# I. Introdução s obras de Spinoza e Hobbes, datadas do século XVII, continuam exercendo grande influência nos estudos políticos do XXI. O conflito entre as forças de cunho construtivo e imanente e as forças de tentativa de restauração da ordem 1 Dito isso, este trabalho pretende analisar possíveis motivos que permitiriam compreender por que a democracia parece ser uma forma de governo mais plausível na obra de Spinoza do que na de Hobbes. Para isso, serão apresentados vários conceitos-chave, em uma sequência decrescente, que ajudam na construção de uma resposta. Primeiramente, será exposta a vertente propriamente política dos autores, englobando suas ideias sobre o pacto que funda o Estado, as formas de governo e a configuração do estado civil. Posteriormente, serão examinadas suas concepções antropológicas, tais como a natureza humana, o estado de natureza, a liberdade e a , característico da Idade Moderna, teve reflexos no campo filosóficopolítico e, portanto, também nas ideias de Hobbes e Spinoza. Tomando como base a obra Leviatã, Thomas Hobbes, considerado um precursor da teoria do Estado Moderno, ilustra bem a defesa da construção de um aparelho político baseado na soberania absoluta do Estado e na representação como resposta a uma natureza humana conflituosa marcada pela desconfiança. Por sua vez, Spinoza, partindo de uma concepção mais flexível da natureza humana, defende que a democracia é a melhor forma possível de governo. 1 NEGRI e HARDT, 2006. obediência. Por fim, a terceira seção procurará desenvolver a ligação entre os argumentos antropológicos e políticos de Spinoza e Hobbes e, assim, apontar possíveis justificativas relacionadas à temática da democracia em suas obras. Consciente da profundidade de outros estudos realizados tanto sobre a temática da democracia quanto das obras de Hobbes e Spinoza, este artigo não intenciona esgotar o tema nas poucas páginas que o compõem. Não se trata de uma análise da democracia, mas sim do lugar que esta ocupa nas obras dos dois filósofos. Ademais, cabe ressaltar que, ainda que na obra Tratado Político, de Spinoza, esteja ausente justamente a parte que versaria sobre a democracia, 22 II. # AS FORMAS POLÍTICAS é possível tecer considerações relevantes sobre o tema com o apoio do restante da obra e também com a colaboração de comentadores. Segundo Hobbes, para que o Estado seja fundado, é realizado um pacto no qual todos os indivíduos, até então vivendo em estado de natureza, renunciam e transferem seus direitos para um homem (ou assembleia de homens) que, em troca, oferece-lhes segurança. Mas, como Hobbes considera que "a força das palavras é demasiado fraca para obrigar os homens a cumprirem seus pactos" (HOBBES, 1983, p. 51), é necessário que haja medo das consequências de não cumprir o acordado ou, mais raro, suficiente orgulho de não faltar com a palavra dada. Sendo assim, deve haver um poder coercitivo que obrigue os homens a cumprirem seus pactos mediante o temor de algum castigo. Uma vez realizado o pacto, as diversas vontades dos homens ficam reduzidas a uma só vontade, a do soberano, e essa união em uma só pessoa chama-se Estado -ou Leviatã. A partir desse momento, passa a existir, na figura do Estado, o poder coercitivo capaz de obrigar o cumprimento do pacto, "pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles" (HOBBES, 1983, p. 61). Ressalta-se que o pacto é igualmente válido e obrigatório tendo sido ele aceito por vontade própria (Estado por instituição) ou por medo (Estado por aquisição). O único direito que não pode ser transferido é o de defender-se e livrar-se da morte. Uma vez criado o Estado e tendo sido definido seu representante, todos os homens, sem exceção, devem "autorizar todos os atos e decisões desse homem ou assembleia de homens, tal como se fossem seus próprios atos e decisões, a fim de viverem em paz uns com os outros e serem protegidos dos restantes homens" (HOBBES, 1983, p. 61). Assim, sendo todo homem autor de todas as ações do soberano instituído, nada do que este fizer pode ser contestado. Ademais, cabe à soberania determinar quais opiniões e doutrinas são contrárias ou adequadas à paz. Logo, nota-se que o poder do soberano é absoluto no sentido de que abarca todos os setores da sociedade civil e que não há força maior do que a sua: seu poder é ilimitado. É importante saber que o soberano (o representante) não é parte contratante no pacto, pois este é feito entre todos os homens; e sim resultado dele. Dessa forma, não é possível que haja quebra do pacto da parte do soberano, que, então, tem direito a governar da maneira que entender melhor e nenhum súdito pode libertar-se da sujeição. Havendo quebra do pacto, o estado civil deixa de existir e volta-se ao estado de natureza. Para Hobbes, só pode haver três espécies de governo. Se o representante for um só homem, há uma monarquia, se for uma assembleia de todos os homens unidos, há uma democracia e, se for uma assembleia apenas de parte dos homens, há uma aristocracia. O poder soberano é sempre o mesmo em qualquer uma dessas três formas e o que as difere é o grau de capacidade de garantia da paz e da segurança do povo. No caso da monarquia, Hobbes chama atenção para a ligação que tende a existir entre o interesse público e o interesse pessoal, pois considera que o representante, humano que é, privilegiará seu interesse pessoal. No entanto, é essencial notar que, aos olhos de Hobbes, isso é considerado algo positivo, já que "quanto mais intimamente unidos estiverem o interesse público e o interesse pessoal, mais se beneficiará o interesse público [...]; na monarquia o interesse pessoal é o mesmo que o interesse público" (HOBBES, 1983, p. 66). Em relação à sucessão do poder, Hobbes argumenta que não há forma de governo em que essa decisão não caiba ao próprio soberano. Particularmente no caso da democracia, considerando que é impossível que a assembleia toda esteja ausente, "as questões relativas ao direito de sucessão não podem ter lugar algum" (HOBBES, 1983, p. 68). Na aristocracia, a própria assembleia é responsável pela eleição de membros que venham a falecer. A monarquia é a forma cuja decisão sobre a sucessão é mais dificultosa, pois, ou o monarca define quem o sucederá, ou o direito de decidir sobre isso volta para a multidão dissolvida e volta-se ao estado de natureza, o que altamente indesejável. Se, antes de morrer, o monarca não tiver designado, por escrito, quem deve sucedê-lo, entendese que o desejo do soberano é que o governo continue monárquico e que o poder seja passado aos seus descendentes. Hobbes demonstra estar mais interessado em destacar que o poder do soberano é absoluto, em qualquer forma de governo, do que em fazer considerações acerca de qual forma política seria a melhor. No entanto, algumas passagens sugerem que Hobbes tende a considerar a democracia uma forma mais frágil de governo, já que o poder soberano depende das decisões de vários homens, as quais podem não convergir, e há possibilidade de existirem, dentro da assembleia, homens não comprometidos com o estado civil 3 . Ademais, é possível notar indícios 4 Finalmente, merece menção o argumento hobbesiano de que o poder do Estado e, consequentemente, de seu representante é tão absoluto que a única possibilidade compreensível de o súdito não obedecer é no caso de a ordem soberana colocar em risco a vida do homem de que o filósofo considera que, estando o poder nas mãos de um só homem, há maior capacidade para garantir a solidez e segurança do Estado e o poder é mais absoluto. Apesar disso, Hobbes destaca, mais de uma vez, que a prosperidade de um povo não decorre da forma de governo ao qual está submetido, mas sim de sua capacidade de obediência. . Afora esse caso, o súdito não só deve obedecer como também concordar com toda ordem e toda ação do soberano. Não se pode, inclusive, "falar mal do soberano representante (quer se trate de um homem quer se trate de uma assembleia) ou pôr em questão e discutir seu poder, ou de qualquer modo usar seu nome de maneira irreverente" (HOBBES, 1983, p. 113). Sendo o poder do Leviatã o maior possível que os homens podem criar, # ( F ) embora possam existir más consequências de um poder tão ilimitado, nenhuma delas é pior do que a situação anterior ao pacto: o estado de natureza, o qual será abordado na seção seguinte. Spinoza também parte de uma ideia contratualista de formação do estado civil. O pacto que institui o Estado é realizado através da abdicação e transferência de direitos para aquele a quem é dado o poder. O soberano continua tendo seus direitos naturais e os súditos ficam submetidos, principalmente, ao direito civil, mas também ao natural, incluindo o direito de não ser obrigado a se autoprejudicar. Spinoza, assim como Hobbes, considera que a maior virtude do Estado é fornecer segurança, porém o filósofo holandês destaca que o Estado também deve ser capaz de assegurar a paz, a qual deve ser entendida não apenas como ausência de guerra, mas também como concórdia e bem-estar 6 6 "Mas se a paz tem de possuir o nome de servidão, barbárie e solidão, nada há mais lamentável para o homem do que a paz" (SPINOZA, 1983, p. 321). . O Estado também deve ser forte, conduzido por um pensamento único que inclui a decisão sobre o que é justo/injusto e moral/imoral. Como em Hobbes, a vontade da Cidade é a vontade de todos e mesmo aqueles que discordam de seus preceitos devem segui-los. Outra similaridade com o filósofo inglês se dá no campo do direito à insurgência. Se os súditos se indignam com o Estado e rompem o pacto, o estado civil é dissolvido e volta-se ao estado de natureza. Da mesma maneira que Thomas Hobbes, Spinoza considera a existência de três formas de poder político: democracia quando o poder está em uma assembleia composta por todos os homens, aristocracia quando a assembleia é composta por pessoas previamente escolhidas e monarquia quando o poder pertence a um só homem. Em um primeiro momento, Spinoza, convergindo com Hobbes, parece dizer que o Estado estaria mais seguro se o poder estiver nas mãos de um só homem: "se dá esse poder a duas pessoas ou a várias, divide por isso o Estado, pois que cada um daqueles a quem foi dado o poder vive segundo seu próprio arbítrio. Se, enfim, dá esse poder a cada um dos cidadãos, destrói-se a si mesma; [...] e retorna-se ao estado natural" (SPINOZA, 1983, p. 311). Entretanto, é cabível interpretar essa passagem considerando que "pessoas" pode estar fazendo referência a "instituição", pois, nas três formas de governo, o poder está em uma só instituição, seja ela composta por um ou mais homens. Além disso, é importante ressaltar que na democracia o poder não está nas mãos de cada um dos cidadãos, mas os cidadãos tem um maior poder de escolha e são elegíveis no processo político. Conforme são descritos os componentes e o modo de funcionamento de cada uma das três organizações políticas, nota-se a presença de alguns aspectos, mesmo na aristocracia e na monarquia, que se aproximam da democracia. No caso da monarquia, merecem destaque: a alta rotatividade de cargos (mesmo os membros do conselho do monarca devem ser substituídos a cada 3, 4 ou 5 anos); a necessidade de o rei consultar o conselho antes de decidir sobre qualquer assunto, o funcionamento do conselho como intermediário entre a população e o rei, devendo transmitir a este as petições dos cidadãos; prestação de contas; a exclusão do ofício público de pessoas que "frequentam a corte e pertencem à casa do rei, às quais ele paga emolumentos do seu cofre pessoal" (SPINOZA, 1983, p. 327); no caso de falecimento do rei, o poder retorna à população e, por fim, "o povo pode conservar sob um rei uma ampla liberdade, desde que o poder do rei tenha por medida o poder do próprio povo e não tenha outra proteção senão o povo" (SPINOZA, 1983, p. 340). A aristocracia, por sua vez, é considerada uma forma de governo mais absoluta do que a monarquia. É importante ressaltar que Spinoza utiliza a palavra "absoluta/o" em um sentido diferente de Hobbes. Para Spinoza, a forma de governo é tão mais absoluta quanto mais se aproxima da população. E quanto mais se aproxima da população, melhor e mais segura ela é. Por ser composta por vários homens, não é preciso que o Estado aristocrático institua um conselho consultivo, logo, qualquer vontade expressa pela assembleia tem força de lei. Além disso, o poder soberano também não deve ser hereditário. Como foi dito anteriormente, a parte do Tratado Político que versaria sobre as características do Estado democrático está incompleta. Entretanto, é possível encontrar, na parte existente da obra, considerações importantes sobre a democracia, incluindo uma veemente afirmação: o Estado democrático é o mais absoluto. Na democracia, todos os cidadãos têm direito de sufrágio e acesso às funções públicas e podem reclamar seus direitos. Segundo Spinoza, a democracia é o "regime em que todos os que são governados unicamente pelas leis do país não estão de forma alguma sob a dominação de # As Bases Antropológicas Para Thomas Hobbes, a natureza humana é marcada pela desconfiança, egoísmo e competitividade, tendendo, portanto, ao conflito. Os "homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros (e sim, pelo contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de manter a todos em respeito" (HOBBES, 1983, p. 46). Sendo assim, na condição hipotética do estado de natureza, como não existe um poder soberano para regular o comportamento humano e os homens são todos iguais em poder, os diversos conflitos que surgem entre os homens só podem ser resolvidos através da força. A condição em que os homens vivem no estado de natureza, portanto, é marcada por uma "guerra de todos contra todos", a qual consiste não apenas nas ações de luta, mas também em todo o tempo em que há predisposição para a batalha. Durante esse período, não há nada que possa ser considerado injusto, não existe propriedade (tudo é de todos) e as únicas leis que vigoram são as leis naturais, as quais permitem que o homem tenha a liberdade de fazer tudo o que estiver ao seu alcance para proteger sua vida. É importante acrescentar que, segundo o filósofo inglês, as leis de natureza são imutáveis e eternas. Há, assim, "um constante temor perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta" (HOBBES, 1983, p. 46). Já Spinoza parte de uma noção mais flexível sobre a natureza humana. Primeiramente, é importante destacar que, em sua filosofia, a singularidade dos seres humanos reside na união entre o corpo e a mente (CHAUÍ, 2006). Associado às considerações sobre a natureza humana, o conatus tem uma importante participação na teoria spinozana. Enquanto para Hobbes o conatus limita-se ao esforço individual para a autopreservação devido ao medo de uma morte violenta, na concepção de Spinoza o conatus vai além, referindo-se à força que tem o desejo do homem de manter sua existência, sem distinção sobre se as ações que refletem tal força são racionais ou irracionais, certas ou erradas, boas ou más (CHAUÍ, 2006). Para ele, portanto, deve-se estar ciente de que a natureza humana contém tanto características consideradas boas quanto ruins e é comandada tanto pela razão quanto pelas emoções. As paixões são inerentes à natureza humana e, inclusive, comandam a ação humana mais do que a razão. Concorda que os homens são utilitaristas e competitivos, mas defende que também são sociáveis e capazes de compreender os benefícios da cooperação. Na filosofia de Spinoza, a liberdade é um valor fundamental e é entendida de maneira positiva. Ao contrário do pensamento hobbesiano, o filósofo holandês possui uma definição de liberdade que está intimamente ligada à razão. Para ele, ser livre significa ter a capacidade de utilizar a razão. Quanto mais o homem age racionalmente, mais livre ele é. Partindo desse conceito, compreende-se que, para Spinoza, o homem é capaz de obedecer sem a necessidade de ameaça de coibição, uma vez que entenda os benefícios de sua obediência. Já Hobbes, entendendo que liberdade é ausência de oposição, deixa claro que o homem só obedece se for movido a isso pelo medo da punição, dada sua natureza ambiciosa e autointeressada. Spinoza afirma que todos os homens preferem governar a serem governados. Assim, da mesma forma que em Hobbes, o estado de natureza é marcado pela guerra de todos contra todos, "pois é natural e necessário que cada um, buscando fortalecer seu próprio conatus, deseje o aumento de sua própria força e de seu próprio poder e julgue que para tanto precisa diminuir o poder dos demais." (CHAUÍ, 2006, p. 127). Mas, considerando a capacidade humana de usar a razão, os homens percebem que o fortalecimento da cooperação entre eles leva a um aumento potencial da vida e da liberdade de cada um. Por isso, são levados a realizar o contrato que institui o estado civil. É importante destacar que, para Spinoza, as leis naturais continuam a existir dentro do estado civil, em caráter de complementariedade, (CHAUÍ, 2006). As leis naturais são as únicas às quais o soberano está submetido, ao passo que a população está sujeita tanto ao direito natural quanto ao direito civil, já que, mesmo inserido neste último, o homem deve continuar a buscar realizar tudo que sua potência permitir. Na obra de Hobbes, por outro lado, há um dualismo autoexcludente entre estado de natureza e estado civil. IV. # Lugar Da Democracia As concepções de Spinoza e Hobbes sobre a configuração do estado civil e de natureza apresentadas nas seções anteriores permitem alguns comentários sobre as possibilidades da democracia na obra dos dois filósofos. Mas, antes, é prudente esclarecer que não se pretende expor uma teoria da democracia nem apresentá-la conforme suas definições atuais, mas sim estudar essa temática na medida em que ela aparece, direta ou indiretamente, nas obras Leviatã e Tratado Político e em textos de comentadores de Hobbes e Spinoza. Partindo do momento da criação do estado civil, nota-se que, em Hobbes, a decisão de fundá-lo nasce das várias vontades e medos dos indivíduos. Só um poder soberano pode unificar os indivíduos, que até então estão dissociados e temerosos uns em relação aos outros. Já Spinoza parte de outra perspectiva: é a razão que permite união das várias potências dos homens, que formam uma só potência (multidão), dando origem ao Estado. O conceito de liberdade também revela diferenças entre Hobbes e Spinoza. Enquanto, como foi dito anteriormente, para Hobbes, a liberdade é ausência de oposição, segundo Spinoza, a liberdade está intrinsecamente ligada à razão. Sendo a liberdade é um valor extremamente importante na filosofia política spinozana, o advento do estado civil não faz com que ela esteja ausente; pelo contrário: a melhor forma política do Estado é aquela que mais preservar a liberdade humana. É pertinente acrescentar que Spinoza afirma a necessidade de garantia da liberdade de pensamento e de expressão (ainda que o súdito deva obedecer mesmo às leis que considerar injustas), de ensino e de crença religiosa para a manutenção da paz (SPINOZA, 2004). É notável, portanto, que, embora valorize a obediência dos súditos em relação ao estado civil, considerando que a quebra do pacto causa um retorno ao estado de natureza, há mais espaço para liberdade dos súditos no estado civil spinozano. Nota-se também que a coerção tem muito mais relevância na argumentação de Hobbes do que na de Spinoza. Segundo Hobbes, é o medo da opressão que leva os homens a unirem seus poderes individuais para formar o Estado e, uma vez neste, é o medo da violência (especialmente a física) que faz com que as leis sejam respeitadas. Feito o pacto, nada que o soberano fizer pode ser contestado ou considerado injusto, pois toda vontade ou ação do soberano é vontade e ação dos súditos. Sendo assim, é válido inferir que, para Hobbes, quanto mais repressor for o Estado, menores as chances de infração da parte da sociedade civil. Ademais, o poder do Leviatã não pode ser dividido, porque isso arriscaria a ordem e a segurança do estado civil, já que, em consonância com a natureza humana, os poderes tenderiam a destruir uns aos outros e o homem não consegue obedecer a dois senhores. Nota-se, assim, que a obra de Hobbes é extremamente caracterizada pela defesa de um Estado forte, rígido, absoluto, no qual quase não há liberdade para os súditos em relação ao soberano. O pacto com o soberano tem prioridade até mesmo em detrimento ao pacto dos homens com Deus, pois só é justo o contrato dos homens com Deus através do pacto destes com o soberano. É o soberano quem decide a religião do Estado. O soberano só presta contas a Deus. A liberdade do súdito restringese ao que o soberano permitir. Ressalta-se também que, apesar de o indivíduo possuir o direito natural de defender sua própria vida, isso não retira nem diminui o direito civil do soberano de decidir sobre a vida ou a morte de seus súditos. O súdito pode tentar defenderse, mas não pode ser considerada injusta a decisão do soberano de matá-lo. O direito de punir pertence ao Estado. Apenas nos casos de ordenar que alguém prejudique a si mesmo ou cometa suicídio é que o súdito pode desobedecer. Além dessa situação, o súdito só tem direito de resistência caso o soberano não seja mais capaz de garantir a segurança, que é o motivo primordial da realização do pacto. Percebe-se, então, que o direito civil prevalece totalmente no Estado hobbesiano. O direito natural permanece apenas em áreas restritas e em situações-limite. Na obra de Spinoza, o destaque para a motivação que leva ao pacto para fundar o estado civil é a capacidade do homem de entender, através da razão, que em um estado civil é vantajoso para sua segurança e para a realização de suas capacidades. A razão leva ao entendimento de que a cooperação dentro de um estado civil é mais favorável à paz do que a permanência no estado de natureza. No Tratado Político, Spinoza também afirma que os homens só podem renunciar ao pacto com o soberano se este der tal permissão, porém Spinoza admite a continuidade do direito natural mesmo quando o Estado é fundado e os direitos civis passam a vigorar. Isso faz com que esteja sempre presente a possibilidade de tensão entre as potências dos homens singulares e a potência do Estado. Enquanto o soberano for mais potente, seu poder é conservado, mas se se a união das potências individuais tornar-se mais forte, o soberano perde seu poder sobre os cidadãos. Segundo Hobbes, a principal função do Estado, posto seu estabelecimento, é fornecer proteção aos súditos, em relação a perigos internos e externos. A segurança, portanto, também tem papel central. Além disso, por considerar que quanto mais ligados estiverem o interesse público e o individual, mais se beneficia o interesse público, Hobbes diz que a monarquia se configura em uma melhor forma de governo do que a democracia ou a aristocracia, afinal, Volume XVIII Issue III Version I 5 ( F ) dentre as três formas, a monarquia é aquela na qual o interesse pessoal é igual ao interesse público. Segundo Negri (2000), a teoria do contrato social hobbesiana possui um caráter fortemente monárquico (apesar de sua aplicabilidade a qualquer forma de regime), pois o mecanismo jurídico-político do Leviatã é excludente e resistente a qualquer prática constitutiva, dinâmica e participativa. Observa-se, mais uma vez, em Hobbes, a defesa de um Estado mais rígido, que prevê menos possibilidades de rompimento do pacto. Por outro lado, Spinoza argumenta que, apesar de o maior valor de um Estado estar em sua capacidade de fornecer segurança, é essencial que ofereça também uma estrutura de bem-estar para os súditos. Sobre a monarquia, diz que, além de ser impossível que o rei governe sozinho, a escolha do monarca deve ser feita pelo povo, o que desconstrói uma das características mais conhecidas da monarquia: a hereditariedade do poder soberano. Enquanto Hobbes defende que é sempre o monarca atual que deve decidir seu sucessor, Spinoza prevê justamente o contrário: não é o monarca atual que deve decidir, mas sim a população, através de um novo pacto. A monarquia apresentada no Tratado Político possui outras diversas características democráticas: os conselheiros do rei e os juízes são escolhidos periodicamente e em grande número, as decisões do rei passam pelo crivo do conselho, o exército é popular e não é composto como milícia a serviço do soberano e os cargos do setor judiciário são altamente rotativos e exercidos por curtos períodos. A aristocracia também possui diversos elementos de um estado democrático e, por se aproximar mais deste, é considerada por Spinoza como superior à monarquia. Na democracia, a vontade dos homens de querer governar ao invés de serem governados é prevista. É, portanto, a forma política em que o direito civil melhor convive com o direito natural e aquela em que o desejo de governar e não ser governado pode concretizar-se (CHAUÍ, 2006). A diferença basilar entre os dois filósofos parece ser que, para Hobbes, que considera que os homens são dominados pelas paixões, é necessário um poder coercitivo para conter seus desejos; já Spinoza, que destaca a capacidade de uso da razão humana, considera que o homem é capaz de obedecer quando percebe que a manutenção do Estado é favorável ao seu bem-estar, ainda que reconheça que o medo pode colaborar para a obediência. Sendo assim, ao contrário de Hobbes, que concluiu que a melhor forma de conservar o Estado é concentrar o máximo de poder no soberano, Spinoza considera que quanto mais tirânico for o poder exercido pelo soberano, mais ele impede a potência dos indivíduos, os quais tendem a resistir ao poder político (SPINOZA, 1983, 2004). Nota-se, assim, que, no pensamento hobbesiano, liberdade e obediência são valores opostos, já no spinozano, são complementares. Tanto Hobbes quanto Spinoza afirmam que a forma de governo não é o que mais importa dentro da organização do Estado. Entretanto, para o segundo, a maior importância reside na capacidade do governo de garantir segurança, mas também de permitir uma vida de paz, na qual o máximo possível da potência do conatus possa ser alcançado. Para o primeiro, a função principal do Estado está na proteção física dos cidadãos e no impedimento do retorno ao estado de natureza. A ordem é um valor muito estimado por Hobbes. Feitas essas considerações, pode-se dizer que, embora Hobbes não descarte a possibilidade de implementação da democracia no estado civil, ela não se mostra como a melhor forma de governo em sua obra. O escasso espaço dado à liberdade, limitada à vida privada, a valorização extrema da segurança e da obediência e a defesa de um Estado que seja o mais absoluto possível deixam poucas perspectivas à democracia. Uma característica democrática bastante presente na obra hobbesiana é a representação, porém se nota que ela também faz parte das demais formas de governo apresentadas por Hobbes. O estado democrático possível em Hobbes aparenta limitar-se a uma organização política com uma mínima participação popular (AZEVEDO, 2012). O mesmo não pode ser dito em relação a Spinoza. Conforme foi exposto, o filósofo holandês diz categoricamente que a democracia é a melhor forma possível de governo. É a que mais aproxima o povo do poder político, aquela que lhe concede mais liberdade e potência, a que mais afasta o risco de opressão e tirania. O estado democrático de Spinoza vai além da ideia de representação e considera uma maior possibilidade de inclusão e participação da sociedade civil. O Tratado Político, aliás, é apontado como a obra em que, pela primeira vez, aparece uma definição moderna de democracia (NEGRI, 2000). Dito isso, é bastante plausível dizer que as distinções entre os dois filósofos no campo político devem-se, em grande medida, às suas diferentes concepções sobre os pressupostos antropológicos. Por um lado, Hobbes considera que os homens são movidos pelas paixões e pelo autointeresse, portanto, fundam o Estado e dão poder ao soberano em troca de segurança. Uma vez instituído o estado civil, o direito natural fica marginalizado, os homens obedecem porque a ameaça de coerção está sempre presente e a liberdade restringe-se à vida privada dos súditos. Sendo assim, quanto mais centralizadora, mais eficiente e melhor é a forma de governo. Por outro lado, Spinoza entende que a natureza humana é composta tanto de paixões quanto pela capacidade humana de utilizar a razão. Além disso, o filósofo holandês não faz juízo de valor das paixões humanas, pois considera que tanto 6 ( F ) as "paixões alegres" quanto as "paixões tristes" são inerentes ao homem, logo, os indivíduos podem agir movidos pelo autointeresse e pela sociabilidade e cooperação. A razão leva o homem a compreender que terá mais vantagens ao realizar o pacto que dá poder ao soberano em troca de segurança, mas também de bem-estar. Fundado o Estado, o direito natural não deixa de vigorar, os homens obedecem tanto devido ao medo quanto devido a sua capacidade de compreender os benefícios da obediência civil e o máximo possível de liberdade deve estar presente. Isso posto, defende que a democracia é a forma de governo que melhor atende a essas condições e a que mais se aproxima da liberdade que a natureza concede a cada um. V. # Considerações Finais O breve estudo realizado neste trabalho sobre alguns aspectos da teoria política de dois grandes nomes da filosofia moderna permite uma visão significativa sobre alguns conceitos-chave presentes na obra de Spinoza e Hobbes. Ao examinar as considerações de ambos sobre as características da sociedade "pós-contrato" é possível notar que eles possuem ideias significativamente próximas no que se refere ao modus operandi do pacto que funda o Estado. A instituição do Estado é possível devido à abdicação e transferência de direitos para o soberano, o qual mantém seus direitos naturais enquanto os súditos devem obedecer às leis civis. A maior virtude do Estado é fornecer segurança o poder soberano é que decide o que é justo e moral. A vontade soberana é a vontade de todos e mesmo aqueles que discordam de seus preceitos devem segui-los. Se os súditos se indignam com o Estado e rompem o pacto, o estado civil é dissolvido e volta-se ao estado de natureza. Por fim, ambos afirmam existir três formas cabíveis de governo (monarquia, aristocracia e democracia) e alegam que, por pior que possam ser, qualquer uma das três é preferível em relação ao retorno ao estado de natureza. Por outro lado, a análise das concepções de Spinoza e Hobbes relacionadas à configuração "précontratual" da convivência entre os indivíduos revela muitas diferenças entre os dois. A natureza humana é definida por Hobbes como egoísta e conflitiva; já para Spinoza ela é comandada tanto pelas paixões quanto pela razão, sendo, portanto, utilitarista e competitiva, mas também sociável e cooperativa. Consequentemente, o estado de natureza hobbesiano é caracterizado por uma "guerra de todos contra todos", enquanto o de Spinoza, apesar disso, prevê a possibilidade de cooperação em busca do maior bemestar e liberdade de cada um. Para Hobbes, é o medo da violência que leva à decisão de instituir o Estado, para Spinoza, é a razão. Para o filósofo holandês, liberdade é sinônimo de uso da razão; para o filósofo inglês, liberdade é sinônimo de ausência de impedimento. A comparação revela, portanto, que, apesar de partirem de noções antropológicas consideravelmente distintas, uma bastante marcada pelo medo e outra pela razão, os dois filósofos chegam a teorias parecidas sobre o funcionamento do Estado Moderno. Entretanto, quando argumentam sobre as possíveis melhores formas de governo, uma vez instituído o estado civil, a justificativa para a divergência que surge pode ser buscada em seus diferentes conceitos antropológicos. Ainda que não declare abertamente, no Leviatã, sua preferência em relação às formas de governo, Hobbes fornece vários indícios que levam à interpretação de que a monarquia absolutista é o regime que melhor se encaixaria em suas concepções. Já Spinoza não deixa dúvidas: o estado democrático é a melhor forma política possível. 3 Quando versa sobre os conselhos, por exemplo, Hobbes diz que "quem deseja não falhar o alvo, embora olhe à volta com ambos os olhos, quando aponta fá-lo sempre com um só. Assim, nunca um grande Estado popular se conservou, a não ser graças a um inimigo exterior que uniu seu povo, ou graças à reputação de algum homem eminente em seu seio, ou ao conselho secreto de uns poucos, ou ao medo recíproco de duas facções equivalentes, mas nunca graças à consulta aberta da assembleia" (HOBBES, 1983, p. 90).4 Como nesta passagem: "aquele que assim foi mordido tem um contínuo tormento de sede e contudo não pode ver a água, e fica num estado como se o veneno conseguisse transformá-lo num cão; do mesmo modo quando uma monarquia é mordida até ao âmago por aqueles autores democráticos que continuamente rosnam em suas terras, ela de nada mais precisa do que de um monarca forte" (HOBBES, 1983, p. 110).5 "Se o soberano ordenar a alguém (mesmo que justamente condenado) que se mate, se fira ou se mutile a si mesmo, ou que não resista aos que o atacarem, ou que se abstenha de usar os alimentos, o ar, os medicamentos, ou qualquer outra coisa sem a qual não poderá viver, esse alguém tem a liberdade de desobedecer" e "ninguém pode ser obrigado por um pacto a recusar-se a si próprio" (HOBBES, 1983, p. 75). ( F ) Year 2018 © 2018 Global JournalsThe Possibilities of Democracy in Spinoza and Hobbes This page is intentionally left blank ( F ) * PabloAzevedo Representação E Participação Reflexões sobre uma Teoria da Democracia em Hobbes e Spinoza. Revista Eletrônica de Ciências Sociais 2015 6 7 * De Hobbes a Marx. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales; DCP-FFLCH, Departamento de Ciencias Politicas MarilenaChauí Espinosa: Poder E Liberdade Faculdade de Filosofia Letras e Ciencias Humanas USP, Universidade de Sao Paulo 2006. 2015 7 En publicacion: Filosofia política moderna * Michael;Hardt AntonioNegri Império JaneiroRio De 2006 Editora Record * Leviatã ou matéria ThomasHobbes São Paulo: Abril Cultural 1983 3ª ed. * BaruchDeSpinoza Tratado Político São Paulo Abril Cultural 1983 3ª ed. * __________________.Tratado Teológico-Político * Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2004 3ª ed. * The Possibilities of Democracy in Spinoza and Hobbes