# Introduction a preparação do livro O Pão e o Vinho, publicado em 1959, Moacyr Félix elaborou uma espécie de método de trabalho, por assim dizer, que manteve ao longo das obras que se seguiram: a reescrita constante dos poemas, sobretudo os já publicados, visando sempre uma "versão definitiva" em publicação futura. Até seu último livro, Introdução a escombros, de 1998, a partir de O Pão e o vinho todas as obras poéticas publicadas contém trechos de livros anteriores com "versões definitivas" de diversos poemas (inclusive as obras que não se apresentam como antologias e compilações). Félix iria publicar O Pão e o Vinho na Suécia em 1955. Contudo, com o livro já no prelo, resolveu reelaborá-lo e, além de construir novos versos, reescreveu os que seriam publicados. "Obra amadurecida": "nele, já tenho meu próprio rosto", disse ao Jornal de Letras à época do lançamento (FÉLIX, 2002, p. 155). O "rosto" próprio, buscado e/ou forjado, outrossim, no trabalho de reescrever os poemas, aparece como uma espécie de meta ao poeta: "que eu seja eu mesmo no livro, fazendo obra de arte" (FÉLIX, 2002, p. 156). Tratar-se-ia da busca por uma identidade poética cujo substrato seria a elaboração de uma "identidade narrativa" em que o sujeito lírico e o vivente pudessem se encontrar numa espécie de comunhão, ou fusão. Félix fala sobre si como duplo, e é este um mote, por assim dizer, importante da sua produção poética. Se sujeito vivente e sujeito lírico não se confundem, seus encontros e desencontros produzem efeitos e têm implicações recíprocas de um sobre o outro. Se tal relação não é simétrica e se escapa a determinações causais, àquele que se enuncia como "poeta" as linhas que desenham um "rosto próprio" despontam dos versos impressos sobre o papel. Nos primeiros versos de O relógio e o sonho, o tema da escrita é atravessado pelo aparecimento de fragmentos de memória que apontam a uma biografia imprecisa: Escrever como quem chora... Meu Deus, onde e quando eu li estas palavras que retornam tão nuas de passado? Como quem chora... O quarto, o berço, as coisas pálidas, a lua na parede branca de retratos que calaram. Nenhum mapa na rua Voluntários, ao menos, ou de uma borda do Sena, do Sena tão distante como aquele olhar de Ana Maria, quando acordamos juntos em 9 de abril de 1950 (FÉLIX, 1959, p. 39). Encontramos, nestes versos, como que um inventário de imagens que não chega a oferecer um mapa seguro para a memória. O poeta recolhe e dispõe tais imagens como quem lança sobre o papel um olhar que tenta recuperar aquele que fora lançado sobre as coisas, o que nos remete à figura do "esgrimista", de Baudelaire, elaborada na sua análise de Constantin Guys -metáfora que permite identificar o artista como aquele que luta com a obra, travando "combate" com a memória e com a "pena"; ou, antes, como aquele que encarna um lugar impreciso em que memória e criação se confrontam. Agora, no momento em que os outros dormem, esse homem está curvado sobre a mesa, lançando sobre uma folha de papel o mesmo olhar que há pouco fixava sobre as coisas, esgrimindo com seu lápis, sua caneta, seu pincel, respingando no teto a água do copo, limpando a pena na camisa, apressado, violento, ativo, como se temesse que as imagens lhe escapassem, brigando sozinho, esbarrando em si mesmo (BAUDELAIRE, 2010, p. 32). 1 Vejamos que, na interpretação benjaminiana, "a esgrima representa a imagem da resistência ao choque" (BENJAMIN, 1994, p. 111). Benjamin associa a experiência do choque primeiro à multidão. Mais adiante, é a noção de trauma, tomada de Freud, que serve de referência a Benjamin para pensar a relação entre o choque e a memória: "Quanto mais corrente se tornar o registro desses choques no consciente, tanto menos se deverá esperar deles um efeito traumático" (BENJAMIN, 1994, p. 109). O que a multidão e o trauma podem ter em comum é certa "experiência" de desintegração subjetiva, ou, em outros termos, de clivagem e/ou vertigem do que poderíamos chamar de individualidade. Como assinalou, "nenhum tema se impôs aos literatos do século XIX" como a multidão (BENJAMIN, 1994, p. 114). Isso, muito provável, porque O artista e seu processo de trabalho são, a um tempo, a passagem e a fixação de uma dupla imprecisão: as "imagens do dia", que se destinam ao esquecimento, e a velocidade da pena sobre o papel, a registrar tais imagens o quanto puder antes que desapareçam. Félix parece lutar, também, com (e contra) a evanescência da própria experiência criativa. Seria sua obsessão pelo "definitivo" -a versão última e definitiva do poema, o rosto próprio -uma aspiração ao eterno, no sentido do que resistiria ao tempo, no tempo. A metáfora do esgrimista poderia, aqui, representar o artista na sua labuta/luta com a obra a partir do confronto entre escrita e memória, mas, não mais especificamente a memória dos pequenos detalhes vistos durante o dia na cidade, ou seja, não mais uma memória que apreende imagens, mas uma memória que (se) fragmenta e desmembra o que estava pressuposto como identidade, ou como promessa de. A escrita que se apressa para fixar no papel a memória quer fixar a transitoriedade; vitorioso o poeta a dar "versão definitiva" à sua obra, a encontrar o "rosto próprio", a fundir sujeito lírico e vivente. a sociedade moderna, que faz do "indivíduo" "alvo e efeito privilegiado" de suas "intervenções e investimentos" (BARROS; JOSEPHSON, 2007, p. 441) seja, ao mesmo tempo, a sociedade da "multidão". E "na multidão, o indivíduo ao mesmo tempo se dissolvia e se constituía, com-formando-se aos processos de massificação e mercantilização" (VIEIRA, 2011, p. 350). Tal fenômeno tem no poeta efeito peculiar, uma vez que, na modernidade, a épica tenha cedido lugar, por assim dizer, à lírica, sustentada na (e sustentando a representação da) figura de uma individualidade autocentrada e autorreferenciada (representação que "cola" individualidade, identidade e subjetividade, ou como sinônimos, ou como causalidades entre si). Como disse Beatriz Vieira (2011, p. 350), a massificação provoca no poeta "a perda de sua aura de sujeito individualizado, inspirado e genial, bem como as aporias entre representação criativa, miméticareprodutiva e comercial, até hoje insolúveis". Daí que Benjamin (1994, p. 110) indaga: "de que modo a poesia lírica poderia estar fundamentada em uma experiência, para a qual o choque se tornou a norma?". Na sua apropriação de Além do princípio do prazer, Benjamin estabelece uma distinção que lhe é cara, entre vivência e experiência, advertindo que: O fato de o choque ser assim amortecido e aparado pelo consciente emprestaria ao evento que o provoca o caráter de experiência vivida em sentido restrito. E, incorporando imediatamente este evento ao acervo das lembranças conscientes, o tornaria estéril para a experiência poética (BENJAMN, 1994, p. 110). A apropriação benjaminiana da noção de trauma em Freud é, contudo, problemática e carece uma observação. A distinção entre experiência e vivência, como tal, é particular a Benjamin, e sua reflexão sobre a memória e a rememoração deriva mais da sua leitura de Theodor Reik, conforme é possível observar nas Passagens (BENJAMIN, 2007). Em Freud, a questão que se coloca é a de pensar por que repetimos "as mesmas vivências" (a "compulsão à repetição") se elas trazem à tona "experiências do passado" que foram e serão, ao retornar, desprazerosas: "[...] a compulsão à repetição também traz de volta experiências do passado que não possibilitaram prazer, que também naquele tempo não podem ter sido satisfações" (FREUD, 2010, p. 179). O problema a ser encarado, em Além do princípio do prazer, esboçado já no título do ensaio, é, portanto, compreender o retorno da "ferida narcísica" -que jaz como "dano permanente" -em vivências dolorosas, posto que tal movimento põe em crise a tese de que o aparelho psíquico se orientaria de acordo com o princípio do prazer. Surge, nestes termos, a elaboração de uma nova oposição que seria constitutiva do psiquismo, entre pulsão de morte e pulsão de vida, substituindo, por assim dizer, a que se orientava entre princípio de realidade e princípio de prazer. . Se a esgrima é metáfora do trabalho da elaboração criativa do poeta é porque este tenta, através do conflito instaurado entre memória e lembrança, escapar ao registro das vivências em favor, como disse Maria João Cantinho (2015, p. 119), de uma "desintegração necessária da unidade imediata da organicidade das coisas", engendrado por uma "pretensão redentora que é o estabelecimento de uma (re)criação ou (re)construção que obrigue as coisas a significar". # Global Journal of Human # 5 Nos termos benjaminianos, a memória voluntária seria aquela que ordena, arranja e harmoniza as vivências, que não se confundem, todavia, com o passado. Ao contrário desta, a memória (involuntária, ou, digamos, inconsciente) é a-temporal. O gesto da criação poética -gesto alegórico (CANTINHO, 2015, p. 119) -diz respeito à rememoração, e tem, assim, íntima relação com o caráter atemporal da memória. Com ela, não se trata do ordenamento cronológico das vivências, mas de uma atualização do passado na , seja "engolido" pelo tempo, ao mesmo passo em que lutaria na produção de uma "experiência poética". 4 "Dizer perda de experiência significa falar da experiência do choque [Chockerlebnis], visto que toda a experiência do homem do século XIX nos aparece à luz dessa impossibilidade de uma experiência autêntica [Erfahrung]. A experiência do choque nasce e desenvolvese, par a par com a consciência do declínio da aura [...], declínio que faz nascer um mundo ilusoriamente transfigurado, permitam-nos a expressão, 'fantasmagorizado', mediante a necessidade de tornar suportável a história arruinada, num mundo marcado pelo fétiche da mercadoria" (CANTINHO, 2003, s/p.). 5 Signo da melancolia, Saturno "rege" uma disposição afetiva íntima ao poeta e ao alegorista. Como escreveu Maria João Cantinho: "É à luz saturnina e melancólica do saber lutuoso, que Baudelaire nos apresenta o 'rosto da morte', sob a forma concreta do velho que eternamente se repete. Poderíamos dizer, então, com toda a justiça, seguindo as pisadas, não apenas de Baudelaire, como também de Benjamin, que a experiência vivida do choque, na modernidade, pode encontrar-se subsumida nessa palavra-chave, que é o conceito de repetição, acrescentando ainda que a noção de repetição se configura como o componente fundamental e essencial da perda da experiência ou da experiência vivida do choque. Numa clara contraposição, parecem, então, ressaltar dois pólos dialécticos -que caracterizam a modernidade de que nos fala Walter Benjamin -, por um lado, uma experiência de fantasmagoria colectiva e de embriaguez dela resultante, por outro, uma experiência terrífica que a espera no seu despertar: a experiência da eterna repetição" (CANTINHO, 2015, p. 127-128; grifos da autora). # Global Journal of Human Social Science -Year 2023 ( ) experiência presente. A memória, assim, em vez de "registrar" acontecidos, é "lugar" de conflitos em que operam atualizações às demandas do próprio presente. Podemos, assim, perguntar em que medida a inscrição do vivido na ordem do cronológico não se empenha na meta de elaboração de uma identidade e, consequentemente, em que medida tal empenho -que seria "nulo" à experiência poética -não é frustrado tanto pela condição atemporal da memória quanto pelo caráter transgressor da rememoração. Benjamin se refere à estrofe inicial do poema O Sol, de Baudelaire, em que o poeta se refere diretamente à "estranha esgrima", como "talvez a única passagem de As Flores do Mal que o mostra no trabalho poético" (BENJAMIN, 1994, p. 68): Le long du vieux faubourg, où pendente aux masures Les persiennes, abri des secretes luxures, Quand le soleil cruel frappé à traits redoublés, Sur la ville et le champs, sur les toits et les blés, Je vais m´exercer seul à ma fantasque escrime, Flairant dans tous les coins les hasards de la rime, Trébuchant sur les mots comme sur les pavês, Heurtant parfois des vers depuis longtemps rêvés (BAUDELAIRE, 2003, p. 188). 6 Diferentemente de Baudelaire, o trabalho poético foi tema recorrente nos poemas de Félix. No poema O Relógio e o Sonho, ele aparece já no primeiro verso, talvez de forma não tão explícita: "Escrever como quem chora... Meu Deus, onde e quando eu li / estas palavras que retornam tão nuas de passado?". Atentamos ao "retorno das palavras tão nuas de passado", e, mais especificamente, à indagação sobre elas. A memória, aqui, é lugar de um conflito: de um lado, a lembrança busca ordenar o vivido, para oferecer ao poeta um rosto próprio, de outro, o rosto é justamente aquilo que o esvaziamento da experiência subtrai ao vivente 7 6 Optou-se pela transcrição original por conta das diferenças entre a versão que consta no texto em português de Benjamin e a presente na edição bilíngue da editora Relógio D´água, como, por exemplo, a opção desta por traduzir fantasque escrime por "ofício de textuante", que nos afastaria sobremaneira da discussão sobre a metáfora do esgrimista. 7 "A perda de experiência, no homem moderno, como Baudelaire nos dá conta, está longe de ser meramente entediante, ela reconhece-se como uma experiência de horror e de total alienação, no mundo estigmatizado pelo fetiche da mercadoria. Tal como a alegoria permitia reconhecer no barroco a impossibilidade da singularidade e da individualidade humanas (esse horror aparece sob a forma do riso em Pascal), também a experiência baudelaireana do choque e a sua transfiguração nos empurra para esse "abismo vertiginoso", que é, a um tempo, a constatação da impossibilidade do rosto humano e a revelação de uma única coisa: o saber da morte e da sua eterna repetição" (CANTINHO, 2015, p. 127). -e, neste sentido, a busca pelo rosto é de uma identificação que suporte uma história, em cujas rugas e traços se poderia ler marcas de experiências. A questão, todavia, que a vida moderna, com seu regime de excessos, põe em cena é que teríamos nos habituado à "exposição a circunstâncias traumáticas de grande intensidade", como disse Francisco Ramos de Farias (2008, p. 101), que geram fraturas da memória, restos não simbolizáveis. Se a busca pelo rosto é a de constituir uma história de experiências, o poeta está às voltas com um desafio, de um lado a ordenação cronológica não seria capaz de transformar vivência em experiência e, de outro, a dispersão põe em xeque a singularidade que se pretende representar com o rosto. A experiência da escrita seria, assim, a experiência de uma luta interminável. Daí que "antes de ser vencido, [o artista] lança um grito" (BENJAMIN, 1994, p. 111). Podemos, assim, acionar outra imagem-noção benjaminiana, a do colecionador: [...] talvez o motivo mais recôndito do colecionador possa ser circunscrito da seguinte forma: ele empreende a luta contra a dispersão. O grande colecionador é tocado bem na origem pela confusão, pela dispersão em que se encontram as coisas no mundo (BENJAMIN, 2007, p. 245). Em O Sol, de Baudelaire, é o acaso da rima, o tropeço nas palavras e os encontros com imagens já há muito sonhadas que a constituem a experiência da criação poética. Em O Relógio e o Sonho, de Félix, a lembrança esbarra nos seus próprios limites: "onde" e "quando" não são respondidos; a lembrança consciente não encontra casa na memória, a vivência não se inscreve na cronologia, a identidade não dissolve a alteridade. "Onde e quando...?". Em nove de abril, é o olhar de Ana Maria, já tão distante como a borda do Sena, a embalar silêncios que só fazem produzir abismos crescentes; nenhum mapa na Voluntários; os casebres, o subúrbio e a treva que chega são remetentes e destinatários de algo que, como um telegrama sem destino, bate no peito. Escrever como quem chora... Meu Deus, onde e quando eu li estas palavras que retornam tão nuas de passado? Como quem chora... O quarto, o berço, as coisas pálidas, a lua na parede branca de retratos que calaram. Nenhum mapa na rua Voluntários, ao menos, ou de uma borda do Sena, do Sena tão distante como aquele olhar de Ana Maria, quando acordamos juntos em 9 de abril de 1950; nem mesmo o silêncio me explicava ali, o silêncio a carregar espelhos de aço para os pássaros, crescendo seus abismos de seda, crescendo malgrado tudo, crescendo misteriosamente, crescendo sem raízes, sem deus, sem amor, pura dor apenas. # Existe o relógio. Duro ofício o de aprender coisa tão simples. Mais difícil e nobre, no entanto, é reesquecê-la. Tic-tac, tic-tac... Algo em meu peito bate um telegrama "Existe o relógio" -a estrofe jaz solitária dividindo o poema, como interrupção e como passagem. Não há dúvidas, pois: a assertiva breve fratura qualquer pretensão de continuidade. Antes, o poema promove o aparecer de lembranças, ora imprecisas, ora com data e lugar, que abrem espaços, não vazios, para a nostalgia: os retratos calados, o quarto, o olhar da amada ao amanhecer. Depois, é a impossibilidade do sonho que assombra o poeta: o maquinismo, as correntes, o escravo, a pedra. A existência do relógio não é, assim, mera constatação; antes, ela dá sentido (ou afiança) a passagem interminável (se não interminável, ao menos de impraticável localização) entre sonho e memória, entre nostalgia e melancolia. Trata-se de esquecer, ou voltar a esquecer o relógio. Talvez, "reesquecer", diferente de "esquecer", marque justamente a intenção de uma "tarefa" por fazer, um gesto conscientemente orientado, um "ofício". Cabreia ao poeta contrapor-se ao relógio, confrontar-se à sua existência, ciente do fracasso (ou, ao menos, da incompletude) da sua empreitada, já que em um mundo maquínico e escravo. "Existe" o relógio, mas "insistem" o sonho e a memória. Junto aos conflitos balizados entre sonho, memória e tempo insistem, pois, referências e endereçamentos ao desconhecido. "Algo em meu peito bate um telegrama / a não sei quem... Tantos rostos, tantos olhos, tantos corpos / e a noite!". Os casebres do subúrbio, a poesia contida, a sopa rala do escravo, as palavras do passado retornando nuas e sem autoria. O poema testemunha e provoca o fracasso da tentativa de afirmação de uma identidade autorreferente. As palavras, os sonhos, as memórias e os tempos do poeta são palavras, sonhos, memórias e tempos de outrem, capturados num instante fugaz de afirmação e de desintegração recíproca de si mesmo. Está em jogo, nas palavras do poeta que se anuncia e enuncia no e com o poema, uma "história de desejos desejados" 8 . "Escrever como quem chora...". Escrever como quem "lamenta", mas, talvez, também como quem "flui". Cabe observar que "choro" tem a mesma raiz etimológica de "chuva", no radical indo-europeu Pleu (donde pluvia, pluvius, plovere, chuva, chuvoso e chover, mas também plovo, choro, e plorare, chorar) que indica "fluir", "escorrer". Escrever como quem escorre... "Escrever", todavia, deriva do indo-europeu Skreibh, cuja base é Sker: "cortar", "fazer incisão", já que a escrita primitiva se dava através de sulcos (PORTELLA, 1984, p. 110). Fazer um corte naquilo que flui, que escorre, e que, assim, irremediavelmente se perde, seria como que elaborar um limite para (e/ou em) aquilo que está escapando, como a memória e a experiência -e, com elas, a identidade, o rosto próprio, o definitivo. O "limite" do corte, estabelecido pela incisão (da escrita, da pena, da lâmina do esgrimista), ao ter por objeto o que flui, ou o que escorre, não seria outro senão aquele que, como teria definido Hegel na Ciência da Lógica, é uma "barreira de dois gumes" (HEGEL, 2016, p. 137) -"mediação" dialética (da alteridade). Nas palavras de Vladimir Safatle: [...] compreender como algo tem em si mesmo seu próprio limite, seu outro, é a chave para ultrapassar as oposições abstratas [...] as oposições não são apenas modo de estabelecer relações entre seres exteriores um ao outro, mas modos de determinação da relação de um ser consigo mesmo. No interior desse processo de autorreferência a si, tal determinação de si não é mais oposição, mas sim contradição (SAFATLE, 20120, p. 105). O esgrimista Moacyr Félix tem no encontro com o "rosto próprio" uma espécie de meta: a elaboração consciente que transforma em vivência, lembrança e cronologia os acontecimentos da vida, colecionando fragmentos em meio à dispersão. A escrita poética como corte (ou seja, como limite, que não interrompe, mas abre acesso à contradição), é, a um tempo, fixação e evanescência, identificação e fragmentação. Como limite, é o acontecer da contradição, em que a memória não se submete por completo ao cronológico. "O homem não é capaz de rememorar sem se dissolver" (SAFATLE, 20120, p. 113). A afirmativa da identidade poética é, ao mesmo instante, a constatação, ou a realização, da sua perda. Em A estrada: "Pedra a pedra faço minha pergunta / e me desfaço, pedra a pedra. [...] Pedra a pedra, construo o meu poema / e me destruo, pedra a pedra" (FÉLIX, 1959, p. 29). Quando parar, no tempo, esta alma cheia de escolhas acabadas, rosa quieta a desmanchar-se em desenhados ventos, ah, vida, não me vença a noite alerta atrás do abismo e que os abismos incendeia: deixa eu colher no rosto um rosto certo do tempo irreversível, som de areia que já foi casa ou ponte, e não deserto... (FÉLIX, 1959, p. 6). # Global Journal of Human Social Science Somente quando "parar no tempo" será permitido pleitear "colher no rosto um rosto certo / do tempo irreversível". Mas o rosto possível é "som de areia", resíduo do resíduo. Que seja "som de areia / que já foi casa ou ponte, e não deserto"; que a vida, já parada no tempo, não apague a noite que incendeia os abismos, eis a esperança do poeta. Frente à crise da lírica, ou ao desfazer-se do sujeito lírico num mundo que lhe incita e trai, Félix parece querer fazer da sua lírica um réquiem antecipado -ou constante -de si mesmo enquanto promessa de um rosto. Uma "necessidade", escreveu na Nota de abertura de Um Poeta na Cidade e no Tempo, de 1966, "de não ir embora sem projetar contra as máscaras do Tempo um pedaço meu (por menor que fosse, mas que fosse meu!)" (FÉLIX, 1966, p. 1). Esgrimista, luta contra o tempo: não o tempo que transforma a casa ou a ponte em areia e a areia em som de areia, mas o que dá "adeus" às tristezas e à esperança, como na última estrofe de O Hóspede: Eis o real assomo de existir, o ofício irrevogável de quem cuida a vida como se cuidasse do que fica além desse atro adeus que entre os portais apaga nossa peculiar tristeza, nossa herança de osso e sal, e de esperança (FÉLIX, 1959, p. 24). do qual o choque é índice 4Year 2023, mas entreexperiência e vivência -conflito este implicado emoutro, que tem lugar na memória: memória voluntária,memória involuntária e rememoração. Tais conflitos,que se atravessam, reverberam naquele travado entre opoeta/esgrimista e a multidão: "[...] os golpes quedesfere destinam-se a abrir-lhe caminho através damultidão. [...] é a multidão fantasma das palavras, dosfragmentos, dos inícios de versos com que o poeta, nasruas abandonadas, trava o combate pela presa(poética" (BENJAMIN, 1994, p. 113). Isso porque "à-Social Sciencevivência do choque, sentida pelo transeunte na multidão, corresponde à 'vivência' do operário com a máquina" (BENJAMIN, 1994, p. 126). Em outros termos, trata-se do desaparecimento da experiência autêntica [Erfahrung], fenômeno característico da modernidade e Nas Obras Escolhidas de Walter Benjamin (ed. Brasiliense), a passagem aparece como: "Ei-lo curvado sobre a mesa, fitando a folha de papel com a mesma acuidade com que, durante o dia, espreita as coisas à sua volta; esgrimindo com seu lápis, sua pena, seu pincel; deixando a água do seu corpo respingar o teto, enxugando a pena em sua camisa; perseguindo o trabalho rápido e impetuoso, como se temesse que as imagens lhe fugissem. E assim ele luta, mesmo sozinho, e apara seus próprios golpes" (Baudelaire Apud BENJAMIN, 1994b, p. 68). © 2023 Global Journals "Writing as One Who Cries...": The Poet as a Fencer © 2023 Global Journals "Writing as One Who Cries...": The Poet as a Fencer Expressão de Alexandre Kojève, em Introdução à leitura de Hegel, comentada por Safatle (2012, p. 74): "[...] desejo, de maneira a princípio profundamente conflitual, é desejo de outros que me antecederam, e que, de certa forma, não deixaram de continuar falando em mim". * A Invenção das Massas SílviaJosephson Carvalho JACÃ?"-VILLELA, A. M. et al. (orgs. * Rio de Janeiro: Nau PsicologiaHistória Da 2007 * As Flores do Mal. Lisboa: Relógio D´água CharlesBaudelaire 2003 * CharlesBaudelaire 2010 Autêntica Belo Horizonte * Um Lírico no auge do capitalismo. Obras Escolhidas III. 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