experiencias cotidianas y en los discursos religioso/ laico como estrategias de poder de largo plazo en el patriarcado occidental, buscando verificar la dialéctica establecida entre la legislación y las prácticas sociales en Brasil. En la búsqueda de respuestas, la investigación se centra en dos instancias complementarias pero distintas: la presencia del "amor y la sexualidad" en el imaginario colectivo y cómo este imaginario, que circula entre nosotros y alrededor nuestro, interesa al poder y las instituciones. Se verifica que las bases legales de la legislación occidental y sus efectos son elementos estructurantes de las conductas sexuales prescritas o proscritas, según una lógica que opone los deseos a los deberes, creando una "pastoral del miedo". Palabras clave: amor y sexualidad; códigos y prácticas sociales; pecado, culpa y miedo; deberes de mensa et toro. # I. Introdução ste artigo atém-se a uma das dobras do imaginário social ligada ao sexo e ao amor e procura contribuir para o esclarecimento de uma zona que já pertenceu ao silêncio cultural, mas que hoje ocupa a boca de cena do discurso social. É uma fala cujos sentidos, multiformes e pluralistas, merecem ser desvelados, dado o cuidado com que o passado produziu normas, pragmáticas, leis, conceitos e preconceitos sobre um tema considerado de mixti fori -, subministrado pelo trono e altar, compreendendo o universo real e o mágico. Na época atual, o acontecimento a investigar não é livremente escolhido pelo historiador, mas pela inflação da informação, a multiplicação de perguntas, das próprias inquietações coletivas. O território da pesquisa é o presente, com seus problemas, mas a explicação sobre os acontecimentos só pode se enraizar no passado, por meio de uma operação destinada a decifrar todas as camadas sucessivas da realidade imediata. Camadas que aparecem na intersecção inevitável do coletivo com o individual, de mulheres e grupos excluídos sobre os quais recaíram castigos por comportamentos amorosos -morais e físicos -considerados como pecados contra Deus e o Estado. Os sentimentos humanos sobre o amor e a sexualidade são estruturantes na cultura ocidental, marcada pela dialética entre o desejo e o dever. O amor romântico é considerado por muitos historiadores como um fenômeno tardio, consequente dos processos de industrialização e urbanização, da Europa do século XVIII. Embora os sentimentos, com as emoções e os efeitos que desencadeiam, façam parte das preocupações humanas, a sua história ainda é recente. Em contrapartida, é uma categoria que está na moda e se afirma autonomamente a grandes temas de pesquisa: os sentimentos diante do nascimento, vida, doença e morte. Sentimentos se dobram com emoções, com virtudes, com defeitos. A história da ira, da inveja, das percepções, dos saberes e odores, do prazer e do sofrimento... A lista é inesgotável, pois os assuntos investigados conectam-se intimamente, exigindo uma análise que os ponha em rede. Além do que, têm sido e continuam a ser abordados por políticas de controle e de propaganda, que, por meio de uma axiologia drástica, dota-os de valores positivos ou negativos, de acordo com a lógica de certa sociedade, em certo tempo, refletida na ideologia de gênero binário e heterossexual. Os modos de sentir são também prisioneiros de suas épocas. Em princípio, pertencem à história das mentalidades, ao tempo quase parado das estruturas. O século XVIII concedeu um lugar privilegiado à percepção, inventando um sistema educativo interessado na observação através dos sentidos, para chegar à formação das ideias. A sensibilidade não é vista somente como emoção terna e dolorosa, mas como a capacidade dada ao homem de receber impressões profundas de tudo aquilo que pode agir sobre ele. O homem sensível não é apenas aquele que se enternece: é quem recebe impressões de forma emocional. A mensagem do sofrimento redentor, o dolorismo, é reativado nas Luzes, quando "as lágrimas são as únicas verdades íntimas e os únicos efeitos do real que provam a todos a sua existência no sofrimento" (VINCENT- BUFFAULT, 1988, pp. 20-21). Conceito remetido, no Romantismo, ao sofrimento no amor, o ideal hedonista oitocentista que evoluiu vertiginosamente, após a descoberta do subconsciente e do inconsciente, colocando em discussão a crença no racionalismo humano. A teoria de Freud, tendo por centro o complexo de Édipo e baseada no desejo e na repressão da sexualidade, provocou uma profunda mudança na concepção humanista do homem, conferindo novas cores à revolução de costumes dos Anos Loucos (1919-1919) e à Revolução sexual da década de 1960, marcada pela socialização do uso da pílula anticoncepcional. O "breve século XX" abrigou o movimento de emancipação feminina, provavelmente o maior acontecimento da contemporaneidade, uma vez que, ao separar a sexualidade da procriação, permitiu às mulheres um investimento mais profundo em sua luta pela igualdade com o "sexo forte". Em decorrência, o exercício da sexualidade escapou do monopólio da Igreja e do Estado, incorporando as vozes silenciadas do "sexo frágil" e dos grupos excluídos, integrados por todas as categorias não encaixadas no modelo prescrito ao casal heterossexual, unido pelos laços sagrados do matrimônio. A sexualidade reduziu-se à cópula reprodutiva de futuros operários e soldados, ao Trono; de almas, ao Altar, produzindo um discurso, a rigor, hagiográfico, debruçado sobre virtudes e pecados, interessado em normatizar o exercício de poderes e articular a ordem do parecer com a ordem do ser. Nos pedaços do imaginário que uma sociedade organiza sobre a sexualidade, ocorrem deslocamentos, novas peças são incluídas, com distâncias e comparações entre elas. Um dos fragmentos desse processo é investigado a seguir. # II. # Metodologia Amor e sexualidade são termos de invulgar complexidade, uma vez que se apoiam em bases biológicas, materiais, espirituais, políticas, coletivas ou individuais. Trata-se de um caleidoscópio de alta complexidade, pelo qual é preciso circular, fazendo escolhas e recortes, com uma abordagem pluralista e multidimensional. Para esta reflexão, algumas obras estão selecionadas como fundamentais e os seus autores se fazem nossos interlocutores. Um deles é Wilhelm Reich, em seu comentário sobre a invasão da Abissínia pela Itália, quando milhares de pessoas indefesas foram trucidadas, fornecendo uma ideia das proporções do assassinato em massa que viria em caso de uma nova guerra mundial. O fato de a nação italiana, em que grande parte da população passava fome, ter seguido com fanatismo o chamado às armas, reforçou a crença geral de que alguns países são governados por indivíduos com sintomas de doença mental e de que os homens, em geral, participam de uma psicopatia ao adotar comportamentos conflitantes com os seus desejos e possibilidades reais. A raiz desse problema estaria na repressão da sexualidade, a energia vital produtiva. A fim de entender o motivo da repressão sobre a vida amorosa, Reich relaciona a vida mental humana e a ordem econômico-social em uma economia centrada na função sexual, declarando que esse processo já estaria detectado pela literatura e cinema, pois "noventa por cento de todos os romances, de toda a arte poética lírica, noventa e nove por cento de todos os filmes e peças de teatro são produções que apelam para necessidades sexuais não satisfeitas" (REICH, 1966, p. 25). Freud e Reich apresentam uma maneira de se utilizar da psicanálise em ciências sociais, evitando a ameaça de se transformarem conceitos psicanalíticos em figuras de estilo, criando nova retórica. O recurso à morte do pai, ao Édipo ou à transferência, pode servir para tudo e assim "não é difícil calcá-los sobre as regiões obscuras da história". Infelizmente, não passam de utensílios decorativos quando objetivam somente designar o que o historiador não compreende. Ao circunscrever o inexplicado, confessam uma ignorância, instalam-se onde uma explicação econômica deixa um "resto" (CERTEAU, 1982). A contar da última década do século XX, muita gente se viu atraída pela história da sexualidade. Lucien Febvre pedia uma história do amor e Ariès interessouse pelo tema em Atitudes diante da Vida, um de seus primeiros livros. A demografia histórica foi considerada por Peter Leslett como o caminho que permitiria fazer a história da sexualidade e muitos demógrafos dedicaram-se a esse assunto, revelando elementos fundamentais da emancipação sexual relativa do século XVIII, época que registrou o aumento relativo dos nascimentos ilegítimos e das concepções pré-nupciais. Jean-Louis Flandrin, um dos maiores historiadores do sexo, produziu uma obra notável, conduzindo um combate corajoso sobre a vontade de saber sobre o tema. Nessa vertente, Michel Foucault analisa a proliferação de discursos e de modalidades sobre o corpo, cujas variantes -o corpo cósmico, social, individual ou sexuado -refletem as sucessivas pertinências utilizadas por uma sociedade para articular a consciência sobre ela própria. O desejo de conhecer nos leva a procurar ler, por meio ou através das representações, o funcionamento, as leis e finalmente a própria realidade do corpo. Foucault toma um caminho inverso em A vontade de saber, fazendo do corpo um artefato ilegível, que permite produzir sempre mais discursos, vendo-o mais como uma oficina no discurso ocidental e isentando-se de pretender construir, a partir das representações, um discurso sobre o corpo que as produz. Um dos eixos de seu pensamento é dado pela autoafirmação da classe burguesa que se intitula como detentora de um sexo melhor que o dos outros, raciocínio que remete para a materialidade do real. Encontra-se em Foucault o cruzamento de duas teorias sobre o corpo, visto como condição ilegível das ficções e das ficções de per si (FOUCAULT, 1985). Nessa linha, resta perguntar por que se produzem essas ficções. O fio de Ariadne a nos conduzir pelo labirinto fascinante das concepções acima esquematizadas repousa em dois eixos: o primeiro consiste no estabelecimento do discurso do poder e da história desse discurso sobre os nossos corpos; o segundo, nos poderes desse discurso sobre as manifestações sensíveis do amor nas práticas sexuais, com o pressuposto de que essa investigação é um polo à volta do qual se estabelece o nosso mundo e a nossa vida se desenrola. Como força motriz, está o sentimento do medo, como o primeiro elemento da equação estruturante do Ocidente, de raízes judaicocristãs. A culpa é o elemento seguinte, acompanhada, inelutavelmente, pelo castigo. Em lugar de poetas românticos, de manuais de autoajuda ou de discursos bem-intencionados sobre a bondade dos sentimentos humanos, estaremos em companhia de Jean Delumeau, estudando o medo, o pecado e a culpa; de Michel Foucault, espreitando pelas janelas do crime e castigo -e por que não, da loucura? -; de Jean-Louis Flandrin, analisando o tempo de abraçar, e de tantos outros autores brilhantes que aplicaram o seu ofício à história das mentalidades. Teremos a companhia, também, dos donos dos poderes sagrados ou profanos, sempre interessados em subjugar desejos e emoções às suas estratégias de mando. Investigadores brasileiros seguem esse movimento, na trilha especial dos desvios às normas estabelecidas. A história do pecado se avoluma, deixando adivinhar as virtudes do sexo bem-comportado, as normas aconselhadas ao exercício da sexualidade. No painel planetário que se estabelece, projetam-se as cores vivas do primitivo e do civilizado, do mau e do bom comportamento. Projetam-se as identidades excluídas: mulheres, gays, hermafroditas, transexuais, impotentes, frígidos, estéreis. Multidão estigmatizada, impossibilitada de estender o conceito de cidadania ao exercício de uma sexualidade plena, sem culpa e sem medo. É a esta vastíssima coorte de identidades excluídas que se dirige este artigo, que busca escrutar a natureza dessas identidades no passado brasileiro, na versão cadavérica da realidade social transmitida pelas leis. O comparativismo entre amor e sexualidade no passado, engessado em normas binárias prescritivas de práticas heterossexuais, exercidas no casamento, e nos dias atuais que veem a marcha de grupos alternativos para o alcance da cidadania plena, comprova que os nossos ancestrais não estavam tão distantes de nós em seus desejos. Há, pois, analogias entre as duas épocas, colocadas ao lado das diferenças. Nesse cenário, somos mais impressionados pelas diferenças do que pelas analogias, pois são as variações que nos levam a nos indagar sobre a nossa identidade sexual, os nossos medos, as nossas aspirações (DUBY, 1988). O medo ao outro é também o medo ao marginalizado. Na temática aqui tratada, as margens eram ocupadas pela pluralidade de pessoas que não podiam ou queriam se submeter às regras controladoras do exercício da sexualidade. O "outro", como a imagem especular de identidades socialmente sancionadas, permanecia inevitavelmente no mundo dos excluídos, por meio do medo de pecar e da impotência em constranger os apelos da carne aos limites do toro conjugal. # III. A Doutrina do Amor e Sexualidade no Ocidente Cristão Para compreender a atitude da Igreja quanto ao problema da sexualidade, é preciso refletir sobre a visão monista do sexo permitido apenas no âmbito e nos limites do casamento heterossexual, monogâmico e perene. O conjunto da doutrina a respeito do casamento prende-se fundamentalmente no controle de nascimentos, a ser considerado nas fronteiras do matrimônio. Nesse tema, faz-se necessário investigar de onde provêm os imperativos contraditórios de virgindade e de procriação, e de qual maneira, no bojo de qual contexto histórico e através de quais combates, essa contradição foi, por um tempo, resolvida. Em L´église et le contrôle des naissances, Flandrin apresenta um painel sobre os principais acontecimentos relacionados à questão do controle de nascimentos no Ocidente, focalizando a presença da Igreja como preceptora principal de um tema que prendia a atenção dos donos do poder, pelas consequências sociais, políticas e econômicas nele implicadas (FLANDRIN, 1970). Essa obra nos informa que, na baixa Idade Média, por volta do século XII, aparece o amor cortês, criando a teoria de um amor conjugal plenamente espiritual. No século XIII, São Tomás de Aquino reabilita o prazer encontrado no ato conjugal, que havia sido procrastinado anteriormente, iniciando o movimento de aceitação da busca de um "prazer moderado", como razão licíta do acoplamento conjugal. A doutrina dessa época registra ser lícito ao homem copular com sua mulher, para evitar cair em adultério. Também oferece para os pobres, sobrecarregados de crianças, a sugestão da "continência reservada". No século XVI, o dever conjugal, isto é, os serviços de cama e mesa, sujeitavam-se a uma equação de créditos e débitos -tal qual uma bolsa de compensação -e a recusa ao dever conjugal para limitar o número de filhos é condenada. Nesse cenário, embora a procriação apareça como um dever conjugal, a sua recusa passa a ser considerada como um pecado venial, quando os esposos estivessem na impossibilidade de nutrir mais filhos do que aqueles que já sustentavam. No século XVII, mais precisamente em 1602, surge a primeira justificativa dos beijos e abraços como preliminares ou substitutivos ao coito, considerando que eles exprimiriam e reforçariam o amor conjugal, mesmo quando sob o risco de ejaculação. Em 1798, Malthus publica Um ensaio sobre o princípio da população, obra que passou a nortear debates acalorados sobre o tema, a partir de então. No século XIX, os Penitenciais deixam aparecer a dúvida sobre o caráter instrisecamente mal do onanismo, mas aconselham que não se devia interrogar os penitentes sobre esse tema (1842). Em 1851, o Santo Ofício, relembra que o ato de Onan, por ser contrário à lei natural, não poderia ser em caso algum autorizado. A mulher é condenada por "onanismo" se cooperasse, de qualquer forma, com o ato sexual, quando o marido usasse um preservativo. Os onanistas impenitentes deveriam ser aconselhados pelo confessor à continência periódica. Em (1962)(1963)(1964)(1965) voltou a discutir as relações entre sexo e procriação, tendo sido nomeada uma comissão especial para cuidar do assunto, mas Paulo VI resolveu não tomar nenhuma decisão sobre os resultados conclusivos dessa comissão, que permaneceram secretos. Em 1968, houve a publicação da encíclica Humanae Vitae, reafirmando dados da doutrina tradicionais sobre a sexualidade no matrimônio. Na atualidade, a questão do controle de nascimentos é posta com urgência a uma humanidade em vias de vencer a mortalidade infatil, as epidemias e as fomes. E também a uma igreja que deseja assumir sua parte de responsabilidades deste mundo. Antes do século XIX e depois do início do Cristianismo, o problema era outro: conciliar casamento e castidade, justificar o casamento, porém, mantendo a preeminência do estado virginal. A contradição maior não era, como hoje, entre uma doutrina intangível e a sobrevivência da humanidade, mas aparentemente, tratava-se de uma discussão que se dava no seio próprio da doutrina (FLANDRIN, 1970). A cronologia da doutrina eclesiástica sobre o controle de nascimentos, levantada por Flandrin, abarca o período de 81 a.C. a 1968 d.C., balizado pelos registros de posturas legislativas/judiciárias que podem lançar luzes a respeito do amadurecimento da reflexão sobre a sexualidade, esclarecimento marcado por dubiedades e desencontros, mas que incidia pesadamente sobre os comportamentos dos fiéis. A primeira data refere-se às leis de Sila contra os Veneficii (envenenamentos), tocantes ao celibato e à esterilidade dos romanos de grandes famílias, incluindo o uso de poções que provocavam o infanticídio, dos já nascidos e daqueles por nascer. O último registro concerne ao ano de 1968, com a publicação da encíclica Humanae Vitae. Em 108 registros, comparece um conjunto multifacetado de documentos (cânones, leis, decretos, confissões, pastorais, cartas, epístolas, apologéticas, vulgatas, pregações, conselhos, considerações, homilias, penitenciais), cuidando de uma problemática recorrente, exposta em antinomias sobre objetivos sexuais legítimos ou ilegítimos. De modo geral, visa-se ao casal heterossexual, baseado na instituição divina do matrimônio. O sexo exercido fora do casamento ou por modalidades não sancionadas é nomeado, indistintamente, como pecado, vício ou crime. O ator dessas práticas sujeita-se a penalidades severas, chegando à morte pelo fogo no caso de homossexuais masculinos ou femininos -os sodomitas -, em princípio, raramente citados por um discurso destinado aos "filhos da Igreja", isto é, aos seus "fregueses". Os acontecimentos principais desses dois milênios de interpretações começam com o nascimento de Cristo. No cenário da Era Cristã, o tema da sexualidade é tratado por uma política de procriação, com temas decorrentes (celibatarismo, contracepção, castidade, virgindade, continência, gravidez, infanticídio, aborto, concupiscência, luxúria, onanismo, sodomia, "práticas vergonhosas", prostituição). Sobre esses assuntos constroi-se um discurso de medo e de culpa, balizado por acontecimentos específicos: conversões de apóstolos -São Pedro, São Paulo -, vitória do Cristianismo contra o Paganismo no Império Romano, condenação de heréticos -agnósticos, macabeus, filisteus, cátaros, albigenses -por ações sexuais reprovadas pela doutrina eclesiática, presente nos textos dos doutores Agostinho, Tomás de Aquino, Bernardo e dos evangelistas Marcos, Mateus, Lucas. O segundo quartel do século XII marca o surgimento do amor cortês, que enaltece a donzela pura e virginal, posta no centro de um ritual amoroso por seus pretendentes -cavaleiros transmutados em vassalos. Por volta de 1130, configura-se a teoria do amor conjugal puramente espiritual, feito à moda de José e Maria, que se defronta com o dilema de estender o ideal de castidade ao matrimônio, contrariando a sua destinação reprodutiva. Na segunda metade do século XII, é proposta a conjunção reservada para satisfazer ao dever conjugal, sem ser poluída pelo prazer. Entre 1215 e 1226, as cruzadas contra os albigenses suscitam intensas discussões sobre o papel da sexualidade na identidade e destinos dos cristãos. A intensa luta contra o paganismo e as heresias concentra a atenção dos legisladores cristãos, católicos ou reformados, na Idade Moderna, com a atuação de inquisidores que reforçam a condenação dos "pecados da carne", qualificando-os como diabólicos. A contemporaneidade assistiu às as descobertas de Ogino-Knaus (1924), permitindo maior eficácia antinatalista ao "sexo reservado" anterior. Um ano depois, Von Hildebrand recusa a visão puramente biológica do ato conjugal, afirmando que seu sentido para o homem é o cumprimento do amor conjugal. Em 1935, Hebert Doms publica Do sentido e do fim do casamento, propondo uma doutrina nova do matrimônio, baseada no amor conjugal. Em outubro de 1951, Pio XII considera "natural" a procura de amor pelos cônjuges no leito matrimonial e proclama que o método da continência periódica é permitido a todos os casais que tivessem razões sérias para temer uma nova gravidez. Nessa fala, Pio XII se utiliza da expressão "regulação dos nascimentos". Em 1953, é concluída a invenção da pílula de progesterona e, dois anos depois, é experimentada, com sucesso e em grande escala, em Porto Rico, vindo a fornecer a base técnica para as grandes mudanças comportamentais das décadas seguintes, concentradas na liberdade sexual feminina (FLANDRIN, 1970). # a) A dialética entre o medo e a culpa: pecado, vício e crime A gula e a luxúria, embora não marcassem presença nos primeiros lugares do septenário oficial, ocuparam as maiores preocupações e os maiores espaços do sermonário sobre culpa e castigo no Ocidente. Aliás, a longa estrutura das sanções aplicadas ao sexo e aos alimentos comprova-se no fato de os maiores interditos da espécie humana se aplicarem a eles, como os tabus da antroprofagia e do incesto. As duas quaresmas da tradição cristã, a do Advento e a da Morte, proibiam a ingestão da carne vermelha e os atos sexuais. A homologia do significado popular do verbo "comer", aplicado à fome e ao sexo, reproduz o interdito eclesiástico na vida humana: "as bênçãos nupciais são proibidas desde a 1.ª Dominga do Advento (20 de Novembro) até o dia de Reis inclusive, e desde quarta-feira de Cinzas até a Dominga 'in Albis', inclusive (24 de Abril) " (LISBOA, 1881, verbete "Nupcias"). Nos sentidos latos de pecados decorrentes do uso indevido da carne e do sexo, ficava difícil discernir as fronteiras entre as ações virtuosas, que garantiriam o necessário à vida e sua conservação, e o espaço ocupado pelo pecado do exagero, da exorbitância em consumir, pelo mero prazer. Quando a gula ou a luxúria viriam, como criaturas de Satanás, a perturbar a obra divina, do comer para o sustento do corpo e das cópulas essenciais para a reprodução de corpos para o Estado e de fiéis para a Igreja? Os conselhos aos fiéis é que vencessem em primeiro lugar a gulodice e a luxúria, para depois atacar de modo gradativo e por ordem de dificuldade crescente, os vícios mais resistentes. Mas no início dos tempos modernos, a luxúria revestiu-se de uma gravidade que contradizia a sua colocação no final da lista. Um dos penitenciais anônimos dos anos 1490 consigna que a fornicação era mais detestável do que o homicídio e o pecado mais repugnante a Cristo. A lógica estrita da necessidade de povoar o mundo não se apresenta incólume a uma investigação cuidadosa. De fato, já por volta do ano 200, Tertuliano afirma que a Terra estava sobrepovoada, fornecendo argumento a uma posição antinatalista de algumas seitas/filosofias heréticas e colidindo com a proibição do uso de drogas contraceptivas, considerada como um assassinato dos não nascidos. Ainda na base dos quiproquós, no ano 300, os sodomitas são identificados como parricidas. Duzentos anos mais tarde, o pai de família perde o seu direito de vida e morte sobre seus filhos. Nesse mesmo século, o perigo de superpopulação é apontado por São Jerônimo, quando denuncia as práticas contraceptivas das jovens da sociedade católica de Roma. De forma paradoxal, entretanto, analisa a história de Onan como prática contraceptiva, tornando o onanismo, isto é, o coito interrompido, num pecado nefando (384 d.C.). No ano 390, um decreto de Valentiano condena os sodomitas ao fogo. A contracepção se transforma num crime "pior que a morte". No fim do sécilo IV, Santo Agostinho estigmatiza os procedimentos contraceptivos e a continência periódica dos maniqueus, desenvolvendo sua teoria do casamento em sua obra De bono conjugali. Em 418, Santo Agostinho escreve sobre as núpcias e a concupiscência. Entre 590 e 604, o Papa Gregório o Grande afirma que o prazer conjugal era inevitavelmente sujo, mesmo quando os conjuges se unissem com o fim de procriar. Do século VI ao XI, os Penintenciais inauguram a sua idade de longa duração, apontando as penitências que deveriam ser dadas pelos confessores aos penitentes arrependidos, a fim de serem absolvidos de seus pecados. São Paulo, em sua Primeira Carta aos Coríntios (aproximadamente, em 56 d.C) adverte contra o incesto e a impudicícia e reprova as relações com prostitutas. Mas, o mesmo diploma aconselha o casamento como remédio contra a fornicação e considera como incontornável a "dívida" carnal, advertindo que a liberdade dada pela lei bíblica não pode se transformar num pretexto para satisfazer a carne. O apóstolo também condena os fármacos e, em sua Carta aos Romanos, estigmatiza os costumes "contra a natureza" dos pagãos. Em uma epístola aos Efesos, Paulo traça um paralelo entre o amor conjugal e o amor de Cristo por sua Igreja (62 d.C). Nesses primeiros documentos, aparece a oposição dialética entre corpo e espírito, recorrente em séculos na doutrina cristã. Em sua longa trajetória, o casamento se afirmou como instituição divina, colocado em oposição ao sexo praticado fora do casamento ou à continência voluntária, que viria a contrariar os princípios bíblicos do Antigo Testamento, expressos no "crescei e multiplicaivos", mandamento emitido após a ocorrência das duas catástrofes bíblicas primordiais: a Queda e o Dilúvio. Nesse âmbito, aparece já a exaltação da Virgindade de Maria e os crimes de luxúria, incluindo entre as práticas vergonhosas "aqueles que concebiam com a boca", certamente numa expressão que remetia ao sexo oral (por volta do ano 130). De modo geral, essas práticas são interditadas por eliminar ou desperdiçar a semente (o sêmen). Aconselham-se castigos autoinfligidos para que os jovens escapassem à concupiscência. O onanismo, o "pecado nefando", concentra boa parte das preocupações dessa literatura, merecendo um tratamento mais detalhado. A história bíblica é reproduzida compulsivamente nos sermonários ocidentais, relembrando a obediência de Onan a seu pai, Judá, que lhe ordena seguir a regra do levirato, casando-se com Tamar, a viúva de seu irmão mais velho, Er, que fora morto por Deus. O casamento foi efetuado, porém Onan se esquivou da consequência de seu enlace físico com a nova esposa -garantir a descendência ao irmão defunto -, uma vez que qualquer filho nascido de Tamar seria o herdeiro de Er, com o direito de reivindicar o dobro da herança, como primogênito. Se não houvesse descendência macha de Er, Onan teria herdado como o filho mais velho sobrevivente. Nessas circunstâncias, a fim de defender seus interesses, ao fazer sexo com a viúva de seu irmão, Onan "derramou sua semente no chão", e como castigo foi morto por Deus. A implicação da narrativa é que o ato de Onan deu origem ao descontentamento divino, mas não está claro se seu mau comportamento indicasse a recusa de cumprir a obrigação de levirato, contrariando a norma de dar continuidade ao nome de seu irmão e aos direitos do clã, ou se referisse ao ato de "espalhar sementes em vão", ou até mesmo em fazer sexo com Tamar (que normalmente seria proibida para ele, por ser sua cunhada). Visões primitivas judaicas, expressas no Talmud, consideram que a imposição da pena de morte se originou desse fato. Não obstante, os regulamentos levíticos a respeito da ejaculação, vista ou não como onanismo, prescrevem somente uma lavagem ritual, prevendo que o homem permaneça ritualmente impuro, até o dia ou a noite seguinte à ejaculação em vaso inidôneo. Alguns críticos consideram que a história de Onan é um mito de origem sobre a constituição da tribo de Judá, no qual a morte de Onan representaria a morte de um clã. Er e Onan seriam os representantes de clãs respectivos. Ademais, essa interpretação sugere que a ira de Deus não se dirigia ao ato sexual, mas à desobediência de Onan ao se recusar a engravidar a viúva de seu irmão. Estudos divergentes contestam tal versão: segundo eles, a punição a Onan resultou de um ato sexual pervertido, por desperdiçar sua semente no chão e pela sua recusa de fornecer um herdeiro a seu irmão defunto. Aqueles que seguissem Onan quebrariam "o vínculo social com suas 'mãos criminosas', desperdiçando o precioso fluido que havia sido projetado para perpetuar a raça humana" (WIKIPÉDIA, 17/6/2021). Em seu Comentário sobre o Gênesis, João Calvino refere-se ao pecado de Onan, identificando-o como masturbação e pontificando que "o derramamento voluntário de sêmen fora da relação sexual entre um homem e uma mulher é uma coisa monstruosa", além de ser duplamente monstruoso retirar-se deliberadamente do coito para que o sêmen possa cair no chão. Nessa vertente, John Wesley, fundador do Metodismo, em suas Reflexões sobre o pecado de Onan, de 1767, considera que "qualquer desperdício de sêmen em um ato sexual improdutivo, seja na forma de masturbação ou coito interrompido, como no caso de Onan, destruiu as almas dos indivíduos que o praticam". As ideias de Wesley alertam sobre "os perigos da autopolução" e os efeitos físicos e mentais da masturbação, descrevendo casos de doenças e recomendando terapias. Apesar de a "transgressão" de Onan não envolver a masturbação, os teólogos encontraram "um elemento comum" no coito interrompido/onanismo e no gozo solitário, assim como em relações anais e outras modalidades de sexo praticado fora da vagina ou do toro conjugal. Assim, onanismo adquiriu o significado de masturbação, em muitas línguas modernas, com fundamento na interpretação da narrativa bíblica de Onan (WIKIPÉDIA, 17/6/2021). # b) Sexo e amor no passado histórico brasileiro: o combate entre o desejo e o dever O estatuto do amor na era colonial, revelado pelos documentos, estava preso aos dois arquétipos de sexualidade então vigentes: o amor casto de esposas e o amor-paixão realizado fora do casamento. As mulheres mais estimam do que amam seus maridos, e como todas as mulheres honradas, devem servir, amar e obedecer os cônjuges. Estes, por sua vez, deveriam honrar, alimentar e estimar suas mulheres, como bons católicos. O companheirismo, baseado na estima e concórdia mútuas, é o sentimento aconselhado aos esposos, porque os "casamentos de amor" arriscavam subverter a ordem social, pois "a função principal do matrimônio era a de estabelecer alianças entre famílias e assegurar a transmissão do patrimônio" (FLANDRIN, 1981, p. 9). As fontes literárias confirmam tal postura, tanto em Portugal, quanto no Brasil. As obras de Gil Vicente e de Gregório de Matos, por exemplo, tratam de casamentos ou duplas amorosas mal sucedidas, como resultado de equívocos ocorridos na escolha do par. As narrativas farsescas aludem a medianeiros e jogos de interesses nos negócios do amor, além de maridos traídos, delitos e punições. Canções e provérbios populares são outras fontes que permitem o acesso à estética e sabedoria folclóricas sobre sentimentos e amor. As tramas narrativas tratam de temas mais ou menos gerais: o princípio da homogamia, o respeito às distâncias sociais e o ceticismo sobre o amor no casamento, reproduzindo o androcentrismo rude, que reproduzia, nas fronteiras do lar, a rudeza da sociedade envolvente. No Brasil, os papéis sociais elencados para o exercício do poder na família agravavam-se pela exigência de se manter o domínio do colonizador sobre os colonizados, do branco sobre a "gente de cor". Os documentos contam que os maridos eram os maiores violadores dessa regra, por ausências contumazes da casa, pela sonegação de roupas e alimentos à mulher e filhos. As devassas e róis de desobriga registram inúmeras denúncias de abandono do lar atalhado por ações corretivas: admoestações, excomunhões, penas pecuniárias e de prisão. Os sacerdotes recusavam a desobriga da quaresma àqueles que se furtassem ao dever conjugal de coabitação (CAMPOS, 2003, p. 42). Ao inquirir sobre sexo e amor no passado brasileiro, faz-se preciso levar em consideração a presença de escravos, radicalizando o poder do mais forte sobre o mais fraco e a prevalência de poderes locais sobre os metropolitanos e fortalecendo o mando marital na escala privada, como um clássico pater familias. Essas circunstâncias agravavam a posição subalterna da mulher, equiparando-a à das escravas, e facilitava os atentados à ordem matrimonial. As sevícias, como a outra face dos gestos amorosos, aplicadas pelos homem em suas mulheres, são fortemente marcadas por elementos sado-masoquistas, como Gilberto Freyre apontou nas casas-grandes dos engenhos nordestinos: Nas condições econômicas e sociais favoráveis ao masoquismo e ao sadismo criadas pela colonização portuguesa -colonização, a princípio de homens quase sem mulher -e no sistema escravocrata de organização agrária do Brasil; na divisão da sociedade em senhores todo-poderosos e em escravos passivos é que se devem procurar as causas principais do abuso de negras por brancos, através de formas sadistas de amor que tanto se acentuaram entre nós; e em geral atribuídas à luxúria africana (FREYRE, 196l, p. 449). Herdada da Europa, por via lusitana, a fé conjugal manifestava-se pelo respeito ao princípio de coabitação. Coabitação de mesa e tálamo. Dever sacramental defendido pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, que ordenam que "todos nossos súditos façam vida marital com suas mulheres, e a elas que acompanhem a seus maridos, como são obrigadas, aos lugares aonde com decência com eles puderem viver". Tornados "uma só carne", o casal submetia a unidade de existência adquirida aos princípios da monogamia, indissolubilidade, honestidade e fidelidade recíproca dos dois cônjuges na coabitação, exigidos para se alcançar a excelência do matrimônio: a "geração dos filhos e a fé recíproca da castidade dos esposos" (CONSTITUIÇÕES PRIMEIRAS DO ARCEBISPADO DA BAHIA, 1853, parágrafo 301, p. 14). A poligamia era repugnada para os fins do matrimônio, uma vez que "a experiência mostra, que as mulheres conhecidas por muitos homens não produzem; e quando produzam, são filhos de pais incertos, vacilando por este modo a obrigação da educação; a poliandria pois opõe-se à lei natural" (ARAÚJO, 1853, pp. 27-28). A condenação é sublinhada em tratados de direito canônico, com a observação de que não constituía um obstáculo para os "fins primários" do casamento, "porque a experiência mostra, que um só homem pode fecundar a muitas mulheres, e cuidar da educação de muitos filhos". Marido e mulher obrigavam-se ao débito conjugal, circunscrito nas razões legítimas para as relações sexuais, dever incontornável e dilemático, pois, ao mesmo tempo em que a postura tridentina privilegiava o estado da castidade e o exemplo dado por São José e Maria Santíssima, os casais castos não cumpririam os fins precípuos do próprio matrimônio, isto é, a geração da prole, a bonum prolis (SEIXAS, 1880). A posição da igreja sobre o dever de tálamo é esclarecida em algumas obras intituladas Casos de consciência, que funcionavam como manuais de confessores. O capítulo referente ao tálamo -"Casos sobre a direção dos cônjuges ou principalmente acerca do débito conjugal e o seu abuso ou onanismo" -, arrola diversos fatos que poderiam ser trazidos à apreciação do confessor e aconselha condutas a adotar. Embora os casos narrados sejam fictícios, a própria destinação da obra exigiria que se baseassem em fatos reais. Deixando de lado os enfeites retóricos, o didatismo e a complexização dos problemas, a ficção transmite versões possíveis de sentimentos e práticas sexuais registradas por essa imprescindível fonte histórica. Normas mergulhadas na noite dos tempos fundamentam razões para a sonegação do débito em São Paulo. Um réu que não consumara o casamento, declara a uma testemunha que "se queria casar para fazer uma vida casta [...]" e "por sua morte havia de deixar sua mulher na forma, que a recebia", uma vez que desejava "viver como São José tinha vivido com Nossa Senhora" (PROCESSO DE NULIDADE MATRIMONIAL, 1824, fls. 5-5v). Os diretores de consciência são concitados a interrogar sobre a licitude das posições diversas durante o ato sexual, considerando como "natural" apenas uma: o homem acima da mulher alongada de costas. Mas seria lícito, quando os órgãos sexuais dos parceiros estivessem unidos, adotar outras posições? A resposta em geral era rigorista, pendendo para a negativa, sobretudo quando as relações fossem realizadas à moda dos animais, tendo por objetivo a busca do prazer e não obstáculos oriundos da gravidez da mulher ou de enfermidades diversas (DELUMEAU, 1983). A refinação doutrinária era alheia aos versos profanos, como no caso de Gregório de Matos, ao trazer uma das raras descrições do ato sexual, nas paragens setecentistas do Brasil: Os documentos paulistas mencionam explicitamente apenas a chamada posição "a tergo" e atos sodomitas, como crimes contra a natureza, cometidos pelos moradores da capitania. A condenação dessas técnicas podia provocar dissenções entre casais, com mulheres acusando seus maridos de quererem copular com elas "como animal" (PROCESSO DE DIVÃ?"RCIO, 1821, fl. 11v). Aliás, a sodomia, o "pecado nefando" dos autos da Inquisição, deveria ser bastante popular no Brasil. Gilberto Freyre diz que até europeus de nome ilustre figuram como sodomitas em processos da Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil. Opinião estatisticamente corroborada por Sônia Aparecida de Siqueira: em 283 culpas confessadas nas duas visitações realiza na Bahia, em 1591 e 1620, figuram 44 atos de sodomia, quantia que só perde para as blasfêmias, em numero de 68. É significativo que entre as culpas sexuais, apareçam, ao lado das práticas sodomitas, apenas uma de bestialidade e outra de molície (SIQUEIRA, 1978). A "tropicalização das consciências" acentuaria hábitos sodomitas, protegidos pela distância da metrópole e pela tolerância maior às transgressões no meio colonial, como expressa Gregório de Matos, no seio do anticlericarismo radical que marcou parte de seus versos barrocos: um sodomita, vigário geral, mantinha filhos e criados "aferrolhados para o pecado Mortal". Os parceiros dos sodomitas eram chamados de "ductos" ou "condutos", comprados "com um vintém de bananas, e de farinha dois punhos" (GREGÃ?"RIO DE MATOS, v. II, p. 278). Um pecado da carne, "molície", nos documentos do passado brasileiro, aparenta indicar práticas homossexuais, mas é um pecado que resta definir, embora aponte, em princípio, para um termo que abarcasse práticas solitárias (FLANDRIN, 1981). A percepção de não existir pecado do lado de baixo do Equador, corrente na Europa seiscentista, adquiriu contornos sociológicos nas penas de Gilberto Freyre (FREYRE, 1961) e de Paulo Prado (PRADO, 1997) autores que reproduziam o pensamento sobre o caráter estruturante da luxúria e da libidinagem em nossa sociedade, transmitindo a visão esteriotipada sobre o Brasil Colônia de cronistas e jesuítas, incansáveis em apontar a dissolução de costumes nas terras brasis. A literatura de viagem, dos cronistas e dos missionários associa o selvagem à palavra sedutora, produzindo o selvagem como "corpo de prazer". A erotização do corpo do outro e da voz selvagem acompanha de perto a formação de uma ética da produção. A erotização da palavra une-se à imagem do outro, fazendo da sociedade selvagem um corpo de festa e um objeto de prazer. Uma série de oposições estáveis mantém ao longo das narrativas dos primeiros séculos da colonização a distinção entre o selvagem e o civilizado. Como personagem, o selvagem surge como a imagem invertida do trabalhador, representando uma outra economia, diferente da do trabalho, fazendo retornar, sob forma estética e erótica, os elementos que a economia de produção teve que recalcar para se constituir. O desejo aparece como o reverso da lei (CERTEAU, 1982). O medo do inferno, propagado por sermões contínuos, poderia estar na base da visão coletiva sobre o pecado, com as denúncias sobre os fornicários, alvos da Inquisição em suas visitas programadas à Colônia, em seu empenho central de descobrir cristãos-novos ou infiéis de toda natureza, mas, também, em policiar costumes da população. Nas denúncias e confissões, há uma sexualização das imagens divinas, atingindo mesmo a Cristo e a Virgem Maria. A fé misturava-se ao desejo, produzindo a figura do Cristo fálico da imaginação coletiva daquela época. Ao sexualizar o divino, não é surpresa que divinizassem suas práticas sexuais, fazendo com que a linguagem da sedução caminhasse entre o Cristo fálico e a Virgem fêmea, povoada por santos diversos, por Deus e pelo Diabo. No universo de saberes e magias sexuais, vigorava a quase absoluta separação entre machos e fêmeas, e é preciso que o pecado não transcorresse livre, caminhando par a par com o medo à inculpação em vida e no pós-morte (VAINFAS, 2003). A Igreja, num processo provavelmente de mão dupla, moldava e amoldava-se à cultura secular, avaliando o amor físico, que não visasse precipuamente à geração, como fornicação. A realização da sexualidade era tributária, por conseguinte, de valores codificados, pelos quais se proibiam determinadas modalidades eróticas na vida íntima do casal. Mesmo que esses valores não fossem mantidos na prática social -e os documentos mostram que em muitos casos não o eram -teriam, certamente, uma ação inibidora da libido conjugal. Assim é que vemos "casos de consciência versando sobre a licitude ou não de práticas sexuais entre esposos". Numa obra dedicada a tais fatos, uma penitente inquieta-se sobre a prestação do débito conjugal, por ter prometido "guardar castidade matrimonial, o mais perfeitamente que pudesse ser, sem lesar os direitos do marido". Assim, procura saber se pode acariciar o marido, dando-lhe dessa forma ocasião de pedir o débito. A resposta esclarece muito sobre o comportamento sexual que se esperava dos bons católicos: honesto, manifestando sinais convenientes de amizade, e acariciando seus maridos para lhes mostrar a sua afeição. À mulher honesta, carinhos honestos. A Igreja ocupa um lugar privilegiado num sistema tão adequado para canalizar os impulsos de um sexo mortificado e as irritações de desejos que não podem se satisfazer. De um ponto a outro, a Igreja toma a iniciativa do processo de culpabilização, impondo-se como mediador ideológico de um fenômeno que se apresenta com profundas rupturas de estilo de um período outro (DARMON, 1979). O estudo do pecado no passado brasileiro implica um conjunto específico de conceitos: aqueles relacionados à "informação social", isto é, à informação que o indivíduo trasmitia sobre si, e à informação que a Igreja, como agente social, transmitia sobre os indivíduos. Dois níveis de informação unidos num único quadro conceptual: do grupo social diretamente sobre si e da Igreja sobre o grupo social.O primeiro pode ser auferido de depoimentos dos próprios autores: de relance, nos róis de desobriga da Quaresma; mais circunstanciadamente, em obras profanas, tais como as literárias. O segundo nível constitui a "pastoral do medo", analisada por Delumeau no mundo ocidental, e presente, em cores conferidas pela presença de índios ("os negros da terra") e afrobrasileiros, escravos ou forros, postos à disposição da libido dos brancos. Nesse campo, persiste a dúvida a respeito de uma possível importância exagerada, dada pelos historiadores, à repercussão do discurso do pecado na rotina social, uma vez que se constata uma profunda distância sobre o agir e o dizer na vida cotidiana. A frequência de pecadores na sociedade ocidental põe em discussão a eficácia do gigantesco esforço dos cristianizadores modernos para fazer entrar nos costumes, a golpes de sermões, proibições e ameaças, um outro modelo de vida sexual: o único que eles julgavam tolerável em países da cristandade (DELUMEAU, 1978). Os crimes mais denunciados no Brasil referiamse a adultério, bigamia, alcovitice, molície, além de "casos reservados", isto é, aqueles referentes a pecados cuja absolvição competia apenas ao bispo. Uma vez que as fontes registram fornicadores e adúlteros ordinariamente, é provável que a categoria dos reservados abrangesse pecados "contra a natureza"-sodomia, homossexualismo, bestialismoou práticas contraceptivas violentas -abortos, infanticídios. Os tratados de teologia moral declaram, por alto, as causas das reservas: "Aos nossos Santos Padres pareceu ser de suma importância à disciplina do povo cristão, que certos crimes mais atrozes e graves não fossem absolvidos por quaisquer, mas somente pelos Sumos Sacerdotes" (ARAÚJO, 1853, t. II, pp. 2-46). As observações contidas nas fontes, embora lacunares, permitem a reconstrução do papel © 2022 Global Journals Volume XXII Issue VI Version I 45 ( ) estratégico do pecado como poderoso meio de controle social. O conteúdo sociológico de uma história dessa natureza demonstra que, embora vigorasse a acepção de serem todos os homens pecadores, eram os casos mais discrepantes e que ocorriam em grupos subalternos que acabaram por ser registrados. O pecado e a culpa, submetidos à penitência e ao perdão, conferiram à Igreja o domínio sobre a sociedade brasileira e, aos estudiosos, a possibilidade de ouvir, mediada embora pela linguagem burocrática das autoridades, as vozes de pessoas integrantes de grupos excluídos (CAMPOS, 1992). # IV. # Conclusão A abordagem da vida intima do homem, na duração do passado histórico, é tarefa urgente, mas complexa. É a isso que se refere Jean-Louis Flandrin, um dos grandes especialistas do assunto, ao observar que a idéia segundo a qual nós temos dificuldades particulares sobre o plano sexual e que elas são imputáveis à nossa moral tradicional, de essência cristã, tornou-se muito expandida entre os ocidentais de hoje; desse modo há qualquer coisa de ilógico em escrutar com tanta atenção o passado dos indivíduos submetidos à cura psicanalítica e tão pouco sobre seu passado coletivo. Tarefa, ao que parece, ser incumbência dos historiadores, que, em sua maioria, concordam em reconhecer a existência e o vigor dos temas de austeridade sexual numa sociedade em que os contemporâneos descreviam, frequentemente para reprovar, a imoralidade e os costumes dissolutos. A desconfiança da cultura ocidental quanto aos prazeres, a insistência a respeito dos efeitos de seu abuso para o corpo e a alma, a valorização do casamento e das obrigações conjugais, a severidade das normas sobre o uso legítimo do sexo testemunham o poder da Igreja e do Estado sobre o corpo humano. Se considerarmos apenas os textos que falam desses temas e os lugares que lhes eram conferidos, evidencia-se que se tornou cada vez mais insistente a inquietação sobre os prazeres sexuais, quanto à relação e o uso que se pode ter com eles, com os intuitos declarados de moralização de costumes e de proteção do casamento e da família, efetuados de modo mais ou menos autoritário pelo poder político. A substância do prazer sexual, como força ética, é da ordem da força contra a qual o indivíduo precisa lutar. No passado, essa luta se passava, necessariamente, nos subterrâneos sociais, ao qual estavam relegados os loucos, pobres, homossexuais, sodomitas, onanistas, impotentes, blasfemadores, alquimistas, que viviam "o drama estranho e desconhecido de todos aqueles que, em razão de uma sexualidade reputada como falha", eram condenados a pagar o resgate do mito heterossexual, monogâmico e perene dos deveres inscritos no toro conjugal. A redução do ato sexual ao estado de conceito jurídico talvez possa ser visto na qualidade de preâmbulo à reação canônica do século XX. Desde o início do século, a consumação/não consumação, a potência/impotência relacionadas ao dever conjugal integraram-se a uma rede complexa e densa de definições, que provocou, por sua vez, a sondagem, análise e dissecação da vida sexual, a fim de fornecer à Igreja fundamentos sólidos de intervenção, de controle e de pressão sobre a vida individual e coletiva da população. No Brasil, as relações entre marido e mulher e dos pais com seus filhos subordinavam-se ao poder do chefe. Poder exercido despoticamente, sob o império da lei. Monarquia masculina, de direito divino, muito bem expressa por Capistrano de Abreu, numa visão concisa da sociologia de família: "pai soturno, mulher submissa, filhos aterrados". A poligamia masculina apresentava-se profusa e profundamente arraigada nas práticas sociais, em especial para os estamentos mais altos, que podiam dispor de um poder quase ilimitado quanto ao corpo e à alma de seus subordinados. A documentação escreve a sua história, dificilmente conformada aos modelos importados da Europa, que se impuseram no Brasil, como observa Sérgio Buarque de Holanda, não com a consistência do ferro, mas com a consistência do couro. A literatura sagrada e a profana traçam uma tipologia das transgressões cometidas no Brasil, entre as quais avultam as da carne, nas cartas jesuíticas, nas crônicas de náufragos ou viajantes. No entanto, o dossiê do pecado repousa especialmente em arquivos eclesiásticos, concentrando-se nas pastorais, nos manuais de teologia moral, nos autos de devassa e róis de desobriga da quaresma, além dos processos do Santo Ofício, indicando comportamentos que deveriam ser atalhados pela Igreja. Na medida em que prosseguimos na análise dessas fontes, vamos nos convencendo de que boa parte da população se mantinha distante da pauta sexual prescrita para o amor e a sexualidade, concedendo ao desejo um lugar privilegiado no combate mais do que milenar do homem contra o preconceito e a desigualdade. A "pastoral do medo", embora vencida pelos movimentos de luta contra preconceitos sobre o amor e a sexualidade no campo da legislação secular e, em parte, também da eclesiástica, continua atuante no cotidiano patriarcal e falocrático da sociedade brasileira. * O pecado de cada um: devassas e desobrigas na capitania de São Paulo AlziraCampos Lobo De Arruda Revista História 11 1992 * MichelCerteau Escrita Da História 1982 Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária * Sebastião Monteiro da Vide, bispo do dito Arcebispado, e do Conselho de sua Magestade: propostas e aceitas em o Synodo Diocesano, que o dito Senhor celebrou em 12 de junho do ano de 1707. Impressas em Lisboa no ano de 1719, e em Coimbra em 1720 com todas as Licenças necessárias, e ora reimprensas nesta Capital Constituições Primeiras Do Arcebispado DaBahia SP 1853 na Typografia 2 de Dezembro de Antonio Louzada Antunes * Le Tribunal de L'Impuissance. Virilité et défaillances conjugales dans l'ancienne France PierreDarmon Éd.du Seuil 1979 * JeanDelumeau Cristianismo Morrer 1978 Tradução de Michael de Campos. Lisboa: Livr. Gertrand * JeanDelumeau Le La culpabilisation en Occident. XIII e -XVIII e siècles Paris Fayard 1983 * Ano 1000 ano 2000: na pista de nossos medos GeorgesDuby 1998 São Paulo: Fundação Editora da UNESP * Évolution des attitudes et des comportaments Jean-LouisFlandrin Le Occident Paris: Éd. du Seuil 1981 * Collection Questions d'histoire, dirigée par Marc Ferro Jean-LouisFlandrin France 1970 * Casa-grande & senzala. Formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal GilbertoFreyre 1961 José Olympio Rio de Janeiro 10ª. ed. * Ao Padre Damaso da Sylva Parente do Poeta, e seu oposto, homem desbocado e presunçoso com grandes impulsos de ser vigário, sendo por algum tempo em Nossa Senhora do Loreto Gregório De Matos v. II, Salvador Universitária/ Rio de Janeiro: Gráfica Editora Obras completas de Gregório de Matos. s/d * Almanach Litterario de São Paulo para o Anno de 1881, 6.º Anno JoséMariaLisboa Lisboa Typ. Da "Provincia" -Rua da Imperatriz São Paulo 44 1880 * PauloPrado Retrato Do Brasil São Paulo Companhia das Letras 1997 * Processo De Divórcio Francisco Álvares de Andrade e Maria Jacintha Vieira Moji-Mirim, 1821. Ms * Processo De Nulidade Matrimonial João Duarte do Rego e Manoella de Godoy. Itu, 1804. Ms * Tradução de Ary Blaustein WilhelmReich 1966 Círculo do Livro. Rio de Janeiro: Editora Guanabara * Ensaio d'um tratado regular e prático sobre o divórcio segundo o direito canônico, sinodal e civil brasileiro, pelo advogado Romualdo Antonio Seixas. 2.ª ed. 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