e normativas do SUAS, como o acompanhamento de famílias e as visitas domiciliares (MDS, 2009b). # b) Sobre as representações sociais As representações sociais são tanto uma teoria, que se interessa pela forma como os saberes são produzidos e transformados na interação social; como um fenômeno, compreendendo ideias, valores e práticas inseridos em um contexto comunicativo e que constroem a realidade social (Jovchelovitch, 2008), o que é de interesse neste estudo. Assim, as representações sociais se tornam um operador teórico imprescindível para esta análise. Deve se admitir que os fenômenos representacionais são mais complexos que o objeto de pesquisa construído a partir deles, ou seja, há uma simplificação quando passamos do fenômeno à pesquisa, e é justamente isso que permite sua inteligibilidade. Assim, utilizar as representações sociais é ter consciência que a pesquisa é uma aproximação da realidade estudada, nunca plena, mas aproximada, o que justifica sua utilização neste estudo. # II. # Método a) Participantes Os participantes do estudo foram reunidos por conveniência, em CRAS de mais fácil acesso ao pesquisador, que reside em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Para a coleta de dados, foram feitas entrevistas abertas. No total, foram entrevistadas 21 psicólogas, todas mulheres, no ano de 2012. No decorrer do artigo, nas citações de suas falas, elas serão chamadas abreviadamente de P1 (participante 1), P2, P3 e assim sucessivamente, até a P21. As entrevistadas foram oriundas de 20 CRAS diferentes, de 9 cidades da região metropolitana de Porto Alegre e 5 da região central do Rio Grande do Sul, totalizando 14 municípios. Destes, de acordo com a classificação do SUAS (BRASIL, 2004), dois são de pequeno porte I (até 20.000 habitantes), três de pequeno porte II (de 20.001 a 50.000), dois de médio porte (50.001 a 100.000), seis de grande porte (100.001 a 900.000) e uma metrópole (mais de 900.000). A média de idade ficou em 32,5 anos, tendo a participante mais velha 58 anos e a mais nova 24. O tempo médio de anos transcorridos após a conclusão de graduação é de 7 anos, sendo o maior tempo de 27 anos e o menor de 1 ano e 6 meses. Cerca de 70% se formaram em universidades particulares, sendo as outras 30% oriundas de universidades federais. O tempo total de trabalho em CRAS é em média de 1,8 anos. O maior tempo de trabalho em CRAS foi de 6 anos e 6 meses e o menor de 4 meses. O tempo médio de carga horária semanal foi de 30 horas, sendo as maiores de 40 horas, e a menor de 16. Quanto ao vínculo empregatício, a maioria, 13 delas, eram servidoras estatutárias, enquanto 8 tinham contratos temporários. Sobre as participantes da pesquisa, a presença única de mulheres está em consonância com os dados de Macedo et al. (2011), que indicam que do total de 8.079 psicólogos(as) que atuavam em CRAS no Brasil em 2011, 89,6% são mulheres, evidenciando a preponderância do público feminino. Isto tem a ver com a maior presença feminina do que masculina nos cursos de psicologia, e também nos de serviço social, que fazem com que os serviços da política de assistência social sejam executados predominantemente por mulheres. # b) Procedimentos para a entrevista Antes das entrevistas, as participantes tomaram ciência do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, assinando-o ao concordar em participar da pesquisa, sendo informadas da possibilidade de desistência a qualquer tempo. Um tópico-guia auxiliou na entrevista, tentando, contudo, preservá-la o mais livre possível. O tópico-guia foi composto por cinco itens: 1) quem são os usuários do CRAS e como caracterizá-los?; 2) como são as famílias usuárias do CRAS e como caracterizá-las; 3) como é a vida desses sujeitos (em termos de rotina e cotidiano, o que ia sendo explorado a partir de mais perguntas de acordo com o que era trazido pelas entrevistadas); 4) há aspectos dos usuários que podem ser vistos como obstáculos para a efetivação das propostas do CRAS/SUAS e, se sim, quais são eles; e 5) se há aspectos dos usuários que podem ser vistos como positivos e que contribuam para a efetivação da proposta do CRAS/ SUAS e, caso existam, quais são eles. A definição por 21 entrevistas obedeceu ao critério de saturação indicado por Bauer e Aarts (2008), no qual as entrevistas vão sendo realizadas, produzindo diferentes representações e um bom volume de dados, até que a inclusão de novos participantes não acrescente mais tantos dados inéditos ou significativamente relevantes, produzindo, em sua maioria, discursos recorrentes. Ou seja, mais entrevistas não levariam necessariamente a um entendimento mais detalhado. # c) Procedimentos para análise das entrevistas Posteriormente, todo o material levantado nas entrevistas foi submetido à análise de discurso, conforme proposta por Gill (2008). Para a autora, não há um roteiro delimitado para tanto, mas sim etapas que podem ser mais ou menos estruturadas. Segundo a autora, o primeiro passo é a transcrição das entrevistas, a partir dos registros literais das falas. A manutenção dos registros literais das fontes no decorrer do trabalho -ao invés da seleção de pequenos recortes que apenas legitimam o que diz o autor -foi uma proposta mantida nesta pesquisa, baseada na ideia de que o registro literal indica confiabilidade, como afirmam Gaskell e Bauer (2008), já que dão margem para diferentes interpretações, permitindo ao leitor que aceite ou refute os pontos de vistas explorados. Após a primeira parte, Gill (2008) relata que se inicia a análise propriamente dita, através de uma leitura que seja capaz de tornar o familiar estranho, a partir de um espírito cético, atento ao contraditório e ao detalhe. Feito isso, passa-se à codificação, em um movimento de mergulho no material, que desta vez torne o conteúdo familiar, para que seja possível a organização em campos temáticos, mais gerais no início. Em seguida, acontece uma análise mais profunda, em que se refinam as primeiras análises. Embora o material seja categorizado, não significa que ele não suporte contradições e fragmentos. Pelo contrário, já que as representações sociais são totalmente afeitas à ambivalência. # III. # Resultados Assim, baseados na lógica exposta no início do trabalho, organizamos o capítulo tendo como ponto fundamental e inicial a questão da pobreza, pois acaba sendo o pilar primordial sobre o qual se relacionam diversas situações de vulnerabilidade social na sociedade capitalista, já que contribuem para a exclusão dessa população em relação a políticas e serviços públicos, como atestam Torossian e Rivero (2009). Como efeitos "colaterais" da pobreza, aparecem uma gama de situações apontadas pelas entrevistadas, o que nos permitiu constituir outros seis campos temáticos: 1) a baixa escolaridade, a evasão escolar e os problemas com a/da escola; 2) as dificuldades de acesso ao mundo do trabalho, com alta taxa de trabalho informal e desemprego; 3) as dificuldades de moradia e as situações de habitação precária; 4) a dificuldade de circulação pela cidade e de usufruto dos espaços públicos; 5) o sofrimento mental, as doenças e as fragilidades psicológicas; e, finalmente, 6) o forte flerte com a violência, em especial a gerada pelo tráfico e uso de drogas. Portanto, fica evidente o quanto as situações de vulnerabilidade se caracterizam não só pela condição de pobreza, mas por todos os múltiplos e complexos efeitos daí decorrentes e que estão presentes nas condições de vida dessa população, resultando numa série de direitos violados. Fundamentando ainda mais nossa perspectiva, trazemos as proposições de Chauí (2011), que afirma que a sociedade brasileira é oligárquica, polarizada entre a carência das camadas populares e o privilégio absoluto de uma pequena e poderosa camada dominante e dirigente, portanto, estruturada de maneira a bloquear a esfera democrática de direitos e a dificultar o acesso à cidadania. Isso significa que uma grande parcela da população acaba vivendo em situação de vulnerabilidade, com precário acesso a direitos -como o direito à renda, à escola, ao trabalho e à habitação, dentre outros também aqui expostos -decorrente diretamente de uma sociedade fortemente hierarquizada em todos os seus aspectos, marcada por relações assimétricas entre superiores e inferiores, que reforçam a desigualdade, o não reconhecimento da alteridade e do outro como sujeito de direitos. Prova disso, como sustenta Yazbek (1993), é a alta capacidade de tolerância da sociedade em relação à pobreza, sem uma intervenção direta ao longo dos anos para minimizá-la ou erradicá-la, acabando por naturalizar a presença dos pobres e despolitizar, consequentemente, as questões sociais. E o somatório dessas violações -acima de tudo de direitos humanos -torna-se suficientemente forte para constituir uma representação social da vulnerabilidade, com a qual sofrem os(as) usuários(as) do CRAS. # a) Pobreza: questão fundamental As situações de pobreza, com renda nula ou baixa, e as consequentes vulnerabilidades daí decorrentes, aparecem como aspectos consensuais apontados por praticamente todas as entrevistadas. Em geral, elas caracterizam os(as) usuários(as) do CRAS como pessoas de baixa renda, muitos(as) vivenciando situações de extrema pobreza, sendo que o dinheiro transferido pelo Programa Bolsa-Família acaba sendo muitas vezes a única fonte de renda. Considerando que em 2012 o programa transferia de R$ 32 a no máximo R$ 306 por família, gradativo de acordo com o número de crianças e adolescentes, percebe-se a precária situação em que vivem essas pessoas. "São famílias de baixa renda, famílias que estão no limite da pobreza, famílias que têm o critério de renda do cadastro único né, de até três salários mínimos. São famílias assim bem sofridas, famílias bem estigmatizadas assim pela questão do que vem junto com a pobreza né, a questão da violência, do uso de drogas, do desemprego, a falta de acesso aos direitos mínimos". P2 "Mas basicamente é um perfil que está dentro das características do Bolsa-Família. A maioria dos usuários daqui são beneficiários do Bolsa-Família; têm uma condição financeira bem baixa, vivendo às vezes só com o dinheiro do Bolsa-Família. [...] Vivendo muitas vezes com cem, cento e pouco reais, a família toda". P4 "Nosso maior número de usuários são as pessoas que recebem o Bolsa-Família, que tem prioridade, então assim é um CRAS que pega uma região que tem bastante vulnerabilidade. [...] Bastante situações assim bem vulneráveis mesmo. Então o perfil aqui é do pessoal bem pobre mesmo, bastante vulnerável". P5 "São pessoas de baixa renda ou até na verdade algumas sem renda fixa, até a grande maioria. Necessidades básicas de básicas mesmo, muitas, muitas, muitas. [...] Muita pobreza, muita pobreza mesmo, extrema pobreza". P8 "Os usuários do CRAS são várias famílias em grande vulnerabilidade social. [...] Famílias em extrema pobreza [...] sem água, sem luz, essa questão de habitação". P13 "Os usuários aqui do CRAS são pessoas em extrema vulnerabilidade mesmo, que assim não têm condições mesmo. [...] São pessoas extremamente carentes [...] sempre vêm à procura de algo. Questões materiais é uma pobreza muito grande na região. [...] Mesmo recebendo o Programa Bolsa-Família, outro benefício, BPC, alguma coisa assim, não é uma situação fácil né". P15 "Grande parte dos usuários são os beneficiários do Bolsa-Família, do Cadastro Único que é o pessoal do BPC, idosos, [...] portadores de deficiência do BPC. Pessoas que às vezes não têm o Bolsa-Família, mas que precisam dos benefícios eventuais. Então grande parte do nosso público, acho que a principal característica, é os beneficiários do Bolsa-Família. [...] Eles têm na verdade várias fragilidades né". P19 "Os usuários, a grande maioria que acessa, são pessoas em situação de vulnerabilidade social bem grande, que tem n dificuldades, não só do ponto de vista de falta de trabalho, mas também de famílias com situações de violência, uso de drogas com um número bastante prevalente também, famílias desorganizadas, n dificuldades". P12 "E aí tem os outros fatores que já aparecem na família que é a questão da vulnerabilidade, pobreza, desemprego, aí aumenta mais, não que isso seja o fator desencadeador dessas crises, mas aumenta mais esses conflitos assim. [...] Eu acho que de alguma forma as famílias que trazem situações de vulnerabilidade, de pobreza extrema, elas vêm com um discurso desacreditado muitas vezes né, em relação a suas próprias vidas, como se não tivesse graça, não tivesse sentido. [...] Porque elas vivem no mínimo, condições mínimas de vida, sobrevivem, elas não vivem de fato, com pleno direito de cidadania, de poder acessar todos os serviços, as coisas que elas gostariam de ter. E acho que em função disso elas acabam não vivendo plenamente, não tendo uma satisfação, não vivendo bem assim, não estando bem no sentido de desenvolver bem a vida delas. Estão vivendo no mínimo, condições precárias". P21 "A condição socioeconômica varia muito, as rendas declaradas deles variam muito. Existem pessoas de extrema pobreza à razoável condição. Tem famílias que só têm o Bolsa-Família como renda, isso nem é renda, é bolsa né, como único recurso financeiro que existe na família é o Bolsa-Família. Têm outros que é um complemento. [...] Eu conheço famílias que não têm nada, nenhuma renda extra a não ser o dinheiro do Bolsa, que aí a condição da família é bem complicada e elas são acompanhadas aqui. [...] A gente acaba intervindo muito mais nessas famílias porque é complexa a questão, envolve muita coisa". P16 Fica evidente, a partir das falas acima, o quanto a ausência ou baixa renda interferem de forma complexa na vida dessas pessoas, gerando inúmeras outras consequências adversas, como será visto ao longo do capítulo. Embora o país ostentasse em 2012 o 6º maior Produto Interno Bruto (PIB) do mundo e possua uma renda per capita que não permite considerá-lo pobre, a forte desigualdade -que inclusive caracteriza internacionalmente o Brasil -faz com que milhões de pessoas não compartilhem dessa riqueza socialmente produzida, vivendo em situação de pobreza e miséria extrema (HENRIQUES, 2004). Para Paugam (2012), a pobreza, ao se revestir de um status social desvalorizado e estigmatizado, acaba por produzir o que o autor define como "desqualificação social", o que contribui para agrupar num mesmo conjunto uma população bastante heterogênea, ocultando a origem e os efeitos dessas dificuldades. Outro ponto a destacar é a centralidade do Programa Bolsa-Família (PBF) na vida dessas pessoas. Na verdade, o PBF costuma se constituir em um tema Volume XX Issue III Version I 18 ( A ) polêmico e controverso. Por um lado, é alvo de críticas, acusado de fomentar o assistencialismo. As próprias condicionalidades do programa -que exigem a comprovação de acesso aos serviços de educação e saúde -põem em tensão a ideia de sujeito de direito e de caridade, discussão que será mais aprofundada no segundo capítulo. Cruz e Guareschi (2012) questionam: já que se trata de um direito, por que a exigência de condicionalidades? Além disso, as condicionalidades podem ser vistas também como formas de vigilância e intervenção do Estado para determinar certas condutas (RODRIGUES e HENNIGEN, 2012; HILLESHEIM e CRUZ, 2012). Por outro lado, mesmo com suas limitações, o PBF acaba sendo um recurso imprescindível, pois garante o acesso mínimo a alguma renda à sobrevivência para grande parte da população em situação de pobreza, não raro sendo o único provento da família e com o qual ela se mantém, como indicam muitas das falas das entrevistadas desta pesquisa. Trazendo alguns números que ilustram isso, foi com o auxílio do PBF que o índice de pobreza diminuiu de 28,1% em 2003 para 16% em 2008 (MDS, 2010b). Em 2009, o PBF propiciou em média um aumento de 47% de renda para as 12,3 milhões de famílias beneficiadas (MDS, 2010a). Em 2011, alcançou a marca de 13,3 milhões de beneficiários, com transferência total de R$ 16,7 bilhões no ano, conforme dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2012). Mesmo assim, em 2011, 16,3 milhões de pessoas ainda se encontravam em situação de extrema pobreza (com renda per capita abaixo de 70 reais/mês), o que corresponde a 8,5% da população (MDS, 2011), sendo que 60% deste total estão na região Nordeste (OIT, 2012). Ou seja, embora tenha suas limitações, a transferência de renda do PBF tem contribuído para retirar um número significativo de pessoas da situação de pobreza, garantindo uma existência minimamente digna para milhões de brasileiros. Porém, sendo pobreza uma categoria política, relacionada à carência de direitos, de possibilidades e de esperança, como ressalta Martins (apud YAZBEK, 1993), permanece, portanto, muito grande ainda o número de pessoas nessa situação, o que é inadmissível em um país rico como o Brasil, mas, infelizmente, um dos campões em desigualdade. # b) Baixa ou nula escolaridade O próximo campo temático que compõe a representação social da vulnerabilidade é a baixa escolaridade, já que os(as) usuários(as) do CRAS costumam ser pessoas com poucos anos de estudo, conforme o relato das entrevistadas. É comum que acabem evadindo cedo da escola, principalmente devido a necessidades materiais, geralmente para procurar um trabalho que garanta o próprio sustento, sendo os jovens inclusive incentivados muitas vezes a isto por suas famílias. "Famílias que têm muito essa questão da escolaridade, é uma marca assim né, como os pais também não têm uma escolaridade né, por exemplo, não têm o ensino fundamental, não têm o médio, na maioria, quando o filho chega numa certa idade, 14 anos mais ou menos, eles também já afrouxam um pouco a exigência em relação aos filhos sobre a escola, eles querem mesmo é que os filhos trabalhem. [...] Não querem que os filhos façam curso, que o filho vá pra escola, se qualifique, eles querem que o filho trabalhe, que o filho seja uma fonte de renda pra família". P2 "Em relação a trabalho, escola, também eles não estimulam muito os filhos, eles já partem do princípio 'ah eu não estudei'. E os filhos veem isso nos pais, se espelham neles né, 'ah meu pai e minha mãe não foram muito além, tão trabalhando'. Às vezes a gente vê adolescente com 12, 13 anos querendo trabalhar e abandonar os estudos né. [...] É que começa também uma certa cobrança em casa, 'ah tu já é grande tem que ajudar em casa', a gente vê os pais falando isso pra eles. Então já não tem muito estímulo pra eles estudarem, aí vão tentando outras coisas, daí já fica mais difícil, eles começam a trabalhar daí dificilmente voltam pra estudar né". P1 "Alfabetização muitos não têm, são semi-analfabetos ou analfabetos. A maioria, eu diria até 90% dos adultos, até quarta, quinta, sexta série, pouquíssimas pessoas com ensino médio. E as crianças também nessa faixa etária da adolescência já evadindo da escola". P9 "Um público que têm uma baixa escolaridade né, que dificilmente completou o Ensino Fundamental. Então às vezes tem muita dificuldade de compreender o que a gente está falando. Então tu tem que às vezes transformar numa linguagem que seja acessível, atender mais vezes para que ele possa compreender o espaço que ele está, o serviço que ele está inserido". P4 "Por que tu vai fazer teu filho ir à escola se a escola que tu teve não te garantiu nada? Se tu não conseguiu concluir por tal e tal coisa. Então eles não têm esse valor porque a vida mostrou que não existe esse valor. Enfim, de que não faz diferença". P12 "O grupo das crianças, que a gente percebe assim como as crianças também são vítimas, principalmente na escola. [...] Então a gente percebe assim como as crianças são vítimas de exclusão na escola. A escola muitas vezes assim, eu acho que não é inconsciente, é uma coisa bem consciente, exclui as crianças sabe. Então elas não querem mais ir pra escola. Começa a ter tipo uma marginalização. [...] A gente percebe assim que às vezes a sociedade marginaliza essa população que a gente trabalha". P15 O que se verifica a partir das falas, de maneira geral, são representações sobre a condição de baixa escolaridade dos(as) usuários(as), principalmente a partir do enfoque intergeracional, já que, conforme as psicólogas entrevistadas, parece haver uma "cultura" que passa de pais para filhos. Os adultos parecem não valorizar a escola porque provavelmente também viviam em um mesmo contexto adverso que os impedia ou dificultava que estudassem. Essa história parece se repetir com os filhos, que acabam seguindo o mesmo destino dos pais. Claro que essa lógica não é absolutamente generalizável. Mas quando acontece, perpassa a imperiosa necessidade de sobrevivência e a busca por uma renda que garanta condições mínimas de vida. Por isso, é tão comum a evasão escolar na adolescência, ocasionada essencialmente pela prematura necessidade de inserção no mercado de trabalho, quase sempre informal, a fim de incrementar a renda da família. Para Soares, Susin e Warpechowski (2009), essa situação pode resultar na perda da infância e da possibilidade de um futuro melhor, devido ao abandono de espaços educativos importantes para o desenvolvimento. Por outro lado, a própria escola pode também não oferecer um sentido para essas pessoas, sendo comum que não consiga lidar com aqueles alunos que não se encaixam ou não se adequam perfeitamente às suas exigências -como retrata a última fala citada acima, que questiona se a própria escola também não contribuiria para o afastamento das crianças e adolescentes, através de preconceitos, por exemplo. Para concluir, trazemos alguns dados que contribuem para ilustrar a atual situação escolar brasileira. Em 2011, havia no país 12,9 milhões de pessoas analfabetas, 96% dessas com mais de 25 anos de idade (IBGE, 2011). A média de estudos geral da população é de 7,3 anos, número ainda baixo, considerado que apenas o ensino fundamental possui 8 anos (em transição para 9, conforme o novo formato). Em relação aos adolescentes, 83,4% dos jovens de 16 anos estavam freqüentando a escola em 2011, contra 66,5% dos de 17 anos (IBGE, 2011), o que denuncia um alto índice de evasão escolar. Para Ney, Souza e Ponciano (2010), quem tem pais cuja renda é insuficiente para sair da situação de pobreza e/ou que tenham poucos anos de estudos tende a ser tornar um adulto com baixíssima escolaridade. Analisando a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2007 do IBGE, os mesmos autores afirmam que do total de jovens brasileiros entre 17 e 19 anos, 95,1% dos mais ricos conseguiram concluir a 8ª série, enquanto no grupo dos mais pobres esse índice cai para 55,6%, o que evidencia que a renda é uma variável muito importante na determinação do nível de escolaridade das pessoas -sendo o inverso igualmente verdadeiro, em um ciclo vicioso. Mercadante (2004) confirma isto ao afirmar que a educação é um dos principais problemas estruturais do país, ao favorecer a concentração de renda e contribuir para a perpetuação das desigualdades. Henriques (2004) vai além e, para ele, a desigualdade de renda revela uma desigualdade anterior, a educacional, sendo a heterogeneidade de níveis de escolaridade a principal fonte da desigualdade social brasileira. Portanto, reverter isso é fundamental para a redução da desigualdade no Brasil. # c) Trabalho informal e desemprego Outra representação bem difundida entre as entrevistadas diz respeito à condição de trabalho informal e demais dificuldades com o mundo do trabalho enfrentadas pela população usuária do CRAS. Quando essas pessoas conseguem trabalhar, geralmente isso se dá no mercado informal, em formas de subemprego, com desvalorização e superexploração, ou de forma autônoma, o que parece ser bastante comum, principalmente com a questão da reciclagem. Outro problema é a total falta de trabalho, situação em que a família vive apenas com os recursos transferidos pelo Bolsa-Família, quando inserida no programa, o que para Mota (2010b) se configura no banimento do direito ao trabalho em troca de uma renda mínima de sobrevivência. "A maioria das famílias quando têm uma fonte de renda normalmente ela vem do trabalho informal. Muitas famílias com renda nenhuma assim, totalmente dependentes dos programas de transferência de renda, de cestas básicas. E o que tem alguma fonte de renda, em geral, vem do trabalho informal. Normalmente as mulheres com a faxina e os homens na área da construção civil, como servente de pedreiro". P2 "A maioria das mulheres, responsáveis familiares aqui, trabalham como serviços gerais né. Tem buscado muito, e até tem curso aqui, de pedreiro pra mulheres, porque elas têm buscado isso, até porque dizem 'eu quero construir minha casa', 'eu quero construir minha casa aqui'. Então o sentido da vida delas às vezes gira em torno dessa questão do emprego, do estar empregado ou não estar empregado [...] das necessidades básicas mesmo né". P6 "Uma boa parcela trabalha com reciclagem de lixo e como catadores. O trabalho quase sempre é informal. [...] Algumas crianças em situação de trabalho infantil [...] E muitos esperam o benefício do governo assim, muitos esperam a aposentadoria por idade, que é aquele Beneficio de Prestação Continuada depois dos 65 anos, e outros o Bolsa-Família, porque não tiveram um trabalho de contribuição, então eles não têm direito a ter aposentadoria. E é bem difícil às vezes as pessoas chegam numa idade mais tardia assim, muito cansadas, muito doentes e não têm realmente nenhuma renda porque a vida inteira trabalharam num trabalho informal, então é bem complicado". P9 "Crianças que sofrem com o trabalho infantil, que é outra dificuldade da região. Donas de casas ou com trabalhos manuais né, em geral donas de casa, que vivem em função do Bolsa, no máximo uma faxina eventual". P13 "Tem famílias que eu fui que não têm nem Bolsa-Família, e aí não têm renda fixa, é aquela variável de biscate, diarista, empregada doméstica". P16 "Muita gente, muito dos usuários trabalham com reciclagem". P14 "A gente pega um público assim [...] que lidam bastante com a reciclagem aqui na nossa região". P1 "A maioria que trabalha, trabalha num trabalho quase escravo, trabalho informal, de mato florestal, que é um trabalho super pesado". P20 "O marido e a mulher fazem biscate, como eles chamam né, ou empregada doméstica, diaristas, nem são empregadas domésticas de carteira assinada. [...] Com essa possibilidade financeira, às vezes por causa disso os filhos trabalham, menores de idade, que não poderiam né, se ausentam da escola e aí gera vários problemas". P16 As dificuldades de inserção e permanência no mundo do trabalho, principalmente o formal, relacionam-se a vários aspectos. Na origem disto pode se encontrar o próprio pressuposto de que não há capitalismo sem desemprego. Isto parte da exigência de força de trabalho excedente e reserva, que Marx definiu como condição do modo de produção capitalista, como atestam Mota (2010a) e Maranhão (2010), já que é esta população sobrante que pressiona permanentemente os salários para baixo, incrementa a exploração da força de trabalho -barateando seu custo e mantendo contínua a pressão pela produtividade através da ameaça da substituição -além de dificultar qualquer luta política dos trabalhadores devido a sua preocupação exclusiva em produzir e sobreviver. Outro aspecto, inclusive relacionado ao campo temático anterior, refere-se à baixa escolaridade que, segundo Ney, Souza e Ponciano (2010), é capaz de influenciar negativamente a qualidade da mão de obra. Sendo a qualificação uma exigência cada vez maior, progressiva conforme o avanço tecnológico, torna-se difícil para essas pessoas a colocação no mercado formal, que exige gradativa escolaridade e inclusive remunera os trabalhadores conforme sua formação e capacitação. Para Louzada (2003), o fato de estar melhor ou pior empregado faz toda a diferença na vida dos trabalhadores, na medida em que essas condições engendram formas específicas de lidar consigo e com o mundo. Por trás disso também há o risco de atribuir a causa do desemprego aos trabalhadores, subvertendo uma estrutura social que indica o contrário, já que o sistema capitalista prefere não produzir a produzir sem lucro, isto é, prefere recusar o acesso ao emprego a empregar para ter "apenas" uma pequena margem de lucro (IAMAMOTO, 2011). Em relação ao desemprego, como sugerem Torossian e Rivero (2009), este se associa a não valorização e a um não lugar social, que pode aparecer sob a forma de invisibilidade e vergonha, reforçado pela sensação de incompetência de não estar apto a concorrer no mercado de trabalho, culminando numa despotencialização subjetiva dos sujeitos. O que parece é que é muito a partir do trabalho -ou de sua ausência -que essas pessoas organizam suas vidas, como mostram algumas das falas apresentadas. O não trabalho é, portanto, uma das principais fontes de produção de vulnerabilidade, como atestam Cruz e Guareschi (2012) baseadas num conceito de Castel, a "desfiliação", que conjuga a precariedade do trabalho, ou mesmo sua ausência, com a fragilidade do elo social, mostrando como a pobreza se entrelaça com a ruptura de vínculos, produzindo assim uma invalidação social. Por outro lado, em relação ao mundo do trabalho, vários pontos podem ser mencionados. O primeiro é a alta taxa de trabalho informal no país, principalmente entre jovens, mulheres e idosos. Conforme a Síntese de Indicadores Sociais (SIS) do IBGE de 2010 (IBGE, 2010a), 69,2% dos jovens ocupados entre 16 e 24 anos estavam em trabalhos informais, o que aumenta para 82,2% entre as mulheres de 60 anos ou mais. No Nordeste, região mais pobre do Brasil, 90,5% das mulheres jovens estavam em trabalhos informais. No total, apenas 30,3% das mulheres possuíam Carteira de Trabalho assinada, contra 53,2% dos homens. O que se conclui desses dados é que a população jovem e feminina -recorte de público que talvez mais acessa o CRAS, como corrobora esta pesquisa no capítulo seguinte -é a que mais sofre para ter acesso ao mundo do trabalho e, não por acaso, a que também acaba recorrendo largamente à assistência social. O trabalho temporário e o mercado informal acabam sendo vistos também, como indicam Torossian e Rivero (2009), como de uma ordem menor ou desvalorizados pelos próprios trabalhadores. Para Antunes (2009), a crise estrutural e sistêmica do capitalismo tem corroído o trabalho contratado e regulamentado -dominante no século XX a partir de lutas operárias seculares -e o substituído por formas diversas de "empreendedorismo" e "cooperativismo", que oscilam entre a superexploração e a própria autoexploração do trabalho. Para Cruz e Guareschi (2012), apoiadas nas ideias de Castel, a degradação das condições de trabalho produz uma nova categoria, a dos trabalhadores pobres. A taxa de desemprego, embora venha se mantendo estável em torno de 5% a 6% (IBGE, 2012), acaba incidindo mais sobre os trabalhadores "desqualificados", com baixa escolaridade, justamente a parcela mais pobre da população, que habita as periferias da cidade e acaba acessando o CRAS. Aliado a isto, há a ideologia que # Volume XX Issue III Version I # ( A ) desemprego, formando um cenário extremamente cruel. Segundo Baptista (2010), o agravamento do desemprego é um fenômeno que compõe a atual etapa de acumulação capitalista e, portanto, depende pouco da qualificação ou não do trabalhador. Com isso, conforme Alencar (2010), a ideia de que a cidadania deve ser obtida através do trabalho se torna contraditória diante da incapacidade da sociedade capitalista contemporânea em assegurar à população a inserção social mediante o trabalho. # d) Habitação precária Outro fator de vulnerabilidade social difundido entre as psicólogas entrevistadas diz respeito à moradia, principalmente pelo problema da habitação precária enfrentada pelos(as) usuários(as) do CRAS. A dificuldade de moradia é um forte agravante na medida que impede uma organização de uma série de outros fatores da vida dessas pessoas. "Mas a gente tem muito uma população que mora em área de invasão, em área verde. [...] Então esses usuários falta muito a questão da moradia [...] demanda que a gente vê muito aqui assim no CRAS [...] Eu digo também moradia porque aqui vai ter uma obra da Copa. Grande parte dessa população aqui vai ter que sair porque vão fazer obras da Copa. Então essa população vai ser removida daqui, colocada em um outro espaço. A prefeitura comprou áreas aqui perto, então muitas dessas famílias vão conseguir ser removidas ainda pra aqui dentro da região, mas outras não. Então isso está muito presente nelas também".P6 "Outro problema da cidade é a habitação, não tem casa, então as pessoas acabam quase nos xingando porque eu não tenho casa pra dar pra elas. Eu faço um esforço de tentar explicar né, pra entender que não é bem assim, que não tem uma política habitacional, que não tem recursos, que não tem verba, não tem nada. Então obviamente não vai ter material. Então é uma coisa que eles, enquanto população, podem exigir. [...] É cobrar do gestor, do prefeito, para que então se pense esses problemas. Eu digo que não é só ele que está pedindo, é mais umas quantas pessoas, tem uma fila enorme, essa questão de habitação só cresce, porque isso é um problema. Tanto é que as colegas do CRAS estão tentando se movimentar minimamente pra ter verba pra isso. De pensar uma política habitacional decente e não uma coisa capenga que nem a gente tem. A pessoa pede e tem gente que está há dois, três anos esperando, e elas vêm quase periodicamente reclamar porque a casa dela não chegou, porque o material que ela pediu não veio. Então a gente acaba explicando pra pessoa que não é só nosso trabalho também exigir da secretaria né, eles também fazer pressão, se organizarem e pensarem". P16 "E a condição material é uma das regiões que mais têm dificuldades né. A habitação, a topografia, a gente tem demandas que a gente está articulando [...] pra encaminhamento das moradias".P13 "Tem situações também de moradia, de domicílios muito precários". P4 O que se observa é que não só a situação atual é ruim, com a existência de muitas moradias precárias que não oferecem condições mínimas de vida dignacomo, aliás, preconiza a Constituição -como também tende a piorar, já que não há uma possível saída para isso, dada a falta de efetividade das políticas atuais de habitação nos municípios, conforme as entrevistadas. Para Soares, Susin e Warpechowski (2009), esses moradores clandestinos e ilegais que habitam áreas de risco e invasão acabam também desassistidos em suas necessidades de urbanização, com falta de esgoto, água, energia elétrica e até de um endereço, vivendo então na não-cidade. Conforme dados do IBGE (2010a), entre as casas com rendimento de até meio salário mínimo, menos da metade (41,3%) possuía simultaneamente redes de água, esgoto e coleta de lixo -serviços muito básicos para se pensar numa qualidade de vida mínima. Segundo a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios de 2008 (IBGE, 2008), o déficit habitacional do país seria de 5,5 milhões de moradias. Porém, o número de domicílios vagos supera essa marca, totalizando 6,07 milhões de unidades (IBGE 2010b), o que mais uma vez denuncia a profunda desigualdade social brasileira, pois o que falta para muitos acaba sobrando para poucos. O programa "Minha Casa, Minha Vida", lançado durante o Governo Lula, tenta combater esse problema, embora ainda insuficiente frente aos milhões de casos presentes no território brasileiro. Subjetivamente, segundo Fávero (2007), as condições precárias de habitação produzem uma separação tênue entre o público e o privado. Via de regra, essas pessoas acabam morando em casas de pequenas dimensões, com super lotação, sem espaço de privacidade. Assim, dormir, alimentar-se, praticar a higiene pessoal, conversar, manter relações sexuais, ter momentos de lazer e de descanso são atos que, quando realizados, acabam ocorrendo em ambiente quase público, propício ao aumento de tensões. # "Não circulam muito": invisibilidade dos(as) usuários(as) e o não acesso à cidade Quanto à mobilidade desses sujeitos, o que se evidencia a partir das ideias das entrevistadas é que os(as) usuários(as) do CRAS "não circulam muito", parecendo não fazer parte da cidade, pouco presentes nos espaços públicos. Em alguns casos acabam desenvolvendo baixa identificação com os lugares, pois é comum que migrem de um lugar para outro em busca de um espaço melhor para viver. Assim, de maneira geral, estabelecem uma relação restrita com a cidade, parecendo ter mais vivências apenas dentro dos bairros e das comunidades onde residem, o que pode até ser O que se pode refletir sobre essas situações é que acaba havendo, de fato, uma invisibilidade da população pobre que, além de morar geralmente nas periferias, têm poucas oportunidades de circular pelos espaços públicos, não desfrutando dos lugares comuns da cidade. E como são pouco vistos pelo restante das pessoas, também pouco conseguem visibilizar suas demandas. Historicamente, a prática de expulsar a população dos espaços centrais da cidade e mandálas para as periferias é antiga, datando, no Brasil, do século XIX. Nessa época, iniciou-se o que ficou conhecido como movimento higienista, responsável por grande segregação social ao expulsar os pobres para as periferias da cidade, inclusive com ampla normatização de seus hábitos e valores, em uma parceria entre ciência, principalmente a médica, e o Estado, na tentativa de controlar as condições de vida e ordenar o espaço social, que deveria privilegiar a circulação para o consumo e o trabalho (JOSEPHSON, 2003). Assim, ainda hoje permanecem vivos os efeitos vislumbrados nesse primeiro movimento, já que é restrita a circulação da população pobre pelos espaços públicos de maneira geral, gerando, consequentemente, um sentimento de não identificação e de não pertencimento às cidades. Essa situação de esquecimento nas vilas e periferias pode ser caracterizada, conforme Soares, Susin e Warpechowski (2009), como espaços, e também pessoas, das quais a cidade não quer saber. Expulsas do convívio urbano, resta a desesperança em poder se vincular ao mesmo, já que não parece haver espaço para elas no tecido social. Assim, esses sujeitos vão sendo privados de sua condição de cidadania, já que sobreviver na cidade é diferente de fazer parte dela, inviabilizando qualquer noção da cidade enquanto lugar afetivo ou de encontro. Portanto, a fragmentação geográfica fragmenta também relações e experiências. Lopes (2009) afirma que a invisibilidade não se dá apenas pelo não aparecimento nas ruas, mas também por não causarem problemas, não gerarem ruídos, não perturbarem a ordem estabelecida, enfim, por sua não presença não alterar espaços nem relações. Couto, Yazbek e Raichelis (2010) complementam que a ideia de territórios vulneráveis pode reforçar o estigma dessa população e cercar sua mobilidade, dada sua hipotética periculosidade, quando poderia haver, por outro lado, um trabalho de incorporação dos territórios periféricos às cidades, fortalecendo a dimensão cidadã. # e) Sofrimento e questões psicológicas Outra representação compartilhada pelas entrevistadas sobre os(as) usuários(as) do CRAS diz respeito a problemas de saúde mental dessa população, caracterizada como vulnerável também psicologicamente. Muitas dessas pessoas são marcadas por sofrimentos, doenças, dificuldades cognitivas e de entendimento, conforme se constata nas falas abaixo: "Eu vejo eles bem carentes em termos afetivos [...] pegam o vínculo muito fácil com a gente, a gente vê essa carência assim deles sabe. Então acredito que seja uma população bastante carente afetivamente também, não somente financeiramente. Mas tem um lado bom assim, [...] pegam com grande facilidade assim essa questão de procurar a gente, de criar realmente esse vínculo". P5 "Eu vejo bastante sofrimento assim. A gente sente as dificuldades emocionais que essas pessoas têm, até pelos contextos em que eles estão inseridos né. [...] Mas o sofrimento ele é muito amplo assim, não só emocional como físico assim né, de doenças, somatizações né, de depressão a gente vê bastante, esquizofrenia também a gente tem bastante". P7 "Algumas pessoas com muita dificuldade de compreensão, por serem simplórias, por não conseguirem entender certas coisas". P19 "Esses usuários, muitos deles têm muita doença mental, então uma limitação de entendimento enorme de alguns usuários, que tu não consegue, diferente de conversar com uma pessoa que tem um esclarecimento diferente. Então os maiores obstáculos nos usuários é essa parte dos usuários que têm limitações de entendimento, uma doença mental". P20 "Questões muito cognitivas, esse é um bairro que tem como característica muito grande a questão da deficiência mental. [...] Muitas questões cognitivas de dificuldade, questões de cultura, não tem muito incentivo da busca de melhoras né, ou não se reconhecem como tendo possibilidades de melhora. Então isso dificulta nosso trabalho". P7 "A parte psicológica mesmo muito carente. Então é bem difícil assim tu trabalhar a parte psicológica sem ter essa estrutura que a pessoa precisa". P15 "Bastante problemas de depressão, pessoas deprimidas, são pessoas que buscam algo, mas ao mesmo tempo tu oferece mais coisas, eles parecem muito reprimidos assim, não acreditam muito nos seus potenciais, tu tem que estar levantando também a autoestima delas, fazendo com que elas acreditem mais nos seus potenciais, que são capazes, de fazer algo, de mudar sua vida". P17 "E em relação à saúde mental assim, como isso afeta, eu acho que quanto menos acesso as pessoas têm às coisas, mais dificuldades elas têm de mudar a sua realidade, de buscar auxílios, de prover outras condições assim. Então as pessoas sofrem muito com a questão de depressão né, as crianças têm muito a questão assim comportamental". P12 Sawaia (2010) aponta que embora exista uma dimensão objetiva material e social da desigualdade, o sofrimento compõe uma dimensão subjetiva e singular. Por isso, conforme o autor, viver situações de subalternidade e inferiorização implicam em um sofrimento ético-político, o que mostra também que deve haver certo cuidado com a ideia de sofrimento enquanto aspecto psicológico individual originado em uma fragilidade unicamente sua. Carreteiro (2012), nesta mesma linha, indica que o lugar social desvalorizado acaba implicando em sofrimento psíquico na esfera da subjetividade, porém este sofrimento social só adquire relevância se desliza para a esfera individual, isto é, através da doença, que abafa o aspecto social e põe em evidência somente o indivíduo doente. A dialética deste processo se revela quando a doença acaba sendo também um meio de afiliação social, já que é através dela que se dá a inclusão em muitos serviços públicos. O que pode se concluir é que embora o sofrimento seja algo singular e experimentado individualmente, é a permanente articulação com suas origens sociais que permite sua compreensão integral. Para Bock (1999), a naturalização do sofrimento psicológico a partir do entendimento somente de um movimento interno, gerado por si mesmo, colocando em segundo plano o mundo social, político, econômico e cultural, produz o risco do desenvolvimento de práticas curativas e terapêuticas, próprias do modelo biomédico, que desconsideram a perspectiva social. A autora propõe então que se levem em conta todos os elementos contextuais para que seja possível uma psicologia com compromisso social, isto é, engajada ética e criticamente com a transformação social, baseado na premissa de que os sujeitos constroem e são construídos continuamente pela realidade social e pelas relações aí estabelecidas, processo este sempre em complexo movimento. Dimenstein (2000) é outra autora que vai ao encontro das ideias acima apresentadas, afirmando que o modelo hegemônico da subjetividade na psicologia é a do sujeito psicológico individual, autônomo, interiorizado e independente, desprezando a complexidade do processo de subjetivação. Segundo a autora, compactuada com os princípios liberais, são essas ideias que acabam constituindo a cultura profissional geral no país, trazendo como possível consequência a psicologização dos problemas sociais. Assim, o que se vê é que uma compreensão restrita do sofrimento daqueles que vivem em situação de vulnerabilidade como um problema unicamente individual e psicológico pode trazer importantes distorções, reduzindo uma questão macro econômicapolítica-cultural-social para o âmbito privado, culpabilizando os sujeitos por problemas que não são unicamente seus. # f) Violência E para finalizar o capítulo são apresentadas representações acerca do grande flerte com a violência que há na vida dos(as) usuários(as) do CRAS, e também de suas consequências. O tráfico e uso de drogas se constituem como um dos fatores mais sérios e problemáticos nesse campo, como se observa nos discursos abaixo: "Sempre existe um flerte, de um jeito ou de outro, com a violência. Uma educação que passa por um comportamento violento assim. [...] Então tu vê que a questão da violência é um laço. [...] Deve acontecer em outros lugares também né, uma pobreza que chega a ser da ordem da violência [...] Até porque a gente tem um flerte muito grande com a violência, tráfico, então essas coisas acenam como uma possibilidade de vida, de ganho, de poder e isso pega os jovens e as crianças. Então já que o poder público, as políticas públicas, não ofertam, tem lá o traficante que oferta". P12 "São famílias com um índice enorme de violência doméstica, são famílias com um índice enorme de alcoolismo, e aí eu acho que isso vem a calhar com a maioria que trabalha, trabalha num trabalho quase escravo, [...] super pesado, daí eu acho que o cara tem que tomar cachaça mesmo pra poder aguentar a rotina pesada de trabalho, que faz força mesmo. Chega em casa tem uma mulher que não trabalha, que incomoda, que reclama, uma filharada sabe, todo mundo com problema, uma 'paulera', e esse é o perfil assim, a maioria das famílias. [...] Mais de 90% das famílias a história é a mesma assim. Dentro dessa função de funcionar dentro dessa forma assim, violência ao extremo. Casos de estupro, filhos originados de estupro, coisas que a gente não acreditava que existiria, mas existe bastante assim". P20 "Uma população que sofre hoje em dia muito, cada vez mais, com a questão do tráfico e da violência. A gente continua vendo assim, eu que já trabalhei em um outro espaço, a questão de violência, violência sexual muito grande assim né. Essa semana mesmo, uma família que a gente faz acompanhamento familiar, que veio aqui e disse 'olha eu não vou vir essa semana porque tenho que levar minha filha pra fazer exame de corpo e delito porque ela foi abusada pelo vizinho'. Então isso muito presente ainda". P6 "A questão do tráfico é muito forte, muito forte. E isso tem uma maneira de coagir as pessoas que gera um medo muito grande nas pessoas, então muitas vezes teve casos de pessoas que tiveram que abandonar suas casas por questões de traficantes fazer ameaças. Então isso é uma coisa que desorganiza muito o ser humano. Tu ter tua vida habitual na tua casa, no teu espaço, e do nada tu ter que sair, por ameaças, enfim. Então isso é uma coisa muito martirizante assim pra essas pessoas, eu vejo isso muito presente. A gente vê muito isso no dia-a-dia, muitas vezes tu tem que fazer uma abrigagem, porque foram expulsos da casa, estão sendo ameaçados de morte, enfim". P7 "Crianças que vêm da escola nas reuniões de rede de problemas de agressividade na escola, porque é o que eles vivenciam em casa, violência sexual né. [...] E são de ordem intergeracional né: um pai que violentou um filho, e agora esse filho teve um filho e submete a criança a esse tipo de coisa". P12 "Outra questão que impede nosso trabalho aqui é a violência do território, isto também não tem muito o que a gente fazer. [...] Então isso é um obstáculo às vezes pro nosso trabalho né, a questão da violência no território, isso dificulta bastante, e pros usuários também né." P6 "A droga vem como mercado de trabalho, o cara se torna um 'aviãozinho'. [...] Tem uma 'boca', tem o tráfico, e o menino está ali, ta ganhando, está conseguindo comprar o que a usuária (mãe) jamais conseguiria dar pra ele. E aí ele já não é visto como 'pobrinho' na escola, tem um moletom, ele tem um tênis né. [...] Por mais que seja ilegal, no Brasil é trabalho, o tráfico é trabalho, absorve mão de obra de jovens né". P12 "Dependência química muito forte. Uso e abuso de substâncias psicoativas, crack e cocaína bastante. E aí é uma população que sofre muito disso, da violência, da questão da dependência química, de tudo isso". P6 "E uso de drogas é uma questão bem prevalente assim. Porque se tu não tem acesso às coisas, a droga vem pra anestesiar. [...] Consumo de substâncias psicoativas na verdade, porque não é só o crack, o crack veio muito forte agora, mas também tem o álcool". P12 "Acho que tem a questão do alcoolismo muito atravessada. Hoje em dia a questão das drogas nas famílias também". P19 "Os meninos, jovens adolescentes, muito cedo na questão da droga, do álcool e do fumo, que é a porta de entrada para as outras. E aí tu vê as famílias muito vulneráveis nesse sentido assim, elas não conseguem dar conta dessas crises que acontecem, de conseguir poder se organizar de uma forma diferente, e elas acabam sempre naquele ciclo de gerar mais conflitos". P21 "É uma região bem difícil, usuários em situação de extrema vulnerabilidade, a gente percebe questões do tráfico, já chegaram aqui várias mães com filhos dependentes, mães que perderam os filhos para as drogas, enfim. Muita questão de violência doméstica, dependência química dos pais". P10 "Vêm muitas famílias com usuários de drogas, que não sabe o que fazer com a pessoa, que o traficante já está ameaçando e ela não sabe o que fazer, acontece muito isso". P14 A evidência nos discursos das entrevistadas sobre o quanto há realmente um flerte com a violência na vida dessas pessoas é bem significativa, mostrando que esse é um dos aspectos a serem considerados por quem trabalha com essa população. Para Chauí (2011), a violência está inscrita na estrutura da sociedade brasileira. Porém, a violência não é percebida como tal, isto é, como toda prática e ideia que reduza o sujeito à condição de coisa, que viole sua subjetividade ou que perpetue relações sociais desiguais. Mais do que isto: a sociedade não percebe que suas próprias explicações sobre a violência são violentas, já que está cega ao lugar efetivo de produção da mesma, que é sua própria estrutura social autoritária. Assim, as desigualdades econômicas, sociais, políticas e culturais -a corrupção, o racismo, as intolerâncias religiosas, sexuais e políticas, etc. -não são percebidas como estruturalmente violentas, sendo a violência considerada como fatos esporádicos. Em outras palavras, conforme a autora, o aparato ideológico faz com que a violência que organiza as relações sociais brasileiras não seja percebida, e, por isso mesmo, acaba naturalizada e conservando a existência de um mito da não violência. Já Melo et al. (2007) -que trabalham a questão da violência a partir de Habermas e dos conceitos de ação comunicativa e mundo da vida -afirmam que a presença permanente da violência na vida das pessoas acaba conferindo legitimidade às normas violentas, forjando também as formas de relacionamento com o outro, rompendo as interações e colonizando profundamente o mundo da vida desses sujeitos. Assim, é normal que em contextos violentos, como as periferias e zonas pobres, todos já tenham sofrido ou pelo menos presenciado situações graves de violência. Os mesmos autores acrescentam que quando o crime organizado está presente, a violência física e simbólica acaba se impondo sobre todos os moradores, tendo poder para definir e orientar comportamentos, talvez o melhor exemplo de como a violência se torna mediadora das relações intersubjetivas. Num mundo assim organizado, mesmo os conflitos mais simples tendem a se resolver com violência, como se verifica, de fato, na fala de algumas entrevistadas desta pesquisa. Isso não significa que pobreza e violência sejam sinônimos, mas quem vive na pobreza acaba sofrendo com mais vulnerabilidades, expostos a necessidades básicas e falta de alternativas, reduzidos à sobrevivência, o que é também extremamente violento, como corrobora Chauí (2011). As situações de baixa renda; de baixa escolaridade; do trabalho informal, explorado ou mesmo do não acesso ao trabalho; de habitação precária; de exclusão dos espaços públicos; e de sofrimento -todas devidamente expostas neste capítulo -exemplificam bem as diversas vulnerabilidades que se tornam uma mistura explosiva para a existência da violência no contexto de vida dessas pessoas. Além da questão mais geral da violência enquanto problema social do país, há também relatos das entrevistadas sobre casos mais específicos de violência, como aquelas praticadas contra mulheres, crianças e jovens. Quanto as primeiras, o que se percebe é que as mulheres parecem sofrer fortemente com a desigualdade das relações de gênero, marcadas pela opressão e submissão ao companheiro, o que pode gerar casos de violência doméstica, como atestam Martin, Quirino e Mari (2007). Quando a violência se torna então a norma padrão de relacionamento na casa, é inevitável que isso permeie também a relação dos adultos com os filhos, aumentando risco de abusos físicos e até sexuais. Já em relação à violência associada ao consumo e tráfico de drogas, os jovens são as principais vítimas, não só porque são os que mais morrem, mas também por que são os que mais matam, como afirmam Melo et al. (2007). Kodato e Silva (2000) perceberam em sua pesquisa uma semelhança no atestado de jovens mortos pela violência do tráfico, uma trajetória de vida marcada pelo não: "não era reservista, não era eleitor, não deixou filhos, teve morte não natural". Ou seja, sem acesso a direitos e condições mínimas de vida, esses jovens não tiveram condições ao menos de se desenvolverem plenamente e atingirem a vida adulta. Portanto, como todos os outros campos temáticos desse capítulo, percebe-se que a violência está associada a um contexto de vida adverso, profundamente atravessado pela pobreza, podendo esta ser entendida como uma marca na vida dessas pessoas porque sua própria condição de existência é violenta, resultado de uma sociedade desigual e um Estado que também estabelece, ele próprio, relações de violência ao não permitir o acesso a uma série de direitos. IV. # Considerações Finais Os achados de nossa pesquisa refletem a definição de usuários da assistência social trazida pela Política Nacional de Assistência Social -PNAS (MDS, 2004, p. 27), que diz: Constitui o público usuário da política de Assistência Social, cidadãos e grupos que se encontram em situações de vulnerabilidade e riscos, tais como: famílias e indivíduos com perda ou fragilidade de vínculos de afetividade, pertencimento e sociabilidade; ciclos de vida; identidades estigmatizadas em termos étnico, cultural e sexual; desvantagem pessoal resultante de deficiências; exclusão pela pobreza e, ou, no acesso às demais políticas públicas; uso de substâncias psicoativas; diferentes formas de violência advinda do núcleo familiar, grupos e indivíduos; inserção precária ou não inserção no mercado de trabalho formal e informal; estratégias e alternativas diferenciadas de sobrevivência que podem representar risco pessoal e social. Portanto, verifica-se que de fato há uma representação social sobre a vulnerabilidade no discurso das psicólogas entrevistadas, em consonância com a definição "oficial" de usuário(a) da assistência social. Acima de tudo, comprova-se que se trata de uma população que sofre com uma série de violação de direitos humanos, revelando o caráter múltiplo da vulnerabilidade, para além da questão de renda, que demarca um espaço próprio e também determinadas formas de relação da população nessa situação de vida. Este achado permite uma caracterização geral dos(as) usuários(as), nos dizendo muito sobre quem é essa população, mas absolutamente não nos dizendo tudo, até porque estes achados podem ser lidos de diferentes formas. Para Torossian e Rivero (2009), os sentidos produzidos sobre a vulnerabilidade têm a possibilidade tanto de contribuir para a homogeneização e manutenção da população num lugar de risco social, quanto para construir outras estratégias de empoderamento e possibilidades potenciais de vida. Logo, coexistem, por um lado, representações que culpabilizam os(as) usuários(as) por sua condição e acentuam sua inadequação; por outro, representações que desconstroem sentidos cristalizados e apontam para possibilidades de vida. Portanto, seguimos, enquanto profissionais da psicologia no contexto brasileiro, em meio a este processo em movimento, vivenciando encruzilhadas que nos levam a (im)possibilidades, com mostram os significados aqui produzidos, que apontam a caminhos múltiplos. Que possamos, enquanto psicólogos(as), encarar os desafios do presente para nos fortalecermos, juntos, na construção de políticas públicas inclusivas, que possam oferecer condições melhores de vida às pessoas frente ao nosso contexto de desigualdade social, fazendo da psicologia uma profissão potente, contributiva e crítica em tal processo de transformação. Representações Sociais da psicologia sobre a vulnerabilidade social no contexto do Sistema Único deAssistência Social (SUAS)culpabiliza os sujeitos por seu emprego ou reforçado pelo fato de os serviços públicos seconcentrarem no território, já que objetivam mesmoestarem próximos de onde as pessoas vivem. Emboraisto comprovadamente traga inúmeros ganhos àpopulação, por outro lado pode também reforçar arestrição do uso da cidade."Não tem muito acesso a música, teatro, cinema, ir aPorto Alegre é uma baita viagem, muitos passeios quea gente faz tem muitos que não conhecem a praia,então não circulam muito nem pelo ambiente ondevivem. Muitas vezes vão a uma festa dentro dacomunidade mesmo, então são pessoas muitas vezesYear 2020isoladas do seu meio né, ali naquele lugar, com seus vizinhos, por ali que eles vão. Quando eles começam a conviver com outras pessoas, eles começam a talvez se questionar um pouco disso. [...] Por onde elas circulam na cidade, basicamente são pelos serviços né,22de saúde, assistência e educação, então, aonde elasVolume XX Issue III Version I ( A )vão: na escola dos filhos, no posto de saúde, na Unidade Básica de Saúde e no CRAS. Delegacias em algumas situações, mas basicamente é isso. Na venda da esquina, no mercadinho, então não circulam muito por lugares. Muitas vezes nem a praça, não sabem se tem ou não tem praça no bairro onde moram. É muito isolado isso. E se tu pergunta pra elas, aonde vocês circulam na cidade, 'ah eu vou no posto, na escola', não conseguem ver outros lugares, mesmo que esses lugares sejam de graça". P4 "Tem usuários aqui que a gente convive, que acessam o serviço, que têm 20 anos e nunca foi até o centro. Nunca saiu daqui. E também o que acontece, como a-Global Journal of Human Social Sciencegente está bem no fundo do bairro, e é um bairro que tem muito comércio, [...] as pessoas acabam ficando muito aqui. Então as vivências delas são basicamente dentro da comunidade. A gente às vezes tem que apresentar outros modelos. Quando eu falo que venho de Porto Alegre ficam apavorados, como se tu viesse de outro mundo. 'Mas como tu vem de lá todos os dias? Eu venho, tenho que trabalhar. De ônibus? Sim, de ônibus. Tem que ser né'. E a gente até quando pode oportuniza saídas, passeios". P3 "Muito ligado ao morro, em função só da comunidade. Pouca gente sai daqui. Sai só em questão de saúde. E acessar outras situações é muito difícil. Vivem muito em volta dos filhos. [...] A vida é em torno dos filhos, muita preocupação com a segurança". P13"Eles se sentem muito excluídos, acho que em funçãode morar aqui nessa vila, tem preconceito da cidadeinteira em relação à população daqui. E de algumaforma eles se sentem também excluídos em relaçãoaos outros bairros.© 2020 Global Journals'Ah porque o povo lá na vila é mais pobre, mais vulnerável, tem mais violência', então eles também trazem essa questão do preconceito também, acabam reforçando essa questão do preconceito no município em relação a eles mesmo". P21 "É uma * Entre a garantia de direitos e o reforço à subalternização: concepções e práticas ainda em disputa sobre o público-alvo da Política de Assistência Social BGAguinsky IFernandes SSTejadas MENDES, J. M. R. PRATES, J. C. AGUINSKY, B. G. 2009 EDIPUCRS Porto Alegre (Orgs). 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