ão é fácil entender as relações raciais no Brasil.A abolição da escravatura deu-se (teoricamente) a 13 de maio de 1888 e até hoje os negros têm de enfrentar lutas diárias para conseguir estudar, conseguir uma vaga de trabalho, conseguir andar nas ruas sem ser abordado violentamente pela polícia, conseguir um papel importante na TV, no cinema, no teatro. Lutadores resistentes 1 e incansáveis, sua única saída é resistir, 1 No início deste ano soube da história de um homem que foi visitar o acampamento montado na cidade de Curitiba como forma de resistência à prisão do ex-presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva. Ao chegar lá, diante da pessoa responsável por receber os como resiste até onde pode o protagonista de A Revolta da Cachaça (1982), de Antonio Callado, peça que ilustra e apoia a presente discussão cujo objetivo éestabelecer uma relação entre os conflitos enfrentados pelo negro no teatro (e na sociedade) e -levando em conta as ideias de Raymond Williams sobre a tragédia moderna -, um destino trágico enfrentado por ele na sociedade brasileira. Trata-se, como é sabido, de um destino herdado de um passado escravagista que, ao ser extinto, não apenas não incluiu o negro na sociedadecomo atestam estudos importantes como o realizado por Florestan Fernandes e Andreas Hofbauer, por exemplo -mas relegou a ele os lugares mais baixos da escala social, obrigando-o a enfrentar uma realidade marcada pelo racismo e pelo preconceito. Faremos isso observando especialmente a cena capital da peça de Callado, pois ela discute a essência da formação brasileira e mostra claramente a resistência que o negro tem de ter para lutar contra o racismo. No Brasil, nega-se veementemente a existência do preconceito e do racismo, defendendo-se a ideia de que aqui estaríamos no paraíso da democracia racial. Assim, quando um negro diz que está sendo vítima de racismo, diz-se que não, que o Brasil é um país miscigenado, resultado da união de três etnias -o branco, o negro e o índio -o que torna impossível sermos racistas. Isso se torna um problema porque, se não existe o racismo, não há contra o quê lutar. Desse modo, homens negros e mulheres negras têm de ouvir que tudo o que vivenciam cotidianamente seria apenas uma impressão. Assim, a abordagem violenta da política é, para a sociedade, uma imagem deturpada da realidade, fruto de um sentimento de vitimização dos negros. No entanto, fatos ratificam a realidade constantemente denunciada por eles. Como exemplo, é possível citaras mortes do motoboy Alexandre Menezes dos Santos e do aposentado Domingos Conceição dos Santos, ocorridas em 2010. O primeiro, mesmo estando desarmado, morreu na porta de casa após apanhar de policias militares; o segundo levou um tiro na cabeça quando tentava passar pela porta giratória de uma agência bancária, pois o segurança não acreditou que visitantes, ele disse: "vim buscar um bocadinho de esperança" e recebeu a seguinte resposta: "aqui não tem esperança. Aqui tem resistência". Acho que essa fala resume a condição do negro brasileiro hoje e, talvez, possamos avançar um pouco mais: essa é a condição do brasileiro que hoje defende a democracia. ele usava um marca-passo e que era esse aparelho que impedia a abertura da porta 2 . As questões que envolvem a integração do negro na sociedade brasileira objeto de estudo de um dos mais importantes sociólogos brasileiros. No Antes de iniciarmos a observação mais detida da peça de Antonio Callado, é preciso apresentar, ainda que brevemente, duas questões importantes. A primeira é a ideia de tragédia aqui considerada. A segunda é o espaço ocupado no palco pelo negro no palco brasileiro, algo que apresenta dois aspectos: o personagem e o ator. Tradicionalmente, a tragédia é definida como uma "peça que representa uma ação humana funesta muitas vezes terminada em morte" (PAVIS, 1999, p. 415). No entanto, esse conceito mudou ao longo do tempo. Aristotelicamente, a tragédia é definida como "a imitação de uma ação de caráter elevado e completo, de uma certa extensão, numa linguagem temperada com condimentos de uma espécie particular conforme 2 Cf. http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,morte-de-motoboy -derruba-comando-da-policia-militar-na-zona-sul-de-sp-imp-,550039 e http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,aposentado-baleadona-cabeca-em-banco-tem-morte-cerebral,550122. 3 Cf. https://www.almapreta.com/editorias/realidade/atlas-da-violencia-2019-75-5-das-vitimas-de-homicidio-no-brasil-sao-negras as diversas partes". Essa imitação "é feita por personagens em ação e não por meio de uma narrativa, e que, provocando piedade e temor, opera a purgação própria de semelhantes emoções" (apud PAVIS, 1999, p. 415). É também determinante dela a regra que diz que a ação representada deve ser a ação de um nobre, especialmente porque estabelece o distanciamento capaz de levar à catarse. Esse ponto de vista -e isso é importante para nós -começa a ser questionado no século XVII por Corneille que, como explica Hubert, estava "persuadido de que os infortúnios do homem comum nos tocariam mais do que os que advêm aos reis ou aos deuses" (HUBERT, 2013, p. 111). Para o francês, os outros homens teriam "seu lugar no teatro se lhes sucedessem infortúnios ilustres e extraordinários o bastante para merecê-lo, e se a história se preocupasse o bastante com eles para trazê-los ao nosso conhecimento" (CORNEILLE, apud HUBERT, 2013, p. 111).George Lillo seguiu uma trilha semelhante ao afirmar que não há necessidade de confinar a tragédia aos personagens de posição elevada. Para ele, "'os contos morais da vida privada', tratando de situações familiares às suas plateias, são mais aptos a concretizar a instrução moral almejada" (CARLSON, 1997, p. 127-128). Denis Diderot deu forma a essa ideia ao abolir a cláusula dos estados e, admitindo protagonistas não nobres, deu origem ao drama burguês Além da estética trágica, interessa-nos comentar, ainda que sucintamente, a ideia do trágico. Não vamos aqui fazer um histórico do processo de formação dela, mas sim observar ideias que nos ajudam a perceber como a ideia do trágico vai se transformando e se aproximando da vida cotidiana do homem comum. Para Goethe, por exemplo, o conflito trágico "não permite nenhuma solução" (SZONDI, 2004, p. 48), desaparecendo quando a reconciliação surge ou se torna possível. A dialética trágica, "mostra-se no próprio homem, em quem o dever e querer tendem a se afastar e ameaçam romper a unidade de seu Eu" (idem, p. 49), o que não é, em si, trágico. A tragédia está "na cegueira com que ele, ludibriado acerca da meta do seu dever, precisa querer o que não tem direito de querer".Szondi explica que "Goethe experimentava profunda e dolorosamente o trágico nos acontecimentos da vida real" (idem, p. 50). O escritor, percebeu a estrutura dialética do ato de partir e o considerava como motivação de todas as situações trágicas. A partir disso, deslocou o fator trágico "da morte do herói trágico [...] para a despedida de uma pessoa amada, ou para o abandono de uma situação amada" (idem, p. 50-51). Leon Trotski sintetizou de modo produtivo a mudança dos temas da tragédia. De acordo com a exposição de "Renascimento concentrou-se no indivíduo e na paixão individual". Em Shakespeare, continua o autor, isso "'é levado a um grau de tensão tão alto que excede o indivíduo, torna-se superpessoal e é transformado em certo tipo de destino'". Na expressão dos românticos, o caráter tornou-se destino. "As contradições internas da sociedade burguesa", ele escreve, "corroeram gradualmente o sonho da emancipação individual e despertou o homem para a percepção de que enquanto ele não se assenhorear de sua organização social o caráter "'pairará sobre ele como sua sina'". Assim, finaliza, "a tragédia moderna reside no conflito entre o individual e o coletivo, ou no conflito entre dois coletivos hostis no mesmo indivíduo" (CARLSON, 1997, p. 347). Essa ideia de que a tragédia moderna reside no conflito entre o individual e o coletivoabre caminho para o pensamento de que o homem negro está em conflito com uma sociedade que não o abriga. Essa sociedade, ao negar a existência do preconceito e do racismo, dificulta a luta coletiva na medida em que não haveria contra o que lutar. Se não há racismo, se não há preconceito, contra o que o negro luta? De algum modo, há um conflito individual -o ser negro em uma sociedade racista -em confronto com o coletivo que é essa sociedade que não se assume preconceituosa, mas que segrega o afrodescendente. Eugene O'Neill afirmou que "a tragédia era a consequência natural da condição humana: a própria existência é trágica; a angústia, o castigo do homem por sua consciência" (CARLSON, 1997, p. 350). E por que a ideia de que a própria existência é trágica é um tanto comum? Em primeiro lugar, penso que há um conteúdo religioso -especialmente das religiões monoteístas -que perpassa a condição humana em que o indivíduo deve ter plena consciência de sua insignificância diante de um Deus infinitamente poderoso, exigência que, a despeito de sua verdade, permite que a Igreja exerça o controle sobre o comportamento humano. Em segundo lugar porque é fato que viver coloca o indivíduo em contato com outros indivíduos, cujos interesses, crenças e ideias não são necessariamente compartilhados e cada um defenderá o que lhe é mais caro. Entram, então, em choque com um mundo que parecerá cruel a todos, pois que todos, em algum tempo, em maior ou menor grau, terão seus desejos negados. Torna-se a existência um fato trágico, o que nos conduz, finalmente, a Raymond Williams. Para esse autor, a tragédia "não é meramente morte e sofrimento e com certeza não é acidente", tampouco, diz, "qualquer reação à morte ou ao sofrimento. Ela é, antes, um tipo específico de acontecimento e de reação que são genuinamente trágicos e que a longa tradição incorpora" (WILLIAMS, 2002, p. 30-31). Williams duvida radicalmente do argumento que nega o sentido trágico significativo na tragédia do dia a dia. Para ele, trata-se de uma alegação baseada nas crenças de que "o acontecimento em si não é trágico por meio de reações convencionadas" e "de que uma reação significativa depende da capacidade de conectar o evento a um conjunto de fatos mais geral, de modo que ele não seja mero acidente, mostrando-se capaz de carregar um sentido universal" (idem, p. 71). O autor não acredita que seja possível distinguir um acontecimento da reação que ele provoca. Veja-se: É obviamente possível dizer que nós não reagimos a certo acontecimento, mas isso não quer dizer que a reação esteja ausente. Podemos ver com exatidão a diferença entre uma reação que tenha sido colocada em uma forma comunicável e uma reação que não tenha sofrido esse tratamento, e isso será relevante. Mas no caso de morte e sofrimento comuns, quando vemos luto e lamento, quando vemos homens e mulheres sucumbindo à perda -dizer que não estamos na presença da tragédia é, no mínimo, uma afirmação questionável. (WILLIAMS, 2002, p. 71). Williams, explica Carlson, rejeita a teoria de que a nossa época não pode criar tragédia porque a visão da ordem e da desordem não é definida em termos religiosos ou institucionais. "Cada época expressa essa preocupação 4 à sua maneira", lembrando que "nossas crenças e medos não são os de outros tempos, mas se prestam igualmente ao tratamento trágico" (CARLSON, 1997, p. 452). A moderna preocupação com a desordem social e a violência é trágica em suas origens, pois comove e envolve a humanidade inteira; e é trágico em sua ação, que coloca o homem não contra deuses ou instituições, mas contra seus semelhantes. (CARLSON, 1997, p. 452-453). A análise da condição da representação (ou apresentação) do negro na literatura brasileira revela as marcas profundas de um passado escravagista. O povo mestiço que constituímos é muitas vezes enaltecido como prova de uma sociedade racialmente democrática. No entanto, a imagem do brasileiro como exemplo de uma sociedade integrada é falsa na medida em que nos lugares mais baixos da escala social, de modo geral, ainda estão os afrodescendentes. Do mesmo modo que não estão democraticamente integrados na sociedade, o negro também foi excluído da literatura, fato que pode ser constatado quando vemos o número reduzido de obras cujos personagens principais são negros. No romance, eles ganharam relevo somente no século XX, especialmente na obra de Jorge Amado, por exemplo. Mesmo assim, como esclarece Regina Dalcastagnè: A personagem do romance brasileiro contemporâneo é branca. Os' brancos somam quase quatro quintos das personagens, com uma frequência mais de dez vezes maior do que a categoria seguinte (negros). Em 56,6% dos romances, não há nenhuma personagem não-branca importante. Em apenas 1,6%, não há nenhuma personagem branca. (DALCASTAGNÈ, 2005, p. 32). Na verdade, o negro foi excluído da nossa literatura desde seu processo de fundação. Nesse sentido, devemos pensar no projeto literário de José de Alencar, do qual o romance O Guarani é uma de suas obras decisivas. Nele, o autor faz uma espécie de gênese do Brasil e do romance brasileiro 5 . Para construir a imagem do brasileiro criou o índio Peri e, como uma nação mestiça "por natureza" exigia um casal, Alencar o uniu à branca Ceci, mestiçagem considerada ideal, em oposição à união do branco com o negro. Ao não incluir o negro nesse ideal de miscigenação, Alencar, de alguma forma, o excluiu da formação do Brasil e ocultou o problema da escravidão, resolvendo o impasse da elite brasileira, cuja identidade não poderia ser vinculada nem à de um cativo, nem relacionada ao trabalho. Isso tudo está na origem de nossos distúrbios sociais. No Brasil, problema das relações raciais pode ser constatado observando-se a posição do negro na escala social e no quanto se nega a existência do preconceito em nossa sociedade, fato que pode ser verificado, por exemplo, quando se discute a questão das cotas raciais nas universidades públicas 6 . Há sempre a tentativa de mostrar que aqui todos são iguais e têm os mesmos direitos, sem passar por uma discussão profunda a respeito de um problema histórico muito difícil de ser enfrentado. No entanto, é fato que o negro não tem as mesmas condições que o branco, o que é confirmado de diferentes formas, entre elas a própria necessidade de se criar as cotas raciais. Artisticamente, o negro também não tem o mesmo espaço que o branco, questão frequentemente discutida quando se compara a quantidade de bons papéis destinados aos negros na televisão, por 5 A base das observações referentes ao romance O guarani, de Alencar, advém das ideias expostas no curso "Romantismo" (Literatura Brasileira III), ministrado pelo professor José Antonio Pasta Jr., na FFLCH/USP, no primeiro semestre de 1999. 6 Cf. SEGATO, Rita Laura, "Cotas, por que reagimos?", in: Revista USP, nº 68, 2006; SANTOS, Jocélio Teles dos; QUEIROZ, Delcele Mascarenhas, "Vestibular com cotas: análise em uma instituição pública federal", in: Revista USP, nº 68, 2006 e MAGGIE, Yvonne; FRY, Peter, "A reserva de vagas para negros nas universidades brasileiras", in: Estudos Avançados 18 (50), 2004. exemplo. A título de ilustração cito o artigo "O negro na dramaturgia um caso exemplar da decadência do mito da democracia racial brasileira", de Joel Zito Araújo. Publicado em 2008, ele atesta que o negro não está devidamente representado. Na literatura isso também se repete de modo acentuado como atesta e ratifica o trabalho, já mencionado, de Regina Dalcastagnè. Ao nos debruçarmos sobre o teatro, deparamonos com um fato muito curioso: quando se fala em teatro, não se pensa no negro, tanto que ele precisou de um teatro próprio, um teatro negro, que tratasse de suas questões, como se elas não fizessem parte das questões brasileiras gerais, com a fundação do TEN -Teatro Experimental do Negro, por Abdias do Nascimento, em 1944. Para termos uma noção mais clara do que acontece hoje, façamos um breve histórico do gênero no país. O teatro é um espaço cuja importância tem aspectos muito particulares no Brasil e pode ser vista desde sua fundação. Em 1859, o escritor Machado de Assis declarou que era preciso educar o público, "demonstrar aos iniciados as verdades e concepções da arte; e conduzir os espíritos flutuantes e contraídos da plateia à esfera dessas concepções e dessas verdades" (ASSIS, 1953, p. 11). José de Alencar, além do projeto de fundar a literatura, também planejava fundar o teatro brasileiro "pelo exemplo, pela lição, pela propaganda" (ALENCAR, 2003, p. 31). Vê-se que, não à toa, esses dois grandes escritores do seu tempo -e da literatura brasileiraelegeram o teatro como lugar para defender ideias, pois, no século XIX, lembra Elizabeth R. Azevedo, o teatro representava "o único veículo de comunicação de massas existente" (2000, p. 20). Para autores brasileiros, o teatro importava mais como veículo de comunicação do que como gênero de arte, já que o objetivo era usá-lo como meio de propaganda das ideias consideradas importantes para a educação do brasileiro. Nesse sentido, é preciso lembrar que grande parte da população era analfabeta e que ir ao teatro, como explica Silvia Cristina Martins de Souza, não custava muito dinheiro, pois o preço dos lugares mais baratos era mil réis 7 (2002, p. 63). É preciso também destacar o papel político desempenhado pelo teatro, como podemos constatar retomando um evento ocorrido em setembro de 1831, quando um motim levou ao fechamento do Constitucional Fluminense. Segundo Souza, relatos da época dão conta de que "tudo começou quando um espectador gritou 'Viva a República!', logo repetido por várias vozes. Em resposta, ouviram-se gritos de 'Viva Volume XIX Issue VII Version I dom Pedro II!'" (idem, p. 32-33). A autora cita o relato de Carl Seidler, um "'civilizado' europeu" diante de "um tumulto daquela ordem no interior de um teatro", dando conta da particularidade de um momento no qual a politização do campo artístico era algo exacerbado. O teatro assumiu, então, "o papel de arena em que se altercava sobre política, digladiavam-se partidos e emitiam-se gritos sediciosos", tornando-se motivo de inquietação para os poderes instituídos" (idem, p. 33). Após esse evento, as plateias passaram a "defrontar-se com dispositivos legais 8 cerceadores, baixados por autoridades temerosas das consequências que as sensações rápidas, ardentes e unânimes poderiam provocar em centenas de pessoas reunidas nos teatros". O motim, ela diz, poderia ser interpretado como "um marco para o desenvolvimento de uma concepção sobre o teatro baseada na noção de que aquele era um lugar altamente perigoso, na medida em que propiciava a expressão da opinião pública, e, portanto, necessitava ser controlado" (idem, p. 34). Isso tudo ratifica a importância do teatro para além do entretenimento e faz dele um espaço importante para a discussão de importantes problemas brasileiros, como o preconceito limitador da integração do negro na sociedade. No teatro brasileiro, os personagens negros começaram a aparecer no século XIX. No entanto, quando dotados de importância, eles costumavam ser configurados ou como figurações do mal, uma ameaça à sociedade, ou, se dotados de valores como honra, inteligência e bondade, eram embranquecidos. Assim como esses personagens, o ator negro também não teve -e ainda hoje não tem -espaço significativo. Na origem do gênero, ele esteve no palco durante pouco tempo quando a profissão de ator não era considerada importante e, na verdade, ela era marginalizada. Passados alguns anos, a profissão conquistou uma imagem mais positiva e o ator negro perdeu o lugar. A partir de então, atores brancos desempenhavam inclusive os papéis dos poucos personagens negros (nesse caso, o rosto deles era pintado de preto 9 ). Foi somente em meados do século 8 Em 29 de novembro de 1831, dois meses após o fechamento do Constitucional Fluminense, baixou-se um decreto determinando que "ninguém dentro do teatro poderá dirigir em vozes altas palavras ou gritos, a quem quer que for, exceto aos atores os de -bravo, caput ou fora -, e nesse mesmo caso poderá o juiz impor silêncio, quando seja perturbada a tranquilidade do espetáculo ou os infratores serão multados em 6 a 10$000, penas impostas no art. 7º da lei de 26 de outubro do corrente, contra os que fizeram o motim, assuada ou tumulto, quando a desordem chegar a tomar esse caráter" (Coleção das leis do Império apud SOUZA, 2002, p. 33-34). 9 A título de ilustração, cito o fato de que Callado escreveu A revolta da cachaça depois de ter escrito Pedro Mico (1957). Nesta, o personagem principal deveria ser interpretado por um ator negro, mas quem desempenhou o papel foi o ator Milton Moraes pintado de preto. Isso nos permite afirmar que A revolta da cachaça apresenta um fato real não porque se refere a um fato histórico, mas porque discute uma realidade social, a de que o ator negro não tem lugar no XX que secomeçou a incluir nas peças personagens negros não embranquecidos cujas características também apresentavam traços de uma herança africana. Tal demora é indício de que o descendente africano, lembrando Florestan Fernandes, não estava (e ainda não está) integrado na sociedade de classes. Isso se deve, em grande parte, ao fato de que, extinta a escravidão, era preciso desenvolver outra forma de trabalho, da qual o negro foi excluído, pois, como bem verificou Florestan Fernandes, em nosso país, o processo de transição do trabalho escravo para o trabalho livre não se orientou no sentido de transformar o escravo em trabalhador livre, mas em "mudar a organização do trabalho para permitir a substituição do negro pelo branco" (FERNANDES, 1965, p.19). O sociólogo destaca que a intenção da elite brasileira, o que inclui os governantes do país, não foi sequer sustentar uma condição desigual, mas eliminar qualquer possibilidade de competição entre brancos e negros. Esse fato é decisivo e resultou na não integração do negro na sociedade na medida em que ele não goza dos mesmos direitos que o branco, sendo ainda preterido em situações de competição profissional, por exemplo. Além disso, vítimas de preconceito e racismo, o negro e o mulato frequentemente são suspeitos em situações de violência, como atestam os fatos anteriormente mencionados.Esses fatos e inúmeros estudos de autores como Frantz Fanon, Octavio Ianni, Roger Bastide, Celia Maria Marinho de Azevedo, Sidney Chalhoub, Andreas Hofbauer, Antonio Sérgio Guimarães, Luiz Felipe de Alencastro, AchilleMbembe e KabengeleMunanga sustentam essa afirmação e ratificam uma situação limite muitas vezes discutida através da literatura, como veremos a partir de agora e da discussão sobre aquela que considero a cena capital de A Revolta da Cachaça 10 .Trata-se da fala de Ambrósio, ator negro a quem reservam sempre os papéis de personagens coadjuvantes. A peça mostra o reencontro dele com Vito, dramaturgo, e Dadinha, mulher de Vitoquando ele vai a Petrópolis buscar a peça prometida por Vito há dez anos. Escrita especialmente para ele, a peçatambém intitulada A revolta da cachaça -teria Ambrósio no papel do protagonista João Angola, nome importante no evento histórico ocorrido no século XVII, entre 1660 e 1661, no Rio de Janeiro. Vito promete começar a reescrevê-la em 15 dias. Cansado das promessas, Ambrósio afirma que só sairá de lá com a centro do palco e que isso, na verdade, é apenas o reflexo da situação que ele enfrenta na vida. O negro tornou-se protagonista da peça de Callado, a peça concluída, cujo final ratifica a posição da qual Ambrósio ambicionava sair. 10 A fala de Dadinha mostra como os afetos se desfazem até chegar à indiferença, como se nunca houvesse existido qualquer proximidade entre ela, Vito e Ambrósio. Assim, o amigo terminou por ser mais um negro à margem da sociedade.É nisso que reside a tragédia, não na morte de Ambrósio (o que em si também é trágico), mas no fato de que a morte dele nada representa para os amigos ou para a sociedade. Aqui, a morte do herói assinala a falta de perspectiva e a desesperança para o destino do negro na sociedade brasileira.Ambrósio luta sozinho em uma sociedade que não lhe dá chance. É um homem isolado mesmo entre aqueles considerados antigos companheiros: Dadinha e Vito não se sensibilizam diante de tudo o que o amigo lhes coloca como problema. A situação ficou insustentável para Ambrósio porque ele sabe que não tem saída, fato que se torna especialmente marcante quando lembramos que nas peças de Callado -cujo teatro inclui, além das citadas anteriormente,O fígado de Prometeu (1951), A cidade assassinada (1954), Frankel(1954), O colar de coral (1957) e Forró no Engenho Cananeia (1964) -o fato de que, quando tudo sucumbe ao desastre inevitável, algo sobrevive marcando a continuidade da vida, mas para Ambrósio, de A revolta da cachaça, nada resta. É, assim, trágico o fato de que a morte também não é uma saída. Se antes, no Romantismo, por exemplo, morrer podia transformar o herói em mártir, hoje já não representa nada e é no sentido da banalização da morte, em especial da morte do negro, que considero residir a verdadeira tragédia do Homem. Não se trata de despertar piedade, mas apontar a chaga a fim de que não haja outra possibilidade senão encará-la. Penso que o mascaramento da realidade acontece porque as pessoas que assumem o poder -em geral brancasainda mantêm o mesmo desejo dos tempos da colonização, ao menos no Brasil (embora as manifestações racistas possam ser vistas em diferentes partes do mundo), o que remete ao título do livro de Celia Maria Marinho de Azevedo, Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites -século XIX. Parece-me que brancos temem a perda de um lugar que julgam ser apenas seu e, inseguros da própria capacidade de mantê-lo, não ousam concorrer com um negro seja dentro da sociedade, seja, artisticamente (o que também é um problema social). Não é sem razão que atores e atrizes negros e negras reivindicam constantemente seu lugar na cena brasileira.Uma exceção a esse cenário talvez possa ser vista em Salvador, capital da Bahia. Lá, onde é sediado, o Bando de Teatro Olodum, fundado em 1990 e ainda em atividade constante no Brasil, tem assumido o protagonismo, mas ainda é muito pouco para um país de dimensão continental. passado, o conflito insanável entre osfundamentos jurídicos da escravidão e os morescristãos não obstou que se tratasse o escravo comocoisa e, ao mesmo tempo, se pintasse a suacondição como se fosse "humana". No presente, ocontraste entre a ordem jurídica e a situação real da"população de cor" também não obstruiria umarepresentação ilusória, que iria conferir à cidade deSão Paulo o caráter lisonjeiro de paradigma dedemocracia racial. [...]. Infelizmente, como nopassado a igualdade perante Deus não proscrevia aescravidão, no presente, a igualdade perante a Lei sóiria fortalecer a hegemonia do "homem branco".(FERNANDES, vol. 1, 1965, p. 198) POLICIAL 3 -E o crioulo?...POLICIAL 1 (tira capacete, coça a cabeça) -Bom, agente espera um pouco. Vem aí a ambulância, com omédico. (franco) Mas acho que o crioulo podia irdireto pro necrotério. (paraDadinha) A senhora, o queé que acha?DADINHA -Acho isso mesmo. Levem o morto.(CALLADO, 2010, p. 455).Depois de tentar, sem resultado, o diálogoamigável, Ambrósio não vê outra saída senão enfrentar,no palco, o confronto enfrentado na vida e que, entreoutras coisas, o obriga a constantemente provar quenão é um criminoso, como explica:Eu procuro sempre andar meio almofadinha, como sedizia antigamente. Crioulo tem que andar com ar dequem é troço na vida, de quem tem grana no banco eerva viva no bolso. Se ele não se enfeita e de repentepinta uma cana -quem é o primeiro a entrar nocamburão? Até o negro se explicar... (CALLADO,2010, p. 426).Essa luta constante na vida levou ao choqueentre ator e dramaturgo e, do mesmo modo que nasociedade, onde quem morre é o negro, teve comodesfecho a morte de Ambrósio. A batalha para sair deuma condição social estabelecida não deu resultado.Ele continuou sem o papel de protagonista dapeça(que continuou inacabada), e da própria vidaporque, ao tentar assumir o controle do seu destino -nesse caso determinado pela sociedade -, saiuperdendo. Vito não se sensibilizou a ponto de decidirterminar de escrever a peça. Ambrósio tanto lutou,literalmente, para sair da margem que terminou nela,como um marginal, negro, que atirou em um homem emorreu na luta e a quem, depois de morto, restou serconduzido impessoalmente, diretamente para onecrotério, como mostra o excerto abaixo: © 2019 Global JournalsTheatrical Confrontation: Social Confrontation Ele se refere à preocupação humana com a ordem e a desordem, expressa pelos temas contemporâneos da confusão social, da guerra e da revolução.© 2019 Global JournalsVolume XIX Issue VII Version I A autora explica o que significava o valor de mil réis: "(...) na ocasião um mestre-de-obras recebia 3.500 réis por dia; um mestre carpinteiro, 3 mil réis por dia; feitores de escravos, de 1.200 a 1.800 réis por dia; um carroceiro, 1.120 réis; e um carpinteiro 500 réis. Vê-se, assim, que mil réis não era um preço proibitivo às parcelas mais humildes da sociedade" (SOUZA, 2002, p. 128, nota nº 68). * A comédia brasileira JoséAlencar De 2003 O demônio familiar. Apresentação e estabelecimento de texto de João Roberto Faria. SP, Ed. Unicamp * Idéias sobre o teatro"; "O teatro nacional Joaquim Maria MachadoAssis De Crítica teatral. RJ W. M. Jackson Inc. Editores 1953 * Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elitesséculo XIX Celia Maria MarinhoAzevedo De 2004 SP:Annablume ª ed. * Um palco sob as arcadas: o teatro dos estudantes de direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, no século XIX ElizabethRAzevedo 2000 * AntonioCallado Revolta Da Cachaça Rj 2004 Nova Fronteira * RJ: Nova Fronteira ________________Teatro 2010 * Teorias do teatro: estudo histórico-crítico, dos gregos à atualidade. SP, Fundação Editora da UNESP MarvinCarlson 1997 * A personagem do romance brasileiro contemporâneo ReginaDalcastagnè Estudos de literatura brasileira contemporânea, n° 26, Brasília, julho-dezembro de 2005 Acessado em 30.10.2013 * A integração do negro na sociedade de classes. 2 vols. SP: Dominus Editora FlorestanFernandes 1965 * A exclusão como norma: a representação do escravo em duas peças brasileiras. Dissertação de mestrado ReginaGarcia Claudia SP 2006 * Uma história do branqueamento ou o negro em questão Hofbauer SP: Editora UNESP 2006 * Marie-ClaudeHubert As grandes teorias do teatro. SP: Editora WMF Martins Fontes 2013 * PatricePavis SP: Perspectiva 2003 Dicionário de teatro. 2 a ed. * Silvia Cristina MartinsSouza De As noites do Ginásio: teatro e tensões culturais na Corte 2002 Campinas, SP: Editora da Unicamp, Cecult * Ensaio sobre o trágico PeterSzondi RJ: Zahar 2004 * MarcosUzel Teatro Bando 2003 P555 Salvador * RaymondWilliams Tragédia Moderna SP: Cosac & Naify 2002