objeto puro" e da "originalidade absoluta pela experiência imediata". Ele contesta em seguida tal perspectiva afirmando que "embora filha do mundo, a obra é um mundo". Entre o entendimento de qua a obra é "duplicação da realidade" (CANDIDO, 2010, p. 108) e seu extremo oposto, de que ela "nada tem a ver com a realidade" (CANDIDO, 2010, p. 108), o crítico define como uma "melhor visão" o caminho intermediário, que consiste em "rastrear na obra o mundo como material, para surpreender no processo vivo da montagem a singularidade da fórmula segundo a qual é transformado no mundo novo, que dá ilusão de bastar a si mesmo" (CANDIDO, 2010, p. 108). Em seguida, faz a conhecida afirmação de que seu interesse no estudo sobre O Cortiço (1890) "se volta para um problema de filiação de textos e de fidelidade aos contextos" (CANDIDO, 2010, p. 108). Isso porque a obra de Aluísio Azevedo se "inspirou livremente" (CANDIDO, 2010, p. 108) na obra L'Assommoir (1877), de Émile Zola, em que o autor francês também trata de "trabalhadores pobres, alguns miseráveis, amontoados em uma habitação coletiva (...) [tendo como um elemento central da narrativa] a degradação motivada pela promiscuidade" (CANDIDO, 2010, p. 109). Daí a filiação de textos. Em contrapartida, Zola escreveu um conjunto de romances para tratar de diversos problemas da sociedade francesa, dispersando-os ao longo das obras, enquanto Aluísio concentrou em um único livro. Essa diferença corresponde para Antonio Candido (2010, p. 108) à referida "fidelidade aos contextos" e o crítico a explica da seguinte forma: O Cortiço é tematicamente mais variado, porque Aluísio concentrou no mesmo livro uma série de problemas e ousadias que Zola dispersou entre os vários romances da sua obra cíclica. Na sociedade francesa, a diferenciação sendo mais acentuada requeria maior especialização no tratamento literário e quase sugeria ao escritor a divisão de assuntos como núcleos de cada romance: vida política, alto comércio, comércio miúdo, bolsa, burocracia, clero, especulação imobiliária, prostituição, vida militar, lavoura, mineração, ferrovias, alcoolismo etc. Nos países pouco desenvolvidos, como o Brasil, esta especialização equivaleria talvez a uma diluição (CANDIDO, 2010, p. 109). As diferenças centrais dos contextos referemse ao modo de desenvolvimento do capitalismo em cada um dos seus países, tendo a França diversificação mais nítida dos setores da economia, colocando "o capitalista longe do trabalhador"; já no Brasil, imperaria o "primitivismo econômico" no qual"a vida do trabalhador"estava associada à "presença direta do explorador econômico" (CANDIDO, 2010, p. 110). Como consequência, "a consciência das condições próprias do meio brasileiro interferiu na influência literária" (CANDIDO, 2010, p. 111). Na linha das comparações com Zola, Candido (2010, p. 116-117) destaca que enquanto o edifício de L'Assommoir é "segregado da natureza e sobe verticalmente com seus seis andares na paisagem espremida pela falta de espaço", o "cortiço brasileiro ["ligado à natureza"] é horizontal ao modo de uma senzala", e em que se "cria frangos e porcos", numa área com hortas invadida por árvores e capins. Antonio Candido toma um "dito humorístico" comum no Rio de Janeiro do séc. XIX, que dizia que havia "três pês" para "português, negro e burro": "pão para comer, pano para vestir e pau para trabalhar". Arriscando uma recriação ao estilo poema Pau-Brasil, Candido (2010, p. 111) o nomeia "Mais-valia crioula". Tal dito servirá como um elemento comparativo entre a obra e o Brasil da época para Candido aprofundar a análise das relações sociais expostas em O Cortiço (1890). O ditado, o livro e o contexto encerram "uma feroz equiparação do homem ao animal", mas a equiparação se dá não em relação a qualquer homem, mas tão somente ao homem "trabalhador" (CANDIDO, 2010, p. 112). Daí a serventia do dito como "introdução ao universo das relações humanas d'O Cortiço" (CANDIDO, 2010, p. 112). O "brasileiro livre daquele tempo", que não faz parte do trio apresentado no dito (português, negro e burro) seria seu potencial enunciador, o "emissor latente" 3 , conforme expressão do crítico (CANDIDO, 2010, p. 112). Na tríade (dito, contexto e obra) há, entre português e escravo, semelhança, que é o trabalho, e diferença: o português ascende socialmente. E é justamente "o mecanismo de formação da riqueza individual" (CANDIDO, 2010, p. 113) de um português (João Romão) que Aluísio descreve minuciosamente e cujo ritmo é ajustado ao ritmo da própria narrativa. Visto por esse ângulo, Candido (2010, p. 116) ressignifica os personagens do pequeno dito humorístico: o português é "o explorador capitalista", o negro é "o trabalhador reduzido a escravo" e o burro "não é burro", mas "o homem socialmente alienado, rebaixado ao nível do animal". A combinação entre os três elementos garante a acumulação do capital: "Aquilo que é condição de esmagamento para o brasileiro seria condição de realização para o explorador de fora, pois sempre a pobreza e a privação foram as melhores e mais seguras fontes de riqueza" (CANDIDO, 2010, p. 121). De tal modo que o crítico considera o cortiço, espaço destacado da narrativa, como "alegoria" do próprio Brasil, "visto como "matéria-prima de lucro para o capitalista" (CANDIDO, 2010, p. 130-131). Deste estudo de Candido, Roberto Schwarz (1999, p. 25) destacou o modo como o crítico articulou na sua leitura de O Cortiço (1890) a relação entre contexto local e intertextualidade com o livro francês de Zola, referindo a "filtragem reordenada a que a experiência local submete os esquemas europeus". Junto a isso, foi enfatizado no estudo de Schwarz (1999, p. 25-26) o procedimento adotado por Candido que possibilita compreender as diferenças entre a formas do romance de Zola, em especial L'Assommoir (1877), e a de O Cortiço (1890). Como vimos, as diferentes constituições formais se dão em função de se articularem a modos de organização social diversas: Antonio Candido observa que a diferenciação alcançada pela sociedade francesa apartava os mundos do trabalho e da riqueza, de sorte que um romancista como Zola, com ambição de obra cíclica, os trataria em livros separados; ao passo que o estágio primitivo da acumulação brasileira [uma "sociedade menos diferenciada"] sugeria a um naturalista local, mesmo inspirado em L'Assommoir, um enredo em que explorador e explorados convivem estreitamente (SCHWARZ, 1999, p. 25). Nessa perspectiva, não poderia passar sem ser comentado por Schwarz que o estudo de Candido (2010) sobre O Cortiço (1890) está no campo da "sondagem de correspondências estruturais entre literatura e vida social", sem que isso indique qualquer tipo de "redução de uma estrutura à outra, mas a reflexão histórica sobre a constelação [em sentido benjaminiano] que elas formam" (SCHWARZ, 1999, p. 28). Também não passaria despercebido pelo crítico o "dito dos três pês" analisado por Candido (2010), por meio do qual se entrevê a "noção pejorativa de trabalho que a sociedade escravista desenvolvia" (SCHWARZ, 1999, p. 27) e "um nacionalismo feito de desprezo pelo trabalho, pelo negro, pela animalidade e pelo português" (SCHWARZ, 1999, p. 28). A partir de então, Schwarz (1999) passa a enfatizar que o ensaio de Candido (2010) demonstra que a referida "vida social" se materializa na obra por meio de sua "forma", que atua como "mediadora" das relações sociais e estéticas (SCHWARZ, 1999, p. 30). Assim, presentificada na forma, a sociedade não se mostra como algo externo à obra, "mas como elemento interno ativo, sob a forma de um dinamismo especificamente seu, resultado consistente dela e potência interior ao romance, onde atritará com outras forças e revelará algo de si" (SCHWARZ, 1999, p. 35). Desse modo, "o dinamismo literário" produz "conhecimento sobre a realidade externa" (SCHWARZ, 1999, p. 38). No caso de O Cortiço (1890), a obra apreende "o ritmo de acumulação do capital, nas condições peculiares do país" nas ações de um dos seus protagonistas, e a mimetização de tal ritmo constitui a "unidade do livro" (SCHWARZ, 1999, p. 37). Antes de avançarmos para os comentários de Candido (2010), Schwarz (2006b) e Edu Otsuka (2007) sobre as Memórias de um sargento de milícias (1854) e o modo como ela apreende a sociedade ao seu redor e a mimetiza em seu andamento formal, cabe um comentário justamente sobre a perspectiva, que apareceu nos estudos sobre O Cortiço (1890) e que reaparecerá na sequência sobre as Memórias 4 A "Dialética da malandragem" foi, na avaliação de Schwarz (2006b, p. 129), o "primeiro estudo literário propriamente dialético" publicado no Brasil, conseguindo realizar "o básico da crítica marxista", que consiste na análise "dialética de forma literária e processo social". A reflexão de Candido (2010) sobre as Memórias de um sargento de milícias (1854)estabeleceu, "atrás dos altos e baixos do acabamento [do romance analisado por ele], uma organização de entrecho complexa e de muito . Trata-se de destacar que o principal reside no fato de que a obra internaliza na sua forma os aspectos gerais da sociedade a que representa, não constituindo mera documentação do real. Em todas as análises aqui levantadas, ressoa a perspectiva de abordagem adorniana das obras. Como demonstra Antônio Sanseverino (2008a), ao estudar como a categoria de mediação é entendida na obra teórica de Theodor Adorno, para o crítico alemão, "a forma traz em si os condicionantes sociais" (SANSEVERINO, 2008a, p. 100), sendo ela a mediadora entre estes e a obra. Tal mediação deve ser compreendida "no sentido hegeliano", isto é, ela "está na própria coisa" (ADORNO, 1994, p.112). Isso só é possível pelo entendimento de que por intermédio da sociologia da literatura que se detém no estudo social das formas, forma e conteúdo são considerados interdependentes. Nessa linha, Roberto Schwarz (2006b), em estudo bastante conhecido, analisa o também bastante conhecido ensaio "Dialética da malandragem", de Antonio Candido, em que o crítico literário e sociólogo demonstra como o livro Memórias de um sargento de milícias (1854), de Manuel Antônio de Almeida, formaliza esteticamente o que há de "sociologicamente essencial" (CANDIDO, 2010, p. 39) na sociedade brasileira a qual o livro representa. Schwarz faz questão de situar historicamente o trabalho de Antonio Candido, saído pela primeira vez em 1970, pois se colocava na contramão de duas fortes contingências (para dizer o mínimo), o estruturalismo e a ditadura civil-militar brasileira. alcance", pois "evocava um aspecto geral da sociedade brasileira, de que seria a transposição artística" (SCHWARZ, 2006b, p. 129-130). Esse procedimento de Candido (2010), demonstrando que a organização formal das Memórias corresponde a uma "transposição artística" de um "aspecto geral da sociedade brasileira", processou-se a partir da "conjunção de análise formal e localização sociológica enquanto complementares" e abriu "uma perspectiva que permitia identificar, denominar e colocar em análise uma linha de força inédita até então para a teoria, a linha da 'malandragem'" (SCHWARZ, 2006b, p. 130). A consistência das Memórias (1854) é indício da relevância do "aspecto geral da sociedade brasileira" (SCHWARZ, 2006b, p. 130) evocada pela obra, isto é, da "malandragem". Para chegar à hipótese da "Dialética da malandragem", Antonio Candido (2010) realizouo levantamento das análises feitas sobre o romance Memórias de um sargento de milícias (1854) e sistematicamente as refutou. A força representativa das Memórias, no entanto, não permite a Candido (2010) refutá-lo como realista em sentido amplo, mas autoriza a refutação de tal classificação se ela se referir "especificamente ao conceito usual das classificações literárias", pois o "intuito" de Antonio Candido nesse seu estudo é o de "caracterizar uma modalidade bastante peculiar, que se manifesta no livro de Manuel Antônio de Almeida" (CANDIDO, 2010, p. 18). Essa peculiaridade consiste em representar a sociedade brasileira da época não apenas como um "romance documentário" (CANDIDO, 2010, p. 27), masa partir da "formalização ou redução estrutural dos dados externos" (CANDIDO, 2010, p. 28). Estamos novamente no campo de estudo que busca na forma da obra literária a representação da sociedade, e não apenas em seu conteúdo. Candido (2010) demonstra que as Memórias são um "romance representativo", pois seu autor conseguiu "intuir, além dos fragmentos descritos, certos princípios constitutivos da sociedade -, elemento oculto que age como totalizador dos aspectos parciais [os "dados" que referimos anteriormente] (CANDIDO, 2010, p. 31). Junto a isso, o romance é formado por um "estrato universalizador" de cunho arquetípico (CANDIDO, 2010, p. 31) que remonta, por exemplo, aos contos de fada com a oposição entre o bem e o mal. No caso do romance, o bem representado por aqueles que protegem o protagonista e o mal por aqueles que se opõem à sua felicidade. Em síntese, o "malandro" delimitado por Antonio Candido (2010) constitui "uma figura historicamente original que sintetiza" três elementos: "uma dimensão folclórica e pré-moderna", que seria um trapaceiro (um trickster, conforme sua denominação corrente); "um clima cômico datado -a produção satírica do período regencial" e "uma intuição profunda do movimento da sociedade brasileira" (SCHWARZ, 2006b, p. 131, grifos do autor). O que interessa mais aqui e que foi enfatizado por Schwarz (2006b) em sua análise é a compreensão desse terceiro elemento que diz respeito à representação da sociedade brasileira na composição formal das Memórias. Esse estrato é "constituído pela dialética da ordem e da desordem, que manifesta concretamente as relações humanas no plano do livro, do qual forma o sistema de referência" (CANDIDO, 2010, p. 31). A oscilação entre os polos da ordem e da desordem é terreno fértil para o "malandro" Leonardinho, mas, como princípio, marca a trajetória de todos os personagens relevantes do livro. Isso se dá de tal modo que a própria noção de "polo" é dissolvida pela oscilação entre eles, de forma que, num processo dialético, ambas, ordem e desordem, suprimem-se e absorvem-se mutuamente. A expressão formal dessa representação se dá em função de "a dialética da ordem e da desordem" ser "um princípio válido de generalização, que organiza tanto os fatos particulares do livro quanto os fatos particulares da sociedade joanina"(CANDIDO, 2010, p. 39). Mesmo "suprimindo o escravo" (e com ele "quase totalmente o trabalho") e as "classes dirigentes" (e com elas "os controles de mando"), Manuel Antônio de Almeida compôs um "romance profundamente social", não por ser "documentário, mas por ser construído segundo o ritmo geral da sociedade, vista através de um dos seus setores", no caso, predominantemente os chamados "homens livres", nem escravizados nem classe dirigente. A obra atinge esse patamar de representação, "sobretudo porque dissolve o que há de sociologicamente essencial nos meandros da construção literária" (CANDIDO, 2010, p. 39). Completando aí a referida "dialética" entre "forma literária" e "processo social", anunciada por Schwarz (2006b, p. 129). O ato crítico de Antonio Candido (2010), conforme comentário de Roberto Schwarz (2006b, p. 130), reúne: Uma análise de composição, que renova a leitura do romance e o valoriza extraordinariamente; uma síntese original de conhecimentos dispersos a respeito do Brasil, obtida à luz heurística da unidade do livro; a descoberta, isto é, a identificação de uma grande linha que não figurava na historiografia literária do país, cujo mapa este ensaio modifica; e a sondagem da cena contemporânea, a partir do modo de ser social delineado nas Memórias. Isso tudo em função da capacidade de apreender a "intuição e figuração de uma dinâmica histórica profunda" que o romance apresenta e, junto a isso, demonstrar como tal intuição é evocada na "forma literária, sobretudo no balanço do entrecho", isto é, na "circulação dos personagens (...) entre esferas sociais da ordem e da desordem" (SCHWARZ,2006b, p. 131), conforme comentado acima. A relação dialética entre ordem e desordem é "tanto o esqueleto de sustentação do romance quanto redução estrutural de um dado social externo à literatura e pertencente à história". O procedimento configura, "noutras palavras", a formalização estética de um ritmo geral da sociedade brasileira da primeira metade do século XIX" (SCHWARZ,2006b, p. 132, grifos do autor marcando expressões utilizadas por Candido (2010)). São modos de existência da camada social intermediária, nem escravizada nem classe dirigente, do Brasil da primeira metade do século XIX que tal procedimento estético formaliza. Nesse setor, a ordem raramente conseguia se impor e se manter. "É esta a realidade histórica de que a dialética de ordem e desordem é correlativo formal" (SCHWARZ,2006b, p. 133). O método de Candido (2010), flagrado por Schwarz (2006b), consiste em perceber na obra um modo de organização da realidade histórica na sua própria forma, que aí passa à mediadora da dinâmica da vida social. Percebe-se, então, que não há oposição entre o estético e o social, pelo contrário: (...) não se trata de opor estético a social. Pelo contrário, pois a forma é considerada como síntese profunda do movimento histórico, em oposição à relativa superficialidade da reprodução documentária. Neste sentido, note-se que a ênfase no valor mimético da composição, em detrimento do valor de retrato das partes, chama uma consideração mais complexa também do real, que não pode estar visado em seus eventos brutos. Uma composição só é imitação se for de algo organizado... o que aliás indica, seja dito de passagem, que a leitura estética tem mais afinidade com a interpretação social abrangente do que as leituras presas à autenticidade do pormenor. Leitura estética e globalização histórica são parentes. As duas suspendem o dado num todo complexo, sem suprimi-lo (SCHWARZ, 2006b, p. 135, grifos do autor). Para Schwarz (2006b, p. 140), "trata-se de ler o romance sobre fundo real e de estudar a realidade sobre fundo de romance, no plano das formas mais do que dos conteúdos, e isto criativamente".Ou seja, a realidade, para que lhe possamos atribuir significação, também é compreendida por sua forma. Então, na "Dialética da malandragem", Candido (2010) apreendeu "o momento em que uma forma real, isto é, posta pela vida prática, é transformada em forma literária". Trata-se de capturar "o modo e o ponto em que a dinâmica estética se aprende à dinâmica social, à exclusão de outros modos e pontos" (SCHWARZ, 2006b, p. 142). Logo, não se trata de defender a existência de uma representação total da realidade, mas de fragmentos seus que permitam o estabelecimento de nexos que a expliquem em profundidade, já que reorganizada, e em relação dialética com a explicação da própria obra. Feito todo esse apanhado que recupera os méritos de Antonio Candido, Roberto Schwarz (2006b) passa a apontar os limites do estudo "Dialética da malandragem": Ora, enquanto denominador comum das indicações sociais a dialética de ordem e desordem se torna uma constante cultural, e por este lado estamos próximos dos clássicos de Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre nos anos 30. Somando, digamos que os argumentos ora puxam em direção do histórico, ora em direção do ethos cultural, termos que não são inimigos, mas que se referem a dimensões diferentes da realidade. Assim, a dialética de ordem e desordem é construída inicialmente enquanto experiência e perspectiva de um setor social, num quadro de antagonismo de classes historicamente determinado. Ao passo que noutro momento ela é o modo de ser brasileiro, isto é, um traço cultural através do qual nos comparamos a outros países e que em circunstâncias históricas favoráveis pode nos ajudar. A transformação de um modo de ser de classe em modo de ser nacional é a operação de base da ideologia. Com a particularidade, no caso, de que não se trata de generalizar a ideologia da classe dominante, como é hábito, mas a de uma classe oprimida. Com efeito, Antonio Candido identifica a dialética de ordem e desordem como um modo de ser popular. Mais adiante ele a generaliza para o país, sublinha os inconvenientes de racismo e fanatismo religioso que ela nos poupou, e especula sobre as suas afinidades com uma ordem mundial mais favorável, que pelo contexto seria pósburguesa. Assim, a matriz de alguns dos melhores aspectos da sociabilidade desenvolvida pelos homens pobres, à qual o futuro talvez reserve uma oportunidade (SCHWARZ, 2006b, p. 150-151, grifos do autor). Schwarz (2006b, p. 151) vê na análise de Candido a ausência de uma pergunta sobre as Memórias. Conforme análise do crítico paulista (CANDIDO, 2010, p. 31),o romance é formado pela dimensão folclórica (que remete aos contos de fadas e sua oposição entre o bem e o mal) e pela dimensão histórica (que remete a todos os traços da sociedade brasileira da época amplamente expostos anteriormente). Por que, então, essa relação, essa dualidade diríamos nós hoje, à luz de outros estudos de Schwarz (2000a; 2000b), não é questionada por Candido? "Não é feita", continua Schwarz (2006b, p. 151), "a pergunta pelo sentido, no caso, da cunhagem folclórica do mundo moderno". Nesse passo, Antonio Candido teria abdicado da abordagem marxista e sucumbido à culturalista (SCHWARZ, 2006b, p. 154), isto é, passado a analisar como traço cultural o que é fruto da historicidade, e, portanto, da luta de classes. Tal perspectiva culturalista se manifesta sobremaneira na última parte do ensaio de Antonio Candido (2010, p. 40-47), "O mundo sem culpa", em que o modo de sociabilidade analisado nas Memórias é visto como algo positivo e bem "brasileiro", em oposição a modos de existência dos Estados Unidos, na comparação de Candido. Esse "nosso" modo de ser se opõe aos modos de ser dos "puritanos de que se nutrem as sociedades capitalistas" e é muito mais "aberto" do que o deles (SCHWARZ, 2006b, p. 152). Tais paralelos passam a ser feitos sem a devida consideração dos espaços históricos que os circundam, contrariando a tônica do próprio estudo de Candido. "O mundo sem culpa" recebe análise detalhada de Edu Otsuka que levou adiante as ressalvas de Schwarz (2006b) ao estudo de Antonio Candido (2010) e aprofundou as consequências que a abordagem culturalista tiveram, nos momentos que despontaram, para o ensaio de Antonio Candido. Entendida exclusivamente como traço cultural brasileiro, a malandragem tende a ser desvinculada do quadro determinado da organização econômico-social. Desse modo, contudo, a relação entre asMemórias e a sociedade brasileira, tal como apresentada por Candido, fica atenuada (ou talvez mesmo neutralizada). Isso porque a relação entre a obra e a sociedade passa a restringir-se à simples correspondência entre a malandragem literariamente figurada no romance e o comportamento malandro existente na realidade, sem que, no entanto, a própria malandragem real seja entendida em seus fundamentos históricosociais (apenas se constata a sua existência no plano da realidade, como um fato auto-evidente que parece não exigir outra explicação para além do impalpável ethos nacional). Nesse movimento, perde-se uma parte importante da interpretação de Antonio Candido, pois as clivagens internas à sociedade brasileira, com suas desigualdades brutais, que explicam historicamente o predomínio da "dialética de ordem e desordem" tanto na ficção quanto na realidade, bem como os modos de reprodução das fraturas sociais, que explicam a persistência da malandragem, acabam sendo deixados na sombra (OTSUKA, 2007, p. 107-108). O "modo de ser brasileiro", que aparece com toda força no trecho final do ensaio de Candido (2010), é o exemplo máximo do problema que a abordagem culturalista relegou à interpretação da obra e, por consequência, à interpretação da realidade histórica que ela representa. Otsuka (2007, p. 105) especifica que a própria oscilação entre um polo e outro, definida por Candido como a dialética da ordem e da desordem, está atrelada ao problema da desavença pessoal. Esta consiste numa faceta "não explorada" da obra e encobre "o núcleo de violência que, no plano das relações entre as personagens, se manifesta sob a feição de rixas e vinganças". Com isso em vista, Otsuka demonstra que "a estrutura de rixas determinaa organização formal do romance, sendo, ao mesmo tempo, resultantede práticas sociais mais amplas, próprias ao país periféricode economia escravista". A demonstração se dá pela exposição do rol de personagens dominados pelo "espírito rixoso", com o crítico define. A rixa percorre os extremos dos estrados sociais representados na obra, de Vidinha, moça pobre com quem Leonardo tem um relacionamento, à D. Maria, com sua paixão pelas demandas judiciais. Nas disputas vigentes encetadas nas Memórias, "o objeto disputado parece menos importante do que o dano moral infligido ao oponente, de tal modo que a satisfação não decorre tanto da eficácia em alcançar o objetivo, mas sim da capacidade de humilhar o adversário" (OTSUKA, 2007, p. 118). Ou seja, a rixa tem valor por si só na obra, sendo que acaba dirigindo ela mesma a conduta dos personagens, não importando se eles vão ou não angariar algum fruto palpável disso, mas apenas a desforra em si. "À diferença do antagonismo absoluto do romance burguês" (OTSUKA, 2007, p. 115), não se trata de uma vingança colocada como passo para uma ascensão, é picuinha mesmo, uma forma de conseguir vantagem sobre o outro. Levando adiante o método de Candido (2010), detalhado por Schwarz (2006b), Otsuka (2007, p. 115) pontua: Essa divergência na magnitude dos conflitos, evidenciada nas figurações da vingança, deve-se aos diferentes pressupostos histórico-sociais de cada forma. A estruturação dominante no romance burguês -com seu desenvolvimento dramático amplo, governado pela busca consciente de uma finalidade última -está enraizada no processo específico da consolidação da ordem burguesa, em que a troca mercantil se erige como o nexo fundamental que molda a sociedade no conjunto. Como veremos mais detalhadamente a seguir, o domínio das rixas vingativas no romance de Manuel Antônio funda-se em um processo que, embora articulado ao outro, destoa dele, pois no Brasil oitocentista a prevalência do escravismo produzia particularidades na organização social, que definem a feição específica da matéria social brasileira. O detalhamento anunciado por Edu Otsuka consiste em compreender a especificidade histórica da camada social a qual pertence a maior parte dos personagens das Memórias, isto é, os homens livres, nem proprietários nem escravizados vivendo na "ordem escravocrata" 5 Além disso, a sociedade escravocrata na qual estavam inseridos, "estabelecia distinções hierárquicas rígidas, emque a afirmação da desigualdade se tornava um imperativo paraa definição das posições sociais" (OTSUKA, 2007, p. 118). As relações, sobretudo com os poderosos, e qualquer forma de superioridade aos demais tornavam-se uma forma de compensação imaginária . Tal posição impunha um mercado de trabalho muito restrito e, ao mesmo tempo, a necessidade de buscar subsistência nos bens de mercado, já que precisavam pagar por eles: Nessas condições, os homens livres pobres só encontravam maiores chances de obter os meios de sobrevivência através de mecanismos específicos, diferentes do trabalho assalariado, já que não encontravam lugar na esfera da produção, ocupada pelo trabalho escravo; daí a vigência do favor e da malandragem (OTSUKA, 2007, p. 118). # 6 Os estudos referidos acima colocam o romance produzido no século XIX num patamar privilegiado no que diz respeito ao estudo social das formas e da análise dialática. Neste artigo, procuro direcionar esse esforço crítico para o esudo da crônica, um gênero que não recebeu ainda o mesmo empenho de entendiemnto de comparado ao romance. Em outras duas oportunidades, já abordei o problema de estudar a crônica por esse viés (OTSUKA, 2007, p. 118, grifo do autor). Justamente esses "poderosos", a classe dirigente, não figuram, nem de modo recorrente e muito menos como protagonistas das Memórias, daí a situação propícia à rixa a que estavam sujeitos os homens livres, tanto na sociedade brasileira da época quanto no livro: De certo modo, na falta de proteção de um poderoso, a rixa apresenta-se para os pobres como o único lugar em que é possível afirmar uma supremacia (um pouco na realidade e muito na imaginação), em vista da obtenção do sentimento de superioridade e de certo prestígio em relação aos demais (OTSUKA, 2007, p. 121). Completando o quadro, Otsuka (2007, p. 122) observa que na Memórias "proliferam as rixas entre pares, que acabam se sobrepondo ao antagonismo de classes". 7 5 Conforme expressão de Maria Sylvia de C. Franco: Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Ática, 1976. 6 Como lembra Otsuka (2007, p. 118), tal forma de compensação ganhou representação também com o criado de Brás Cubas, nas Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), que se exibe na janela do palacete de seu patrão para "mostrar que não é criado de qualquer", episódio que mereceu análise de Roberto Schwarz (2000a). . Contudo, creio que não atingi 7 Respectivamente: BOENAVIDES, William Moreno. As formas da intervenção: política nas Balas de Estalo de Machado de Assis. 176 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) -Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012 e BOENAVIDES, William Moreno. A cordialidade de Lélio: Machado de o osbjetivos pretendidos e deixei transparecer o enfoque culturalista em detrimento do materialista. Acredito que muito disso se deve ao fato de que, nos dois momentos, associei às características da crônica o conceito de "cordialidade", conforme definido por Sérgio Buarque de Holanda (2002, p. 1044-1055) sem questionar o próprio conceito. Foi decisivo para a percepção de que havia algo de capenga nisso tudo a leitura do artigo "Jeitinho e Jeitão: uma tentativa de interpretação do caráter brasileiro", de Francisco de Oliveira 8 A crônica: algumas tentativas de definição, trajetória e materialidade , pois ele explora o papel ideológico presente na concepção culturalista que consiste, em verdade, em expandir um traço de classe para toda a sociedade. Um estudo ainda não publicado de Edu Otsuka (mimeo) sobre a crônica também muito contribuiu para o ajuste de direcionamento nesse sentido. Com esses elementos, pretendo agora tentar superar um pouco esse modo de estudar a crônica, chamando mais atenção para a materialidade de sua constituição, o que levará a rever também o modo de entender o conceito de "cordialidade". Interessa nesse momento propor a discussão sobre a crônica como gênero literário entendido em perspectiva materialista. Tal debate se faz importante na medida em que a perspectiva culturalista, referida no debate em torno das Memórias de um sargento de milícias (1854), tem imperado nas tentativas de estabelecimento dos traços constitutivos da crônica, inclusive nos comentários de Antonio Candido, que pode ser considerado um pioneiro no tratamento desse assunto. Num texto de 1980, que serviu de introdução a uma coletânea de crônicas destinadas ao público escolar, e que foi republicado em outros momentos pelo autor 9 Assis nas Balas de estalo. Porto Alegre: Organon, n. 28, v. 55, p. 55-71, jul./dez. 2013. 8 Publicado em: Revista Piauí, nº 73, out. 2012. Disponível em: http://piaui.folha.uol.com.br/materia/jeitinho-e-jeitao/. Acesso: 05 de dezembro de 2012. , Candido (1992, p. 13) situa a condição da 9 A primeira publicação desse texto de Candido serviu de introdução ao livro Para gostar de ler: crônicas. São Paulo: Ática, 1980 (Vol. 5). O livro reuniu crônicas de Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. Posteriormente, ele foi recolhido em um volume com textos de vários autores, todos voltados ao estudo da crônica.: A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas, SP: Editora da UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992. O texto de Candido nesse livro também cumpriu o papel de introdução ("À guisa de introdução" dizia a inscrição que acompanhava o título do seu artigo). No ano seguinte a essa publicação, integrou o livro de ensaios de Antonio Candido: Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. Em todos os casos, o texto permaneceu rigorosamente o mesmo, incluindo apenas indicações em nota de rodapé sobre a coletânea da série "Para gostar de ler" que originou a primeira publicação (Cf. CANDIDO, 1980; 1992; 1993 # Global Journal of Human Social Science Year 2019 crônica como "gênero menor", no sentido de que a literatura de uma dada nacionalidade não teria, só com cronistas, o "brilho universal dos grandes romancistas, dramaturgos e poetas", da mesma forma, não "se pensaria em atribuir o Prêmio Nobel a um cronista, por melhor que fosse". Note-se que o que é referido por Candido, nesse primeiro momento, para definir ou não a grandeza de um gênero são categorias abstratas, como "brilho universal" e os mecanismos institucionalizados de consagração, como o Prêmio Nobel. Contudo, o que impera no texto do autor não é uma visão pejorativa do gênero; ao contrário, ele comemora essa não grandiosidade da crônica, que possibilita que ela fique "perto de nós". Mesmo assim, num primeiro momento, o autor (CANDIDO, 1992, p. 13-14) parece não a considerar propriamente literatura, já que vê na crônica um "caminho não apenas para vida, que ela serve de perto, mas para a literatura", mas essa visão vai se alterando no andamento do texto: Por meio dos assuntos, da composição aparentemente solta, do ar de coisa sem necessidade que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de todo o dia. Principalmente porque elabora uma linguagem que fala de perto ao nosso modo de ser mais natural. Na sua despretensão, humaniza; e esta humanização lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão uma certa profundidade de significado e um certo acabamento de forma, que de repente podem fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à perfeição. Essas aparentes despretensão e proximidade vão marcar o entendimento de Candido sobre a crônica em sentido mais geral. Diz ele: "vamos pensar um pouco na própria crônica como gênero. Lembrar, por exemplo, que o fato de ficar tão perto do dia a dia age como quebra do monumental e da ênfase" (CANDIDO, 1992, p. 14). O que seria bom, já que há "um problema" na "magnitude do assunto" e na "pompa da linguagem", pois "eles podem atuar como disfarce da realidade e até mesmo da verdade". Para o autor(CANDIDO, 1992, p. 14), "a literatura corre com frequência este risco, cujo resultado é quebrar no leitor a possibilidade de ver as coisas com retidão e pensar em consequência disto". Já a "crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas". Ela não oferece "um cenário excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas". Para Candido, esses traços positivos da crônica se devem a suas condições de produção, já que não foram feitas para o livro, mas para o jornal, possuem, por outro lado podemos considerá-lo uma visão pronta de Candido sobre o gênero, haja vista suas republicações e a ausência de comentários seus em contrário. sendo sua filha "e da era da máquina, onde tudo acaba tão depressa" (CANDIDO, 1992, p. 14), acabam incorporando o caráter transitório do veículo e não são produzidas com o intuito de permanecerem "na lembrança e na admiração da posteridade; e a sua perspectiva não é a dos que escrevem do alto da montanha, mas do simples rés-do-chão" (CANDIDO, 1992, p. 14). Existe uma oposição no pensamento de Candido entre tratar de assuntos cotidianos e ter vigência para além desse cotidiano. Mesmo que sua visão se refine na continuação do texto em relação ao contexto de surgimento da crônica: "retificando o que ficou dito atrás, ela não nasceu propriamente com o jornal, mas só quando este se tomou quotidiano, de tiragem relativamente grande e teor accessível, isto é, há uns cento e cinquenta anos mais ou menos [o que seriaem torno de 1830]" (CANDIDO, 1992, p. 15); o mesmo não vai acontecer em relação à constituição do gênero que se forma nesse contexto complexo, tendo sua constituição sempre marcada por um olhar benévolo e pouco problematizador. Isso se revela numa dimensão que irá marcar o tratamento culturalista que a constituição desse gênero receberá por parte do autor. Ainda se referindo à crônica como gênero, vai dizer ele: No Brasil ela tem uma boa história, e até se poderia dizer que sob vários aspectos é um gênero brasileiro, pela naturalidade com que se aclimatou aqui e a originalidade com que aqui se desenvolveu. Antes de ser crônica propriamente dita foi "folhetim", ou seja, um artigo de rodapé sobre as questões do dia, -políticas, sociais. artísticas, literárias. Assim eram os da secção "Ao correr da pena" , título significativo a cuja sombra José de Alencar escrevia semanalmente para o Correio Mercantil, de 1854 a 1855. Aos poucos o "folhetim" foi encurtando e ganhando certa gratuidade, certo ar de quem está escrevendo à toa, sem dar muita importância. Depois, entrou francamente pelo tom ligeiro e encolheu de tamanho, até chegar ao que é hoje. Ao longo deste percurso, foi largando cada vez mais a intenção de informar e comentar (deixada a outros tipos de jornalismo), para ficar sobretudo com a de divertir. A linguagem se tomou mais leve, mais descompromissada e (fato decisivo) se afastou da lógica argumentativa ou da crítica política, para penetrar poesia adentro. Creio que a fórmula moderna, onde entra um fato miúdo e um toque humorístico, com seu quantum satis de poesia, representa o amadurecimento e o encontro mais puro da crônica consigo mesma (CANDIDO, 1992, p. 15). Fato miúdo, humor e poesia, elementos da modernidade incorporados pela crônica marcam sua identidade como gênero. Nesse processo de constituição da crônica, no século XIX, mesmo com variações entre os autores, nela "ainda se notava mais o corte de artigo leve", que foi sendo acompanhado de umacrescente "dose poética" 11 Se lembrarmos que em seu conhecido estudo, "O direito à literatura", ele concebe literatura da "maneira mais ampla possível", compreendendo desde o folclore e a lenda até as formas mais "complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações" (CANDIDO, 2004, p. 174), percebemos que, embora oscile em alguns momentos, mesmo no limite com o jornalismo, a crônica ocupa para Candido um lugar . Para Candido (1992, p. 16), o fato é que a crônica, como gênero, é,pela contribuição de muitos autores, um "produto sui generis do jornalismo literário brasileiro" (CANDIDO, 1992, p. 16). De forma genérica, ele diz que as crônicas têm um "tom menor de coisa familiar" (CANDIDO, 1992, p. 17). Contudo, ao se referir especificamente às crônicas selecionadas na coletânea cuja introdução está escrevendo, o autor considera que, mesmo mantendo um "ar despreocupado, de quem está falando coisas sem maior consequência" elas "não apenas entram fundo no significado dos atos e sentimentos do homem, mas podem levar longe a crítica social"(CANDIDO, 1992, p. 17-18). Em passagens assim, fica exposto nesse texto que a eleição das características que serão consideradas inerentes ao do gênero e as que serão destinadas a um conjunto específico, considerado superior, obedece a critérios de seletividade não muito explicitados. Na sequência, Candido (1992, p. 19) vai dizer diretamente que "simplicidade, brevidade e graça" são "próprias da crônica", são "traços constitutivos da crônica" e "são um veículo privilegiado para mostrar de modo persuasivo muita coisa que divertindo, atrai, inspira e faz amadurecer a nossa visão das coisas". Diz isso e refuta a "ideia falsa" de que a "leveza é superficial". 11 Essa visão de Candido será retomada por Arrigucci Júnior (2001) e revela a proximidade de ambos que enxergam uma suposta evolução do gênero que teria como ponto de chegada Rubem Braga, cujas crônicas são carregadas de lirismo. Para ambos os críticos, mais ainda no caso de Arrigucci, Rubem Braga é um modelo de cronista, que serve de baliza para a avaliação dos demais. Nesse sentido, Antonio Candido (1992, p. 17) vai dizer o seguinte: "Acho que foi no decênio de 1930 que a crônica moderna se definiu e consolidou no Brasil, como gênero bem nosso, cultivado por um número crescente de escritores e jornalistas, com os seus rotineiros e os seus mestres." Entre estes, aquele estará "voltado de maneira praticamente exclusiva para este gênero: Rubem Braga". Já Arrigucci (2001, p. 55) afirmará: "Braga, embora poeta bissexto e contista eventual, escreve crônicas desde a década de 30 e foi decerto quem deu o maior grau de autonomia estética a esse gênero entre nós [brasileiros], tornando-se, por isso, um modelo de cronista". dentro da literatura, possuindo as três faces que ele atribui a ela: construção de objetos autônomos como estrutura e significado; forma de expressão, ou seja, ressignifica a experiência humana no plano simbólico e, por fim, forma de conhecimento, mesmo que de modo difuso e inconsciente. Enfatizando o papel da forma nesse processo, o autor afirma que ao ordenar um mundo, a literatura, mesmo que não percebamos conscientemente, torna-se um fator que nos deixa mais capazes de ordenar nossa experiência e a visão que temos do mundo. Na relação com o conteúdo, de modo lapidar, ele destaca: "o conteúdo só atua por causa da forma, e a forma traz em si, virtualmente, uma capacidade de humanizar devido à coerência mental que pressupõe e que sugere" (CANDIDO, 2004, p. 178). A maior parte do pontuado por Candido (1992) sobre o gênero tornou-se uma espécie de lugar-comum sobre a crônica: leveza, assunto miúdo, humor, diversidade formal e vínculo com o dia a dia pelo jornal. Essa é a visão recorrente que reaparecerá, por exemplo, em Sá (1987), Arrigucci Jr. (2001). Como lembra Chalhoub et alli (2005, p. 9-10), tais características haviam sido esboçadas em duas crônicas de Machado de Assis: uma em 1º de agosto de 1876 e outra em 1º de novembro do ano seguinte, ambas publicadas na Ilustração Brasileira 12 De fato, esse modo de entender a crônica perpassa o texto de Candido (1992) que acrescentou a ela essa dimensão de gênero nacional. Como temos visto, a análise que Candido faz da formação da crônica não é levado a cabo pelo método dialético que consolidou outros de seus estudos, como o "Dialética da Malandragem" (CANDIDO, 2010, p. 17-47), mesmo que até ele tenha merecido ressalvas no tocante a isso, como o faz Schwarz (2006, p. 153-154) e Edu Otsuka (2007). A perspectiva adotada por Candido (1992) para estudar a crônica é antes culturalista, ou seja, toma um dado que é histórico e material e o transforma em característica, genericamente posta, da cultura . Mesmo que: apenas esboçadas na pena de Machado, acabaram, com os anos, por servir de base às tentativas de definição de uma essência para o gênero. Embora tenha por tempos garantido simpatia e condescendência à crônica, essa definição acabou por transformá-la em uma espécie de filha bastarda da arte literária (CHALHOUB et alli, 2005, p. 9). 12 Hoje contamos com duas boas edições que reúnem as crônicas de Machado de Assis nessa série: ASSIS, Machado de. História de quinze dias / Machado de Assis; organização, introdução e notas: Leonardo Affonso de Miranda Pereira. -Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009. E ASSIS, Machado de. História de quinze dias, história de trinta dias: crônicas de Machado de Assis, Manassés; Sílvia Maria Azevedo (org.). -São Paulo: Editora Unesp, 2010. Como indica essa última referência, Machado escrevia a referida série com o pseudônimo de Manassés. A série mudou de nome quando a publicação da revista deixou de ser quinzenal e passou a ser mensal. brasileira. Veja-se que a materialidade da produção e da circulação da crônica (profissionais pagos, produto a ser vendido, presença de anúncios, periodicidade...) impõe limites a uma abordagem desse tipo e indica a necessidade de que o estudo disponha de maior rigor histórico e social. Outro estudo sobre a crônica que, apesar dos méritos, sucumbiu a tal perspectiva, foi o de Arrigucci Jr. (2001, p. 51). Para ele: "Esse gênero de literatura ligado ao jornal está entre nós há mais de um século e se aclimatou com tal naturalidade, que parece nosso". Mesmo que "na origem" tenha dependido "da influência europeia", logo alcançou "porém, um desenvolvimento próprio extremamente significativo" (ARRIGUCCI JR., p. 53). Assim como Candido (1992), Arrigucci Jr. (2001) faz agudas observações sobre a complexidade do surgimento da crônica e seu contexto de produção e leitura, que exigiam um considerável desenvolvimento social. Nenhum dos dois críticos, contudo, busca averiguar os traços inscritos no gênero que tenham advindo desse contexto. Fica-se numa situação de consideração da crônica como um "gênero menor" e a tentativa de valorizá-la, apesar disso, como que pedindo desculpas 13 Aquele espaço vale-tudo suscita todas as formas e modalidades de diversão escrita: nele se contam piadas, se fala de crimes e de monstros, se . Nesse processo, muitos elementos importantes acabam sendo levantados, mas o problema de uma análise mais materialista para o estudo de constituição do gênero continua em aberto. Antes de assumir o sentido modernamente atribuído a ela, "crônica" era sinônimo de "crônica histórica". O sentido atual, designando "um gênero específico, estritamente ligado ao jornalismo", possivelmente foi sendo construído no século XIX, "não havendo certeza se em Portugal ou no Brasil" (COUTINHO, 2008, p. 121). Espacialmente no jornal, a crônica situava-se inicialmente ao pé da primeira página -daí, por exemplo, a designação de "vida ao rés-do-chão" que, como vimos, ganhou com Antonio Candido (1992). Esse espaço, antes dela, costumava ser ocupado pelo chamado "folhetim", lugar de publicação de muitos romances seriados e também de contos, mas que, antes de virar crônica, abrigava artigos variados do dia a dia, muito comum na França, e que era "um espaço vazio destinado ao entretenimento" (MEYER, 1998, p. 113). Ou seja, era mais uma função e um espaço do que propriamente uma seção: 13 Arrigucci Jr. (2001, p. 57-58) chega a dizer que ao escrever crônicas no jornal, os autores estavam "experimentando a mão" para e escrita do romance: "E de fato os escritores como que se preparavam, por esse meio, para um gênero maior e na aparência mais seguro por seu próprio inacabamento -o romance". Assim, ele retoma uma velha e unilateral fórmula que define a escrita da crônica como um "laboratório ficcional" (BRAYNER, 1982). Esse ponto será comentado no item 3.4 do presente trabalho. propõem charadas, se oferecem receitas de cozinha ou de beleza; aberto às novidades, nele se criticam as últimas peças, os livros recém-saídos (...) (MEYER, 1998, p. 114). Ao especificar-se, o folhetim acrescentava ao seu título a área que, naquele dia, seria comentada naquele espaço. No folhetim dramático, fazia-se a crítica teatral; no folhetim literário, as resenhas de livros; quando os assuntos eram diversos demais para serem acolhidos em uma categoria, eram os folhetins sobre variedades e coisas da vida. Por seu tremendo apelo comercial (a variedade de assuntos chamava atenção de um público bastante diversificado), os folhetins tiveram lugar de destaque no jornalismo francês e se expandiram parao brasileiro (MEYER, 1998, p. 114). A transição desse folhetim originário do jornalismo francês para a crônica jornalística costuma causar polêmica, e a tendência de demarcar a crônica como "brasileira" em oposição ao folhetim vem daí. O fato é que há uma zona de indeterminação entre os dois tipos de escrito, o que não quer dizer que não possam ser discerníveis. Em meados do século XIX no Brasil, contudo, esse discernimento não era possível. Os escritos de José de Alencar, "Ao correr da pena", por exemplo, publicados de 1854 a 1855, tratados hoje sem discussão como crônicas, ainda eram chamados de folhetim, conforme título da seção que ocupou no Correio Mercantil e no Diário do Rio de Janeiro (cf. ALENCAR, [s.d.], p. 1 e 137). Do mesmo modo, Machado de Assis (2009, p. 55-58), em 1859, ao delimitar o perfil do "Folhetinista" -título do seu texto de 30 de outubro no jornal O Espelho -descreveu as mesmas características com as quais ele mesmo mais tarde 14 estender-se à definição da própria seção e do tipo de literatura que nela se produzia. Assim, "crônica" passou a significar outra coisa: um gênero literário de prosa, ao qual menos importa o assunto, em geral efêmero, do que as qualidades de estilo, a definira o cronista. O folhetinista, diz ele, como o "colibri" (ASSIS, 2009, p. 56), vai para um lado e para o outro em busca de assunto. Também com outros gêneros o folhetim se confundiu: "Folhetim era a crônica, mas também a novela ou romance, quando publicado em jornal" (COUTINHO, 2008, p. 124). Passado o período em que, em língua portuguesa, os termos crônica e folhetim designavam o mesmo produto jornalístico, "venceu e generalizou-se afinal o termo "crônica", ficando "folhetim" para designar mais a seção, na qual se publicavam não só crônicas senão também ficção e todas as formas literárias" (COUTINHO, 2008, p. 122). "Crônica", então, passou a "indicar relato e comentário dos fatos em pequena seção de jornais" para, por fim: variedade, a finura e argúcia na apreciação, a graça na análise de fatos miúdos e sem importância, ou na crítica de pessoas. "Crônicas" são pequenas produções em prosa, com essas características, aparecidas em jornais e revistas ( Como observa Chalhoub et alli (2005, p. 10), a perspectiva que considera a crônica dotada do "caráter despretensioso e datado de uma notícia de jornal" e "produzida por força das circunstâncias, sem obedecer a nenhum impulso criativo mais elevado" é a mesma que afirma "o caráter passageiro dessa literatura com data de validade, cujo brilho se esgotava com a edição seguinte da folha". Contudo, essa perspectiva só existe se não atentarmos "para o fato de que muitos romances e contos escritos na segunda metade do século XIX foram publicados originalmente em jornais, muitas vezes com pressão de prazos idêntica àquela que inibiria a qualidade das crônicas" (CHALHOUB et alli 2005, p. 10). A título de ilustração, lembremos o que disse Ferreira de Araújo (ARAÚJO, 1899, posição Kindle 11005) sobre a produção nas páginas da Gazeta de Notícias: quando havia um debate em aberto em relação a alguma causa em que o jornal estava envolvido, ela era discutida imediatamente, seja em verso, em conto, em anedota ou qualquer seção do jornal, sem distinção de gênero para acolher a demanda. Não custa lembrar também que um livro como O Ateneu (crônicas de saudades), de 1888, foi "escrito dia a dia, no correr de três meses, para a Gazeta de Notícias" (COUTINHO, 2008, p. 127). Está posto, por tudo que foi dito, que aos poucos a crônica foi ganhando contornos próprios e se tornando independente do folhetim, mas que também guarda afinidades com ele, assim como com outros gêneros que se desenvolveram no transcurso de sua consolidação. # Balas de estalo: pressupostos e características da crônica como representação da vida social brasileira Não parece exagero apontar que na década de 1880 a crônica como gênero apresenta alguns de seus traços já cristalizados, pois eram recorrentes na produção daqueles que ocupavam a posição de cronista de jornal no Brasil desde a metade do século XIX. Consideradas as experiências de autores como Francisco Otaviano, José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, Manuel Antônio de Almeida, além do próprio Machado de Assis, entre outros (cf. COUTINHO, 2013, p. 124; CANO, 2004, p. 7-11), podemos inferir que os traços constitutivos do gênero já haviam se tornado convencionais. Quanto a isso, Franco Moretti (2007, p. 25 grifo do autor) destaca que o conceito de "convenção" é "essencial para a análise da cultura", isso "por que indica quando uma forma assumiu uma raiz social definitiva, penetrando na vida cotidiana, animando e organizando-a de maneira cada vez mais imperceptível e regular e, portanto, eficaz". A prática do gênero crônica no Brasil ao longo das décadas, ao mesmo tempo que reduziu a possível indeterminação em que cairia, regulamentou os seus modos de escrita. Nesse sentido, destaco aqui a sérieBalas de estalo, publicada entre os anos de 1883 e 1886 no jornal Gazeta de Notícias. Essa série foi escrita por autores que se revezavam nas produções, usando pseudônimos 15 . Essa sérietraz a possibilidade de estudo da crônica como gênero em formação e permite o entendimento da constituição desse gênero, já que na prática compartilhada da escrita das crônicas da série Balas de estalo é possível observar a sedimentação e os limites da prática convencional do gênero. A diversidade de seus autores permite a observaçãodo contraste entre os diferentes usos do mesmo espaço num mesmo jornal, jornal esse bastante reconhecido e com linha editorial definida (por um dos cronistas -Ferreira de Araújo -inclusive). Com Benjamin (2011, p. 33),vemos que"uma obra importante, ou funda um gênero ou se destaca dele, e nas mais perfeitas encontra-se as duas coisas". As Balas de estalo corresponderam à cristalização e exploração dos limites da crônica enquanto gênero, práticas, aliás, que tendem a andar juntas. Por isso,os usos comuns de seus autores sob essa rubrica nos servem para analisar a constituição do gênero crônica. A brevidade, o humor, a informalidade, a busca por assuntos variados que recebem tratamento aparentemente simples, a coloquialidade da linguagem, seu vínculo com o cotidiano e com o jornalismo estão postos nessas primeiras décadas de prática do gênero no Brasil e são facilmente perceptíveis nas Balas de estalo. Ela é um "gênero de fronteira" (AGUIAR, 1997), por isso, em condição limítrofe absorve características diversas, da literatura, mas também de outras áreas. Talvez justamente por ocupar essa posição, ela tem a capacidade de penetrar agudamente na matéria íntima de seu tempo e esquivar-se da corrosão dos anos, como se nela se pudesse sempre renovar, aos olhos de um leitor atual, um teor de verdade íntima, humana e histórica, impresso na massa passageira dos fatos esfarelando-se na direção do passado (ARRIGUCCI JR. (2001, p. 53). De semelhança com sua ancestral, a crônica histórica, podemos dizer que a crônica moderna guarda a relação com o tempo. Entre os "vários significados da palavra crônica", Arrigucci Jr. (2001, p. 51) observa que todos "implicam a noção de tempo, presente no próprio termo que procede do grego chronos". Por fixar a continuidade do gesto humano na tela do tempo", pode-se dizer que sua "matéria principal" é "o que fica do vivido". Ela, então, luta contra o tempo, buscando eternizar o efêmero. Como temos visto, a crônica proporciona por suas características o tratamento mais íntimo dos temas que aborda. Seja pelo assunto geralmente ao alcance de todos, pois colhido no cotidiano, seja pela linguagem coloquial (o que não quer dizer que seja uma linguagem simples de analisar), pela aparente leveza, mesmo que possa esconder um humor cortante, ela é facilmente vista como algo próximo. Além de tudo, está presente nos jornais e revistas, que tendem a circular de forma mais ampla do que o livro. A crônica é, em suma, propensa à informalidade. Contudo, ao ser publicada em periódicos, penetra na esfera pública. Entre os vários limites nos quais esse gênero se encontra, o limite entre a formalidade e a informalidade é um deles, afinal, trata-se, em verdade, de encenação dessa informalidade, já que o narradorcronista não é amigo do leitor nem vice-versa. Também ele não está conversando com o outro, mas escreveu um texto pelo qual foi pago e para cuja construção teve que cumprir alguns protocolos de escrita. Esse limite entre a formalidade e a informalidade encena a imbricação entre o público e o privado. Edu Otsuka (mimeo, p. 4) oferece elementos para o estudo da crônica em perspectiva de sua "simbiose com elementos centrais da vida social e cultural do país" (OTSUKA, mimeo, p. 1). O mesmo autor questiona a caraterização do gênero como algo "brasileiro" e se pergunta de onde viria um certo "orgulho" ao se pensar assim. Aqui não desacreditei e não pretendo desacreditar os traços e as análises que dão tal caracterização à crônica. Contudo, procuro compreender esse "ser brasileira" não como um traço de cultura, mas como um dado material. Otsuka (mimeo) entende que existe uma seletividade na escolha dos assuntos e do tom com que eram trazidos à tona nas crônicas e que essa seletividade está relacionada "com os efeitos particulares da organização econômico-social brasileira -historicamente fundada no sistema escravista" (OTSUKA, mimeo, p. 4). De modo que esse jeito ameno e familiar da crônica assinala um contexto em que se abdica da "sua potencial função pública, conformando-se antes aos padrões mais estreitos da esfera doméstica". Entre todos os gêneros, diz ainda Otsuka (mimeo, p. 4), a crônica é, "justamente, o lugar em que se elabora de modo mais acentuado o estilo que se molda pela atmosfera familiar". Assim, ela mantinha "características provenientes do modelo europeu", como "a leveza da expressão e o ziguezaguear na associação de ideias (...)", mas essas se mostraram "também convenções adequadas para a estilização da informalidade e da arbitrariedade próprias às relações familistas". Nessa seara, Otsuka (mimeo, p. 2) vale-se do estudo de Jürgen Habermas (2003) para debater a constituição da "esfera pública burguesa", conforme desenvolvida pelo teórico, e seus limites na sociedade brasileira. Ela corresponderia a uma espécie de intermediação entre os indivíduos privados organizados na sociedade civil e o poder público, sobre cujos assuntos esses mesmos indivíduos debatem ao mesmo tempo que questionam esse poder. Habermas (2003, p. 13-17) faz um histórico do que seria essa esfera pública ao longo do tempo, partindo da Grécia antiga e chegando à sociedade burguesa, dita moderna. Também traz elementos etimológicos da palavra "público" e destaca seu vínculo, talvez não tão óbvio para nós hoje, com a publicidade. Da mesma forma, nem tudo que é considerado "público" está ao alcance de qualquer um. Focando no que nos interessa mais, Habermas (2003) faz o recorte histórico classicamente materialista 16 16 Veja-se Marx e Engels (2012) e Engels (2008). , delimitando as transformações do seu objeto de estudo e o que seria sua versão "burguesa" com a desintegração da sociedade feudal, a partir da qual delineou-se a esfera da sociedade burguesa que, dizendo-se representante da autonomia privada, contrapõe-se aoEstado. Sem podermos nos dedicar aqui às contradições próprias dessa esfera pública burguesa, "que nunca existiu de fato com a universalidade que seus membros pretendiam" (OTSUKA, mimeo, p. 2), ou diziam pretender, destacamos que a tradição familista comentada por Otsuka (mimeo) para entender as características da crônica estava alicerçada no clientelismo e na economia rural explorada pela elite brasileira. Essa tradição se afasta da forma como o processo se desenvolveu em países europeus que ocupavam o centro do capitalismo ocidental no século XIX. Somos levados a considerar essa especificidade ao tratar da esfera pública brasileira em relação ao modo como pretensamente essa esfera assumiu em contexto burguês. Mesmo com diferença de base material, no Brasil vimos a apropriação de ideias estrangeiras pelas elites letradas locais. Para Schwarz (2000a), essa importação de ideias era predominantemente ornamental. Já Ângela Alonso (2002) entende que essa apropriação se destinava a disputas concretas entre os grupos que se formavam (como vimos no primeiro capítulo desse trabalho). A autora comenta que o Império não contou com um texto de fundação, os "valores compartilhados estavam cristalizados como tradição. Tradição essa construída "a partir de duas balizas: a experiência nacional e o repertório europeu" (ALONSO, 2002, p. 52, 53, grifo da autora). A ideia de esfera pública burguesa, falsamente universalizante, "tinha apoio na expansão da imprensa periódica, sobretudo o jornal, que incitava o público a participar e podia então ser plausivelmente concebido como o principal veículo para a formação da opinião pública" (OTSUKA, mimeo, p. 2). No cotidiano e no jornal, esses valores compartilhados eram, respectivamente, vividos e representados. A crônica, por sua vez, traz em si as marcas de seu contexto, incorporando a matéria cotidiana como tema, mas ao mesmo tempo apresenta esse nexo com o jornal e com a notícia, fundindo as vozes locais ao processo específico de internacionalização pelo qual o país passava. Se o modo como o processo se desenvolveu na Europa já era marcadamente seletivo, aqui essa desigualdade se acentuou em função da maior desigualdade social e do contexto contraditório em que o vocabulário científico e a pretensão de cópia de modelos estrangeiros convivia com práticas que lembram mais sociedades ditas primitivas, com permanência de alguns valores comunitários, mas também baseados na "rixa" (para falarmos com Edu Otsuka, 2007), que incluía a violência física. Em um universo em que a defesa da honra era feita com a retaliação pessoal, em função da falta de regulamentação da vida social, os valores compartilhados pela cultura letrada diziam mais respeito ao repertório europeu, desligado da experiência brasileira, mas ao mesmo tempo utilizado para suas disputas internas. Assim, o desenvolvimento da crônica vai despontar no contexto do século XIX, momento de grande evidência das contradições próprias da situação periférica brasileira, em que a perspectiva pretensamente modernizante entrava em contraste com a matéria local. Elas, portanto,"afloram em meio ao material do passado, herança persistente da sociedade tradicional, as novidades burguesas trazidas pelo processo de modernização do país, de que o jornal era um dos instrumentos" (ARRIGUCCI JR., 2001, p. 57). Se enfatizarmos o contexto mais imediato de publicação da Balas de estalo, isto é, a década de 1880, período final do império, o tratamento íntimo e familiar dado aos temas e sua relação com a precariedade da esfera pública por aqui ganha nova dimensão. Segundo Starling (2008, p. 31), "durante a década de 1880, na cidade do Rio de Janeiro, a rua transformou-se no locus capaz de fazer convergir acontecimentos e temas da vida política do país e o homem comum", tratava-se do "fenômeno de reconfiguração política do espaço urbano". Nesse sentido, a condição específica de produção das Balas de estalo no tocante a isso, indica que há um esforço para construção dessa esfera pública, restrita à elite letrada, do qual a alternância entre os narradorescronistas é indicativo formal. Contudo, esse suposto momento em que a política parecia mais próxima de cada um é ilusório.Como demonstra Heloísa Starling (2008, p. 33), naquele momento projetava-se um sistema político cujo "centro de equilíbrio sustentava-se num sistema constitucional rigidamente oligárquico, que estava longe de conter uma preocupação com a ampliação da participação política dos grupos sociais existentes na condução dos negócios públicos". Juntemos a isso a reforma eleitoral da lei Saraiva, de 1881, com a qual o número de eleitores caiu drasticamente: 0,8% da população total tinha efetivamente votado (HOLANDA, 2008, p. 284-5). Sendo que cerca dez anos antes, em 1872, esse percentual era de 13% da população total (CARVALHO, 2001, p. 39). Para Edu Otsuka (2007, p. 1-2; 5), "a crônica foi se tornando o que veio a ser à medida que se desprendia do comentário sobre os fatos políticos, sociais, teatrais, literários etc. e se libertava do andamento argumentativo" e neste "registro não argumentativo, o leitor não é incitado ao debate racional, não é convocado como sujeito esclarecido e independente, mas é antes engolido pela subjetividade do cronista ou, pelo menos, levado a mergulhar nela voluntariamente". Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionário "patrimonial" do puro burocrata conforme a definição de Max Weber. Para funcionário "patrimonial", a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere, relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro estado burocrático, em que prevalecem a especialidade das funções e o esforço para se especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos. A escolha dos homens que irão exercer funções públicas faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos de acordo com suas capacidades próprias. Falta a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida do Estado burocrático (HOLANDA, 2002, p. 1048-1049). Essa é a dimensão pública da "cordialidade" à brasileira, que, de acordo com o historiador, deve ser tomada em seu sentido etimológico, aquilo que é tão íntimo que provém do coração e, por isso, leva a uma "aversão ao ritualismo social", de onde pode emergir tanto a amizade quanto a inimizade. Linguisticamente, tal característica manifesta-se em um "pendor acentuado para o emprego dos diminutivos" que "serve para nos familiarizar mais com as pessoas ou os objetos e, ao mesmo tempo, para lhes dar relevo" (HOLANDA, 2002, p. 1051). No discurso do cronista, ao dar tratamento íntimo aos temas públicos, como quem conversa com seu leitor, está inscrito essa expansão da vida familiar sobre a pública. A informalidade no tratamento dos assuntos, a aparente despretensão e a linguagem coloquial aparecem como formalização da cordialidade, conforme definido. Cabe evitar que tal caracterização seja abordada por um viés culturalista, o que traria prejuízos tanto para o entendimento da crônica quanto para o da sociedade na qual ela está inserida. Para tentar não cometer esse equívoco, retomo aqui o que Francisco de Oliveira (2012) escreveu sobre o "jeitinho brasileiro". Este seria um "peculiar modo nacional de livrar-se de problemas, ou de falsificá-los" (OLIVEIRA, 2012, p. 3) e teria no "homem cordial" de Sérgio Buarque de Holanda sua "própria encarnação" (OLIVEIRA, 2012, p. 4). O autor, para fazer suas considerações, refere-se ao estudo que comentamos anteriormente aqui, de Antonio Candido (2010), sobre as Memórias de um sargento de milícias (1854). Para Oliveira (2012, p. 4), o olhar benevolente de Candido sobre a malandragem por ele estudada -e, dizemos nós, de certo modo criticada, embora também enaltecida, tanto por Schwarz (2006b) quanto por Otsuka (2007) -se deve ao fato de o crítico respeitar"tanto o brasileiro pobre que aborda as figuras populares comuma reverência quase mística", isso porque "nossa sociedade é tão obscenamente desigual que qualquercrítica às classes dominadas não passa de preconceito -mais um -dos ricos". Contudo, Francisco de Oliveira é direto: "busco desenvolver uma investida mais nitidamente materialista"(OLIVEIRA, 2012, p. 4). E depois expõe sem rodeios a sua tese: "o jeitinho é um atributo das classes dominantes brasileiras que se transmitiu às classesdominadas"(OLIVEIRA, 2012, p. 4). Ele indica um caminho precioso para debater o problema: a concepção de ideologia provinda do marxismo, especificamente deA ideologia alemã, de Marx e Engels (2007). Para sustentar a tese de que o jeitinho (e, portanto, a cordialidade) correspondem a "atributos das classes dominantes brasileiras" transmitidos "às classes dominadas" (OLIVEIRA, 2012, p. 4). Vejamos a concepção de Marx e Engels sobre o assunto: As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios da produção material dispõe também dos meios da produção espiritual, de modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da produção espiritual. As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais apreendidas como ideias (MARX e ENGELS, 2007, p. 47, grifos dos autores). A análise de Francisco de Oliveira (2012) mostra como um "jeitão" da elite, portanto, de classe, foi universalizado como caráter nacional brasileiro. Trata-se de um atributo transmitido pela elite. O modo de apropriação pode trazer os índices de resistência, de desvio ou de transgressão desse atributo, mesmo que aparentemente o afirme. Em síntese, o fato de o Brasil ter uma elite cordial não quer dizer que "o brasileiro" o seja. Contudo, como a elite dispõe de meios de difusão e reprodução de sua ideologia, tal característica, definida em base material e com corte de classe, expande-se e falsamente se transforma em traço cultural, englobando todas as classes, aparentemente sem distingui-las. Na prática, contudo, as manifestações da cordialidade variam conforme o pertencimento de classe. É o "jeitão" da elite e o "jeitinho" dos pobres 17 De modo nenhum tenho a pretensão de invalidar a obra, sequer o conceito de cordialidade elaborado por Sérgio Buarque de Holanda. Essa generalização, que hegemoniza um dado de classe e o torna nacional, precisa, contudo, ser eliminada. Não vejo forma mais lapidar de entender a cordialidade em base materialista do que essa indicada por Francisco de Oliveira (2012).Para o maior aproveitamento desse debate para o estudo da crônica, é necessário ainda tocar em dois pontos: a questão do Estado e da família. Isso porque os principais elementos levantados aqui . Os materialmente dominadosisto é, os não detentores dos meios de produçãopassam, então, a ser também ideologicamente dominados e sua consciência se volta contra eles mesmos. Ou seja, a falsa produção da consciência é trabalho da burguesia. A consciência se desliga da própria existência concreta, que passa a ser enxergada com os olhos da classe dominante. "No Brasil", diz Oliveira (2012, p. 4), a classe dominante burlou de maneira permanente e recorrente as leis vigentes" e o "drible constante nas soluções formais propicia a arrancada rumo à informalidade generalizada. E se transforma, ao longo da perpétua formação e deformação nacionais, em predicado dos dominados". 17 Para uma mediação bem construída de um conceito cuja aplicação deve variar conforme a classe em questão, mas que também passou e passa por um processo de generalização que pretende desconsiderar justamente as especificidades de classe, veja-se Araújo e Reis (2015), em que a prática do "favor" é analisada em Os Ratos (1935), de Dyonélio Machado. O artigo mostra que o favor na relação entre Naziazeno e o diretor é de um tipo diferente do favor entre aquele e Duque. para definir esse perfil cordial que teria migrado como traço esteticamente formalizado para a crônica dizem respeito diretamente a isso. A primeira questão referese à maneira como o Estado aparece no estudo de Sérgio Buarque de Holanda. Grosso modo, fica dito que o Estado é uma instituição objetiva, oposta em tudo aos interesses privados. Lênin (2010, p. 27), contudo, ao estudar a concepção marxista de Estado, é taxativo: "O Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de classe não podem objetivamente ser conciliados. E, reciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições de classes são inconciliáveis". O Estado é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das classes. Mais adiante ele complementa: "O Estado é a organização especial de uma força, da força destinada a subjugar determinada classe" (LÊNIN, 2010, p. 45). A concepção de Estado que transparece em "O homem cordial" está mais próxima das concepções que Lênin (2010, p. 27) atribui aos "ideólogos burguesas", que estabelecem que "Estado é o órgão de conciliação das classes". A descrição do Estado burguês clássico como objetivo e imparcial é fruto da própria dominação da classe cujos interesses esse Estado defende. Por fim, a questão da família que aparece nas referências à cordialidade e sua tradição familista de tratar como próprios o que é público. Assim como Lênin fez em relação ao Estado, podemos fazer em relação a essa família e perguntar: família de quem? Ou melhor, família de que classe pode, na formação histórica do Brasil, apropriar-se e fazer uso privado do que é público? Conforme Marx e Engels (2007, p. 33-34), cada família "no início constitui a única relação social", mas "torna-se mais tarde (...) uma relação secundária", que é a relação com as instituições sociais. O desenvolvimento desse caminho deve-se dar "segundo os dados empíricos existentes e não segundo o "'conceito de família'". Conforme Chalhoub (2001, p. 174, grifo do autor): Concretamente, isto significa reconhecer a impossibilidade de discorrer sobre a família brasileira, enquanto modelo ideal pairando sobre nossas cabeças e determinando as ações dos agentes históricos independentemente das situações de classe vivenciadas por esses agentes na prática cotidiana da vida. Da mesma forma que há um conceito de Estado não pensado em termos de classe no capítulo "O homem cordial", há também um conceito de família, que é a família burguesa, que faz uso privado do Estado. A própria designação de "Homem cordial", embora não aprofundemos aqui a discussão de gênero, indica uma visão patriarcal e de elite sobre o assunto. Com igual efeito ao tratamento dado ao Estado, a concepção de família acaba reproduzindo e estendendo a todos o caráter da elite brasileira, em cuja sociedadenão houve passagem da família patriarcal para a burguesa, mas a conservação de valores patriarcais na aparente afirmação da família nuclear. Trata-se de um modelo burguês, que existe mais como ideologia do que na realidade. Tendo como efeito real causado pela ideologia a propagação de seu suposto modelo como modelo geral para a sociedade. Agora, como as Balas de estalo incorporam isso tudo? Primeiro, é preciso defender que os traços formais da crônica, amplamente caracterizada como gênero moderno, pelo seu surgimento atrelado ao desenvolvimento de uma imprensa já avançada, podem ser entendidas como parte do processo de modernização conforme se deu no Brasil. Depois, é necessário atentar para o fato de que ela, em função das suas condições materiais de produção, circulação e leitura, absorve características várias, tanto da literatura quanto de fora dela, e esse "fora dela" corresponde à vida social, no caso, a brasileira, da qual não escapa, já que seu conteúdo é a matéria local e envolve também seu contexto de recepção. No que diz respeito à leitura e ao ensino em geral no país àquela época, o analfabetismo e a ausência de educação universal laica em tudo contrasta com a França, no qual o quadro oposto (alfabetização ampla e laicização do ensino) implicou o aumento do público leitor e no fortalecimento dos folhetins. No Brasil, conforme Hélio de Seixas Guimarães (2004, p. 65-66): Ao longo de todo o século XIX, os alfabetizados não ultrapassaram os 30% da população brasileira, e não se verificaram alterações de perfil e dimensão do leitorado (...). Em 1872, apenas 18,6% da população livre e 15,7% da população total, incluindo escravos, sabiam ler e escrever, segundo dados do recenseamento; entre a população em idade escolar (6 a 15 anos), que somava 1.902.454 meninos e meninas, apenas 320.749 frequentavam escolas, ou seja, 16,9%. Já em 1890, a porcentagem diminuiu: apenas 14,8% sabiam ler e escrever. Ainda segundo o censo de 1872, que apurou uma população de quase 10 milhões de habitantes, apenas 12 mil frequentavam a educação secundária e havia 8 mil bacharéis no país 18 Para não cairmos no reducionismo e não objetificarmos os escravizados, à maneira dos . A restrição de público talvez enfatizasse o privilégio da posição do cronista, aproximando-o, por esse aspecto, da elite local, cuja "homogeneidade ideológica" e distinção advinha muito do fato de formarem uma "ilha de letrados num mar de analfabetos" (CARVALHO, 2010, p. 21; 65). escravocratas, lembremos, nessa questão do universo letrado do período, um caso trazido por Marialva Barbosa (2010). Ela relembra a história, transcorrida em 1886, de uma criança escravizada, de nome Eduarda, que, após ser espancada por sua proprietária, saiu pelas ruas com hematomas e várias marcas visíveis da tortura sofrida. A menina tencionava ir à Chefia de polícia, mas foi convencida por uma senhora na rua de, em vez disso, ir e à redação do jornal Gazeta da tarde, que pertencia ao abolicionista José do Patrocínio. Da redação desse jornal, ela foi encaminhada a uma vara de justiça, de onde, junto com outra escravizada do mesmo cativeiro, foi levada ao médico para ser tratada. Simultaneamente, Patrocínio divulgou o caso para diversos outros órgãos de imprensa. A partir disso, "Forma-se um cortejo com líderes abolicionistas e alguns jornalistas condunzindo as tortuadas e que se dirige às redações dos principais jornais da cidade: Vanguarda, Diário de Notícias, O Paiz, O Apóstolo, Gazeta de notícias e Jornal do Comércio" (BARBOSA, 2010, p. 86-87). Mesmo os periódicos que não eram antiescravagistas, no dia seguinte estamparam a notícia em suas páginas, criticando a violência cometida. Notese que a Eduarda, embora alijada da possibilidade de leitura, fez uso do prestígio e da repercussão potencial dos órgãos de imprensa. Quando à incorporação da matéria local como tema das crônicas, Otsuka (mimeo, p. 2) salienta: a "crônica também obrigava a certa desmonumentalização dos assuntos, mostrando ser um tipo de escrita adequado ao tamanho aparentemente diminuído da matéria local, o que talvez não seja dos motivos menos importantes para entender sua aclimatação no Brasil". A perspectiva do gênero menor que se volta para os assuntos menores, mostra a dimensão reduzida com que tanto o gênero quanto a matéria local são avaliadas na comparação desigual com os países de capitalismo avançado e suas mentiras para colonizados verem e tentarem se espelhar.Por fim, é preciso compreender que, na altura da produção das Balas, a cônica já tinha suas características regulares sedimentadas pelo uso e pela convenção. Mais que isso, percebemos na leitura dos diferentes pseudônimos das Balas de estalo que eles compartilhavam mais do que o mesmo espaço no jornal, mas também traços recorrentes que ajudam a caracterizar essa convenção, já sedimentada como padrão regular. Esses traços compartilhados precisavam dialogar com a diversidade de autores e de pseudônimos e nesse embate formava-se a identidade de cada narrador-cronista. Eles faziam uso de uma grande especificidade da crônica em relação a outros textos que povoavam as páginas do jornal, como as notícias: a eles é dado um espaço maior de subjetividade. De fato, o "viés" do cronista é tão "ostensivamente subjetivo do discurso, que ilumina e transfigura o cotidiano cinzento" (OTSUKA, mimeo, p. 5). É, então, por essa espécie peculiar e precária (se tivermos como modelo contos, novelas e sobretudo romances) voz narrativa que tentaremos compreender a realização formal dessa complexa vida social nas Balas de estalo. De fato, a função de cronista esteve no centro do processo o tempo todo nessa discussão. Ela surge, junto com a crônica, claro, num período de "sucessão cada vez mais acelerada dos fatos" e de um mundo cada vez mais complexo que traz imposições mais exigentes ao entendimento humano" e dele "espera-se (...) uma espécie de "intervenção" no cotidiano, orientando o leitor na compreensão desse mundo (CHALHOUB, et alli, 2005, p.11-15). A mesma imersão do cronista no seu tempo é assinalada por (ARRIGUCCI JR., 2001, p. 57): O próprio cronista estava assim metido num processo histórico cuja dimensão geral era extremamente complexa e difícil de apreender, tendendo a escapar-lhe, mas cujos resultados muitas vezes discordantes se impunham à sua observação, pedindo tratamento artístico novo. Chamado a se situar diante de fatos tão discrepantes, dá de início a impressão de tateio sobre a matéria moderna no jornal, feita de novidades fugitivas, como se estivesse experimentando a mão (ARRIGUCCI JR., 2001, p. 57). Importantes esses comentários sobre a posição histórica do cronista, pois não nos deixam esquecer que a falta de especialização de mão de obra intelectual no início de nossa formação cultural obrigava que uma mesma pessoa atuasse na imprensa, na política, na literatura, no funcionalismo público e, às vezes, no ensino. Trata-se de uma posição flexível por si, que ia na contramão da especialização intelectual. O cronista é comentador e transformador do cotidiano, "matéria-prima do vivido" (ARRIGUCCI JR., 2001, p. 52) a partir da crônica, um "fato moderno", o que significa estar submetida "aos choques da novidade, ao consumo imediato, às inquietações de um desejo sempre insatisfeito, à rápida transformação e à fugacidade da vida moderna" (ARRIGUCCI JR., 2001, p. 53). Como nota Edu Otsuka (mimeo, p. 5): Acresce que não é irrelevante, para a caracterização da crônica moderna, o fato de o cronista frequentemente narrar experiências pessoais ou que pelo menos criam a ilusão de trazer o leitor para dentro do âmbito de sua intimidade, partilhando com ele suas impressões e opiniões pessoais. Despida da intenção de persuadir racionalmente por meio do encadeamento lógico de argumentos, a crônica convence antes pela afabilidade do cronista, pelo inusitado dos juízos e pelo modo espirituoso com que os expressa. A falta da existência de uma tradição teórica para o estudo da crônica faz falta, mas aqui vamos arriscar uma adaptação 19 Se assim for, no triângulo de Moretti a matéria exerce mais pressão do que o indicado por ele, e na crônica isso se torna mais evidente, já que sua matériaprima básica é o cotidiano. Talvez, outra necessária adaptação sobre o exposto por Moretti (2000) no tocante ao estudo do romance seja o maior peso do suporte. Muito forte também no caso dos romancesfolhetins, para a crônica o periódico era no século XIX suporte inicial obrigatório. O jornal na imprensa comercial, como o livro em geral, é uma mercadoria. Seus trabalhadores estão sujeitos a um ritmo de produção já dito moderno, com prazos que precisam ser cumpridos para que as vendas aconteçam e o dinheiro entre. Nesse aspectoa Gazeta de Notícias era um sucesso, tendo chegado ao início da década de 1890 a gerar lucro anual que passava dos duzentos contos de réis (CRESTANI, 2014, p. 80), resultado da venda de mais de 35 mil exemplares diários, além dos anúncios e a pedidos que também eram comercializados. Essa distribuição e esses anúncios valiam-se do trabalho infantil e aproveitavam-se da escravidão. Agora, para analisarmos essa posição do narrador-cronista que, pela hipótese levantada, nos dará indícios da construção dessa voz local (MORETTI, 2000) que constitui os pseudônimos da série Balas de . Moretti (2000, p. 178-179), ao estudar a expansão do romance, propõe a construção do objeto por um triângulo: "forma estrangeira, material local e forma social.Simplificando um pouco: enredo estrangeiro, personagens locais e ainda voz local", então ele assinala que "éprecisamente nessa terceira dimensão que esses romances parecem ser mais instáveis -maisincômodos", para o crítico. Isso é coerente, já que"o narrador é opolo de comentário, de explicação, de avaliação quando os "modelos formais" estrangeiros(ou a efetiva presença estrangeira, nesse particular) fazem os personagens agir de maneiraestranha". Portanto, sua hipótese é a de que a voz narrativa local é uma intermediária entre a forma europeia (no caso dele o romance, no do presente estudo seria o folhetim) e a matéria local. Buscamos adaptar aqui esse procedimento para o estudo da posição do narrador-cronista. # Segundo Schwarz (2006b, p. 148): O trabalho do escritor não é, em primeiro lugar, a transformação de formas literárias prévias (embora esta dimensão exista). Pelo contrário, trata-se da formalização do não-literário, o que naturalmente leva a transformações da série literária também, criando a aparência de uma evolução autônoma. estalo, levantaremos crônicas em que as relações de trabalho e de produção dessas crônicas são comentadas. # Relações de trabalho nas Balas de estalo e a crônica como mercadoria A consolidação das Balas de estalo junto ao público passou pela explicitação aos leitores das funções e dos assuntos predominantemente abordados pelos narradores-cronistas, ou seja, pela demarcação de suas identidades. Além disso, a identificação dos autores empíricos responsáveis pelos mais recorrentes pseudônimos era facultada por indícios deixados ao longo das crônicas e consolidou-se no balanço do primeiro ano de funcionamento da série feito por Décio (GN, 01/01/1884). Assim, Mercútio e Blick eram o "historiador míope" (Capistrano de Abreu); Zig-Zag e João Tesourinha eram aquele que "taquigrafa na câmara dos deputados, instituiu o Dizia-se Ontem e traduz dramas para o teatro" (Henrique Chaves); Lulu Sênior era "Médico retirado" e"patrão" (Ferreira de Araújo); Lélio era o "literato chefe, poeta, dramaturgo e romancista" e também funcionário da "burocracia da agricultura" (Machado de Assis); José do Egito "faz hoje as suas notas à margem. Escreveu balas sobre [refere vários assuntos] (...) "é advogado" (Valentim Magalhães); Confúcio "respondeu ao poeta Rozendo republicano o triolet do Raimundo" (sem autoria reconhecida). Décio, por sua vez, que assina a referida crônica e possivelmente valia-se tambémdo pseudônimo Publicola, é referido ao final do texto como aquele que "pôs em pratos limpos os preços dos barões, a saber o da terra 750$ e do estrangeiro 2:000$; ambos são um e o mesmo indivíduo. Depende da ocasião" (Demerval da Fonseca). Ao referir-se a Lulu Sênior nessa crônica, Décio toca em assunto central: as relações de trabalho que envolviam os pseudônimos. Lulu é o patrão, com quem Décio brinca, insinuando um pedido de aumento e de adiantamento. Quando "não tem assunto", Lulu fala da "junta de higiene". Ter ou não assunto é assunto (com o perdão da redundância) nas crônicas em geral e nas da série de modo específico. Essa crônica mesmo começa com um comentário de Décio sobre o fato de Zig-Zag ter reclamado de ter que escrever a última crônica do ano. Rodrigo Dias (2015), buscando como referência uma conhecida crônica de José de Alencar (sd, p. 8 20 20 Os trechos assinalados por aspas na citação que segue foram retiradas por Rodrigo Dias (2015) da referida crônica. ), publicada em 24 de setembro de 1854 no Correio Mercantil, analisa as condições de produção do cronista. Nessa crônica, Alencar compara o folhetinista ao colibri pela necessidade de ter que ir de um lado para o outro (no caso dos escritores, em busca de assunto). A crônica, tal como o romance, desenvolve um comportamento onívoro, apropriando-se das mais variadas formas para atingir o seu leitor. Desse modo, ela já se afigura como um gênero voltado para o consumo, publicado em um suporte também consumível, efêmero; podemos observar a implicação desse estatuto na crônica de Alencar supracitada. O comportamento-colibri do folhetinista não é traço estilístico desenvolvido por sua vontade, por seu "gênio": descontando alguma retórica vitimista empregada no texto, o autor se vê obrigado a "percorrer todos os acontecimentos" e fazem dele uma "espécie de colibri a esvoaçar em ziguezague, e a sugar, como o mel das flores, a graça, o sal e o espírito que deve necessariamente descobrir no fato o mais comezinho". Em outras palavras, esse "ofício ingrato" está subordinado às relações de produção, a um mercado e a um público leitor em constante formação e transformação, prenunciando uma profissionalização do escritor na imprensa que, no Brasil, virá a se consolidar no início do século XX (DIAS, 2015, p. 30). No caso dos narradores-cronistas das Balas, o fato de não ter assunto também aparece, como vimos no próprio comentário de Décio sobre Lulu. Além de falar da junta de higiene nessas situações, ficamos sabendo com Décio (GN, 01/01/1884) que o chefe Lulu Sênior "descompõe os colegas e os companheiros quando não tem assunto". Levantar falsas polêmicas, portanto, é artifício para inventar assunto nas Balas de estalo. Uma dessa polêmicas surgiu quando o chefe Lulu Sênior deixou um bilhete para Zig-Zag pedindo que ele assumisse a escrita da bala do dia seguinte em seu lugar. O objetivo do pedido, segundo Zig-Zag (GN, 24/07/1883),era traiçoeiro, pois revelaria "ao público um escritor sem assunto" (DIAS, 2015, p. 34). A contenda se desdobra nas crônicas seguintes dos dois pseudônimos e chega a uma crônica de Lélio da semana seguinte (GN, 01/08/1883). Nela, o narradorcronista construído por Machado de Assis diz que os dois outros pseudônimos marcaram um duelo que quase aconteceu, mas terminou em reconciliação. Busco evidenciar que para a escrita da crônica, embora o cotidiano seja a fonte básica em busca de assunto, essa busca obedecia a critérios de seletividade impostos pelas condições de produção que poderiam até mesmo fazer o cronista abandoner o tema do cotidiano para criar situações mais inventivas (como as polêmicas). O processo, pautado pela necessidade de produção, muitas vezes revelava simulacros dos bastidores dos pseudônimos. Numa outra crônica (GN, 18/07/1883), Lulu Sênior comenta a recepção que seria dada pelo imperador em função do aniversário do conde d'Aquila (membro da família Isto parece-me modesto demais. Cumprimentar assim em família pelo fausto motivo do aniversário natalício do nosso mais caro príncipe, é preciso confessar que é ridiculamente pouco. Salvo se todo o Rio de Janeiro, ou mesmo todo o Brasil for amanhã a S. Cristóvão regozijar-se. Nós cá de casa vamos todos de súcia. Publicola já mandou deitar uma gola nova na casaca velha; Lélio resolveu deitar abaixo a barba para ficar mais elegante; eu vou deitar colete para disfarçar a proeminência abdominal; Zig-Zag há já três dias que não arranca o bigode; José do Egito toma gemadas, porque quer falar grosso ao rei; Blinck comprou uns óculos, para ver melhor os esplendores da realeza; e Décio mandou fazer uns sapatos de tacão alto, para fazer crer que já foi declarado maior. # E vamos abrir subscrição para luminárias e um Te-Deum na Capela Imperial, com sermão do Sr. bispo Lacerda. Em se tratando do Sr. conde d'Aquila, nada nos parece demasiado. Por conseguinte Sua Majestade o Imperador há de fazer o favor de contar conosco, e mandar deitar mais água na canja. Note-se aqui um duplo movimento: por um lado há a imitação do gesto elitizado, perceptível no aprumo da vestimenta e da aparência como um todo para a recepção imperial (a qual o narrador-cronista, em corte irônico, considera "modesto demais") e no uso do francês para referir-se à ocasião. Por outro lado, contudo, ao final do texto, Lulu Sênior, como se falasse diretamente com o "Sua Majestade o Imperador", diz para deitarem "mais água na canja", pois os narradores-cronistas das Balas iriam à recepção. A marcação coloquial da fala contrasta com a pompa da cerimônia e revela uma dualidade. Os narradores-cronistas parecem ocupar sempre posições ambíguas, divididas, precárias, duais e incompletas. Eles oscilam entre autor empírico e pseudônimo (o que nos tem levado a referi-los até aqui como "narradores-cronistas"), entre o colega ou amigo e o funcionário ou patrão, entre a elite letrada e a busca do público leitor num universo com analfabetismo gritante, entre o membro da elite e o trabalhador assalariado. Essas oscilações assinalam o fato de que o narrador-cronista não constitui um narrador ficcional propriamente dito, já que de um jeito ou de outro estava vinculado ao seu autor empírico, que trabalha por dinheiro e obedece ao ritmo de produção que o mercado impõe. As várias oscilações encenadas pelos pseudônimos são marcas dessa ambivalência entre ser empírico e ser ficcional e juntas constituem a materialização formal da incompletude da modernização brasileira. Além disso, assinalam a impossibilidade de constituição de um sujeito pretensamentemoderno e pretensamente autônomo (conforme parâmetros burgueses falsamente cumpridos e concretamente divulgados) no contexto do mandonismo local. Note-se que a base dos estudos que nos permitiram chegar até aqui vem do romance, nas leituras de Candido (2010), comentadas por Schwarz (1999; 2006b) e, depois, Otsuka (2007), além de Moretti (2000; 2007). Portanto, vindo do romance, estávamos um universo ficcional, e nos dois casos enfocados -Memórias de um sargento de milícias (1854) e O Cortiço (1890) -o narrador em terceira pessoa tem sua objetividade (e confiabilidade) posta em questão. No caso da crônica, há uma oscilação entre estatuto ficcional e não ficcional, entre estético e jornalísitico-cronistico, entre permanência da obra de arte ou dissolução cotidiana do prosaico. Das diversas posições assumidas pelos pseudônimos, ficarei, para finalizar, com a condição de trabalhador assalariado. Note-se que as marcas de tal caracterização dos pseudônimos são disfarçadas, mesmo que não por muito tempo, quando incorporam o gesto da elite. Ocultar as marcas do trabalho é traço de classe em país escravocrata, já que, na ânsia de pertencer a uma classe mais alta, os membros dessa sociedade afastam-se dos escravizados, sobre o quais recaía o fardo dos trabalhos mais pesados. Contudo, os autores que produziram as Balas de estalo são assalariados e produzem, como tais, mercadorias. Um dos pseudônimos que circularam no primeiro ano de publicação das Balas de estalo, mas que não apareceu mais na série foi o de Aluísio Azevedo (GN, 10/12/1883), que na crônica de 10/12/1883 dirigiu-se a Lulu Sênior e falou de Filomena Borges, que seriao nome do romance de Aluísio que passaria a ser publicado na Gazeta pouco tempo depois. Trago o caso aqui como exemplo de uso da série e dos pseudônimos como mecanismo de publicidade. Essa crônica foi parte de alguns falsos casos que foram criados na Gazeta envolvendo uma suposta figura "real" chamada Filomena Borges. Desde de 07/10/1883 comentava-se nas Balas de estalo sobre uma senhora que teria deixado cartões de visita para vários homens da cidade, incluindo alguns pseudônimos das Balas, como Lulu Sênior, que encabeça a divulgação dessa história. Provavelmente foi Ferreira de Araújo quem encomendou os folhetins de Aluísio que dariam origem ao livro, este foi, inclusive, dedicado a Araújo por Aluísio 21 21 Sobre as aparições de Filomena na Gazeta e a constituição da obra, cf. Lamonica (2015). traço do jornal incorporado pela série e potencialmente incorporado pelas crônicas em geral, que é seu caráter de mercadoria. No fim, o sucesso e a continuação da série dependiam do desempenho da Gazeta como empreendimento comercial, expondo o caráter de mercadoria das próprias crônicas. Assim, sua escrita segue o ritmo de produção, levando os narradorescronistas a pularem de assunto em assunto e a inventálos quando não o tinham, não para atender qualquer impulso criativo, mas para obedecer ao prazo de entrega estabelecido por relação de trabalho. Talvez isso permita que leiamos em nova chave a dimensão da matéria da crônica. Do mesmo modo, essa condição de produção e a busca por assuntos variados impunha a busca por formas variadas de trazer esse assunto a público. Assim, vemos simulações de diálogo (26/04/1883, Lulu Sênior), transcrições, parciais ou integrais, e paródias de discursos do Instituto Histórico(31/12/1883, Zig-Zag), de receitas médicas e de quadras populares (08/05/1883, José do Egito) de cartas (23/10/1883, Lélio), de "a pedidos" e de bilhetes (23 e 27/07/1883, respectivamente, Zig-Zag)...A Gazeta e as Balas caracterizaram-se por um estilo jovial, bemhumorado, embora crítico e corrosive, o que dava o tom irônico a este estilo. Machado de Assis (2008, v.3, p. 1328) afirmou que o critério de contratação utilizado por Ferreira de Araújo, além de que se escrevesse "bem", era o uso do humor. Assim,ao ritmo das publicações, à diversidade de formas e ao uso de determinado pseudônimo, junta-se o estilo de escrita e o próprio projeto das Gazetae das Balas como mecanismos que buscavam atender a um público, o mais amplo possível para facultar mais vendas. Desse modo, experimentação formal e características estéticas se confundem com estratégias comerciais. # . O episódio expõe um O caráter brasileiro da crônica pode reaparecer aqui em nova perspectiva. Talvez ela seja índice da forma como a elite brasileira (por intermédio da imprensa) se apropriou dos modos de produção moderno. No caso, o jornal (produção em série, comercial, segundo meios modernos etc.) é uma forma internacionalatravessada não apenas pela matéria local, mas também pelo modo de ser local. Assim, o artigo de opinião e o debate da esfera pública burguesa ganham feição ou da crônica ou da polêmica. Em outros termos, o debate público vira rixa (polêmica) ou vira bate-papode-bar (crônica). Moderno e periférico, o debate se realiza, sem realizar, bloqueado. Do mesmo modo, a crônica não se autonomiza como forma literária, já que marcada como mercadoria, associada à venda de jornais, sendo mais um produto deles. Temos visto que é importante que não a tratemos como um "ser estranho" enquanto produção cultural na sua relação com outros gêneros. Ela guarda fortes semelhanças com a criação de outros tipos de obras em circulação no séc. XIX. No seu caráter de mercadoria, do mesmo modo, a crônica revela mais diretamente uma contradição de toda construção cultural da sociedade burguesa, que é a centralidade das condições materiais de produção e revela também a falsidade da suposta autonomia absoluta da obra de arte nesse contexto. Contudo, não podemos entendê-la sem seu traço local, como se fosse uma mercadoria genérica. Sérgio Buarque de Holanda (2002, p. 1052), no "Homem cordial", refere-se ao negociante da Filadélfia que se espantou "ao verificar que, no Brasil como na Argentina, para conquistar um freguês tinha necessidade de fazer dele um amigo" (HOLANDA, 2002, p. 1052). Lembremos o tom íntimo, de coisa menor e próxima e do nosso dia a dia, de conversa despretensiosa e caseira da crônica. Afinal, por aqui, até para vender tem que ser "amigo". O Estado não é uma ampliação do círculo familiare, ainda menos, uma integração de certosagrupamentos, de certas vontades particularistas,de que a família é o melhor exemplo. Não existeentre o círculo familiar e o Estado, uma gradação,mas antes uma descontinuidade e até umaoposição. [Estado e família] pertencem a ordensdiferentes em essência. Só pela transgressão daordem doméstica e familiar é que nasce o Estado eque o simples indivíduo se faz cidadão,contribuinte,eleitor,elegível,recrutáveleresponsável, ante as leis da Cidade. Há nesse fatoum triunfo do geral sobre o particular, do intelectualsobre o material, do abstrato sobre o corpóreo (...).A ordem familiar, em sua forma pura, é abolida por uma transcendência (HOLANDA, 2002, p. 1044). Pelo modo como se desenvolveram asYear 2019relações entre o rural e o urbano, entre o público e ofamiliar no Brasil, esse suposto modelo de superação45do interesse individual pelo coletivo não vigorou. No Brasil, onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo da família patriarcal, o desenvolvimento da urbanização -que não resulta unicamente do crescimento das cidades, mas também do crescimento dos meios de comunicação, atraindo vastas áreas rurais para a esfera das cidades -ia acarretar um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos ainda hoje.Volume XIX Issue II Version I( C )Conforme Otsuka (mimeo, p. 4) e Boenavides (2012, p. 111 e 2013, p. 64), essa dimensão da crônica pode ser aproximada do que Sérgio Buarque de Holanda (2002, p. 1044-1055) definiu como comportamento cordialGlobal Journal of Human Social Sciencepresente na sociedade brasileira. Ele seria uma espéciede herança maldita proveniente da síntese dacolonização e do domínio do patriarcado rural. Talcomportamento adviria da falta de limites entre opúblico e o privado e estaria relacionado ao modocomo o Estado se constituiu por aqui em contraste comsua suposta formação clássica nos principais países docapitalismo ocidental: O "emissor latente" é aproximadodo brasileiro livre, que não se identifica com o negro escravizado e se ressente com o português, que trabalha e enriquece. Por esse modo, Candido particulariza o narrador externo, dando-lhe uma caracterização material a partir das marcas discursivas. Year 2019 © 2019 Global Journals © 2019 Global Journals De acordo com Flávia Cernic Ramos (2005, p. 117), os autores e os respectivos pseudônimos eram os seguintes: Lulu Sênior (Ferreira de Araújo), Zig-Zag e João Tesourinha (assinados, o primeiro com certeza e o segundo provavelmente, por Henrique Chaves), Décio e Publicola (assinados por Demerval da Fonseca), Lélio (Machado de Assis), Mercutio e Blick (assinados por Capistrano de Abreu) e José do Egito (Valentim Magalhães). Mais tarde, ingressaram Confúcio, Ly e Carolus, que, assim como alguns pseudônimos de aparecimento raro, ainda não foram identificados. O autor contrasta esses dados com o de países como Inglaterra, França e Estados Unidos, nos quais, em meados da década de 1870, o percentual de alfabetização variava de 70 a 90% (GUIMARÃES, 2004, p. 64). * Teses sobre sociologia da arte TheodorAdorno Wiesengrund COHN, Gabriel (org.) Theodor W. Adorno. São Paulo: Ática 1994 Grandes Cientistas Sociais 54 * Gêneros de fronteira: cruzamento entre o histórico e o literário FAguiar 1997 Xamã São Paulo * Acessado em 07de ago JoséAlencar De 2013 Ao correr da pena * Proletários e escravos: imigrantes portugueses e cativos africanos no Rio de Janeiro, 1850-1872.Novos estudos, nº 21, julho de LuizFelipeAlencastro De 1988 * Ideias em movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil-Império ÂngelaAlonso 2002 Paz e Terra São Paulo * (org.) 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