Farsa Vicentina Auto Da Índia: Comicidade E Crítica A Partir Da Personagem "Moça" Jade Suelen Silva Vaz Resumo-O presente artigo apresentará os elementos satíricos do autor de teatro e poesia em Literatura Portuguesa Gil Vicente, a partir da farsa Auto da Índia, de 1509. Os pontos literários a serem analisados são a comicidade e a crítica por meio da perspectiva da personagem "Moça", que é secundária, porém de bastante relevância para a peça no geral, pois a criada que auxilia fundamentalmente na construção do enredo. Sendo assim, é de conhecimento a sulbalternidade e marginalização do que classificamos hoje como "empregada doméstica", então dar voz à essa personagem tão importante para as estratégias argumentativas e discursivas do escritor torna-se o ponto chave desse estudo. Eis um olhar que não só o das classes dominantes no âmbito literário. Palavras-chave: gil vicente. teatro vicentino. literatura portuguesa. # I. # Introdução Deus me cumpra o que sonhei. Auto da Índia, Gil Vicente. ste artigo pretende explanar sobre a comicidade e crítica da farsa Auto da Índia, de Gil Vicente, do ano de 1509, a partir do olhar da personagem "Moça". Embora esta seja uma personagem secundária, torna-se fundamental para o desenvolvimento do enredo, pois sem ela a protagonista estaria com mais intrigas, mas possilvemente insolucionáveis, o que tornaria a história confusa e sem pontos de reflexões morais. Destarte, "Moça" mostra-se como ponto de moralidade e consciência para Constança 1 Sabe-se que existe invisibilidade e marginalização de alguns grupos sociais, por questões daquilo que o cânone literário definiu como "alta, média e baixa" literatura e o que classificamos atual e, anacronicamente, como "empregada doméstica" encontra-se nesse nicho abastado tanto social quanto literarialmente. Por isso, colocar em primeiro plano uma figura subalterna de uma criada do século XVI é de suma importância a partir do momento em que se configuram novos olhares para uma "literatura culta". , que é a protagonista dessa peça, sendo ponto de conflito/ápice. 1 Este nome pode ser considerado uma ironia vinda do próprio Gil Vicente, pois a personagem não tem como qualidade a Constança, isto é, ela não tem dever, complemento ou obstinação com o próprio casamento (crítica e caráter moralizante da obra). Moça é a representação de uma dicotomia: por mais que alguns pensamentos dela sobre o matrimônio sejam diferentes atualmente, a personagem sempre esteve convicta dos seus pensamentos morais, deixando-os claros de forma irônica, contudo sucumbindo aos desejos de sua ama, para fins de sobreviência: [...] em O Auto da Índia, numa série de jogos, marcados pela representação, a mulher envolve-se com três homens ao mesmo tempo. Protagoniza situações de equívocos e mentiras, tendo como objetivo final a realização de seus desejos. Este tipo de atitude, mesmo sendo uma coisa condenável na época, comungava com um certo culto ao prazer, parte do antropocentrismo que permeava a cultura portuguesa no início do século XVI. BRITO, 2001, p. 82. Um ponto bastante interessante é que "Moça" não tem nome. Seria essa questão mais um ponto de invisibilização da personagem, porque ela seria "qualquer mulher", ou melhor, "qualquer criada". O restante dos personagens considerados importantes são apresentados por nomes ou apelidos: Constança, Lemos e Castelhano. "Marido", como uma figura quase que terciária, serve para ajudar na construção dessa intriga vicentina. Porém, se o marido de Constança tivesse mais relevância na narrativa, teria um nome e, possivelmente, "Moça" continuaria a não ter, pelo seu lugar de servidão e "insignificância" do ponto de vista social. # II. # Desvendando Gil Vicente: Teatro Vicentino Satírico Gil Vicente foi um poeta trovador e dramaturgo português. Muito famoso por dar origem ao teatro em Portugal, a partir da representação de um texto por meio de um ator (FERREIRA, 2011, p. 684). Em nível de contexto histórico, o literato pertence ao Humanismo, isto é, movimento histórico-filosófico-literário que valoriza o humano, considerado um período de transição entre a Idade Média e a Moderna. As obras de Gil são vistas como moralizantes e religiosas, por isso teve tanto amparo da coroa portuguesa de sua época para a difusão da sua literatura, mas houve algumas censuras após a sua morte, com o Tribunal de Santo Ofício dominando Portugal. O teatro vicentino em geral é marcado pelo gênero literário satírico (BERNARDES, 2019). As peças Auto Pastoril Castellano (1502), Auto da Alma (1518), Auto da Feira (1527), Floresta de enganos (1536) 2 Uma última modalidade pode ser designada por sátira filosófica. Para além dos que tomam o teatro vicentino como suporte documental, outros acercam-se da Copilaçam, na expectativa de nela encontrarem ecos das correntes filosóficas que assinalam a época. Nessa medida se tem falado em algumas variantes de franciscanismo (lulismo ou Devotio Moderna), em agostinismo ou mesmo em erasmismo. Nenhuma destas ilações se revela suficientemente sólida, a ponto de poder considerar-se Gil Vicente como um autor doutrinário, no que essa designação envolve de fundamentação única e de ordenamento estruturado. Mais do que relacionável com qualquer um destes «ismos», a sua ideologia é perfeitamente consentânea com a dou trina católica, no sentido abrangente em que a expressão deve ser tomada, , entre outras, são alguns dos exemplos desse forma de escrita do autor. Os conceitos de bem e mal estão sempre presentes em Gil Vicente como método de moralização, por meio da sátira: Quando se refere a natureza satírica da obra vicentina, pensa-se, sobretudo, em algumas peças mas não em todas. A este propósito, os géneros que imediatamente vêm à colação são a farsa e a moralidade. No primeiro caso, a tónica satírica parece inerente ao próprio género. (Idem, p. 281). Em primeiro lugar, não se deve confundir sátira com comicidade, pois a última é produto da primeira (BERNARDES, 2019, p. 295) e não conceitos semelhantes. Sendo assim, da sátira é extraída a o humor da obra, a comicidade é um efeito de causaconsequência. A ironia e o deboche são recursos linguísticos utilizados para quebrar o clima de tensão dos acontecimentos da peça, criticando questões filosóficas e psicológicas das personagens, por mais que a história de uma mulher com dois amantes seja bastante atraente e "incomum" (do ponto de vista de quereres moralizantes sociais), ainda mais no século XVI: # Auto da É por via desse procedimento que muitas vezes se confunde sátira com cómico, esquecendo que o último não passa, quase sempre, de um instrumento da primeira. Pode admitir-se que a sátira constitui uma linha definidora do ideário vicentino, em articulação com outras; mas já é mais difícil sustentar que o mesmo acontece com o cómico. Em boa verdade, não existe uma só peça vicentina que se possa considerar cómica na sua essência. (Idem). Então, tem-se uma de suas obras mais famosas: Auto da índia, que é uma farsa, isto é, a fronteira com a ambiguidade, que gera conflito psicológico nos personagens (BERNARDES, 2019, p. 282). A própria introdução da história já mostra essa dicotomia, já que o marido da protagonista, que se chama "Constança" 1 , pretende viajar para as Índias atrás de riquezas, mas a ama chora pela incerteza dessa viagem: "Foi fundado sobre que ?a mulher, estando já embarcado pera a Índia seu marido, lhe vieram dizer que estava desaviado e que já não ia. E ela de pesar está chorando. E fala-lhe ?a a sua criada" (VICENTE, p.2). O jogo de aparências é o ponto de criticidade da peça de Gil Vicente. Então, a comicidade encontrase nas situações desconfortantes que o autor criou para ter um rompimento com a seriedade do assunto tratado: o drama social do matrimônio. Neste estudo, serão analisados esses dois critérios a partir das quatro partes que constituem Auto da Índia, mas do ponto do vista de quem mais utilizou os artifícios satíricos ao longo da obra: a personagem "Moça". Resumidamente, as seções de dividem da seguinte maneira: primeira parte é sobre o desabar de Constança a respeito da possibilidade da não partida do marido para as Índias, lamentações com a "sua moça". Contudo, o plano é executado com sucesso e a viagem é realizada; a segunda resulta-se numa trama Volume XXI Issue XI Version I 48 ( ) em que se adentra o personagem "Castelhano", um recente amante manipulado pelos prazeres da protagonista. Na terceira, a aparição do amante oficial, denominado como "Lemos", que era considerado um rapaz vadio. Além disso, nesse momento, temos a fusão dessa tríade amorosa, entre encontros e desencontros. Já na quarta, temos o retorno do marido de ama, para a sua tristeza, mas como volta com riquezas, elemento a faz "superar" todos os conflitos morais e psicológicos que o casamento gera nela. Fundamentalmente, a crítica e a comicidade estão em uma só pessoa: a "Moça". É ela quem se torna o "ponto neutro", a confidente, a juíza, a advogada e escrava das situações de sua ama (mesmo que não quisesse participar das questões particulares de Constança, o que gera um "pentágono amoroso" 3 Nisso, inicia-se a segunda parte, em que o personagem Castelhano surge e a empregada cria estratégias para tentar romper com a infidelidade de sua patroa. Mesmo com os deboches de Constança aos elogios de Castelhano, a mesma parece interessada carnalmente pelo novo amante. Porém, ). Na primeira parte da obra, já surgem o conflito com a moralidade e pontos de comicidade, quando Constança chora pela possível permanência do seu marido (VICENTE, p. 3): MOÇA -Jesu! Jesu! que é ora isso? É porque se parte a armada? AMA -Olhade a mal estreada! Eu hei-de chorar por isso? MOÇA -Por minha alma, que cuidei E que sempre imaginei Que choráveis por nosso amo. "Moça", ao mesmo tempo que consola, alfineta, porque esses quereres vão contra os compromissos estipulados pela sociedade, no que diz respeito aos desejos e quereres infiéis de Constança. Contudo, ainda na primeira parte, é oferecida, pela ama, uma touca de seda como recompensa em troca de informações da empregada (que tem pena de seu patrão, inclusive) a respeito da viagem de seu marido (VICENTE, p. 4): MOÇA -Dai-me alvíssaras, Senhora, Já vai lá de foz em fora. AMA -Dou-te ?a a touca de seda. MOÇA -Ou quando ele vier, Dai-me do que vos trouxer. # AMA -Ali muitieramá! Agora há-de tornar cá? Que chegada e que prazer! MOÇA -Virtuosa está minha alma! Do triste dele hei dó. 3 "Pentágono amoroso": seriam os cinco personagens da trama: Constança, moça, marido, Lemos e Castelhano. "Moça" encontra-se sempre por perto, para que não haja consumação, por exemplo, de um ato sexual; comicamente, a empregada busca a interrupção dos anseios de sua ama (VICENTE, p. 8-9): AMA -Moça, vai àquele cão, Que anda naquelas tigelas. MOÇA -Mas os gatos andam nelas CASTELHANO -Cuerpo del cielo com vos! Hablo en las tripas de Díos Y vos hablaisme en los gatos! AMA -Se vós falais em desbaratos, Em que falaremos nós? Na penúltima seção, as críticas de "Moça" ficam mais claras e intensificadas acerca de Castelhano e Lemos. Num primeiro momento, a empregada explicita que aquele é "rebolão" e "ladrão" (VICENTE, p. 11); já este, "rascão do sombreiro" e "bem safado" (Idem, p. 11). Ou seja, além das "questões da carne", os amantes usam de outros artifícios para/com Constança, como a questão financeira. Na peça, a exemplo, Lemos é um coitado que não possui dinheiro, então a ama tem o papel de auxiliá-lo financeiramente, atitude contra o que "Moça" considera ser correta para uma senhora casada. "Moça" é a consciência de sua ama fora do corpo: sempre aconselhando sua patroa sobre os interesses de suas paixões para além dos prazeres, pois os amantes são dois bonachões, do ponto de vista pejorativo, conforme a empregada discorre ao longo da história. Sendo assim, a patroa quer chegar às suas finalidades amorosas de todo jeito, pois seu marido está nas Índias por três anos a procurar tesouros, o que é, de certa forma, uma "justificativa" para a sua infidelidade (que já ocorria anteriormente, somente com Lemos). No desenrolar da história, ainda na terceira parte há um momento entre Constança e Lemos, em que este pede à Moça que faça algumas compras para que o casal possa cear. Aparentemente, a empregada se conformou com a questão da infidelidade de sua ama (por questões de obediência e sobrevivência), indo comprar os quitutes para a refeição dos amantes. Ao longo das exigências do rapaz para a realização das compras, há alfinetadas sutis da criada, pois ele sempre queria o que era mais barato (VICENTE, p. 13). Quando, de repente, surge Castelhano na janela de Constança, gerando uma situação desconfortável para a ama, pois Lemos ainda está em sua casa. Contornado o ocorrido por parte da patroa, "Moça" faz uma crítica cômica, voraz e rimada, como numa espécie de diálogo com o público, em que há o rompimento da "quarta parede" (VICENTE, p. 16): Chegando à quarta parte e final, percebe-se que Moça tem um papel além de criada, juíza e advogada: ela é a confidente principal de sua patroa. Sequencialmente, a empregada, quando vai "comprar de comer" (VICENTE, p. 17), descobre que a armada retorna das Índias, e a mesma não pensa duas vezes e relata o fato à Constança, sendo xingada, inclusive, por tentar ajudar nesse momento dicotômico (Idem, p. 18): MOÇA -Ai, senhora! Venho morta: Nosso amo é hoje aqui. AMA -Perra, excomungada, torta! Situações como essas, de humilhação e desprezo à humanidade, acontecem todos os dias com muitas empregadas domésticas. IV. # Conclusão Em suma, pelo ponto de vista de Moça, é uma peça de submissão, mas não só do mundo de vista do trabalho doméstico desempenhado por esta personagem, e sim o acatamento dos desejos carnais de sua patroa Constança. Como explicitado, a criada desenvolve-se e defende-se das atitudes e pensamentos de sua ama a partir do olhar satírico tanto da farsa quanto da moralidade, gerando, assim, uma comicidade na peça. Volume XXI Issue XI Version I 50 ( ) Crítica de "Moça"Segundo Bernardes (2019, p. 285-286), existemdiversos focos no que diz respeito à sátira vicentina, eisos principais: moralidade, presunção, comportamento efilosofia, em que elas podem se cruzar ao longos dasnarrativas. Quanto à moral, tem-se a ambiçãocomo elemento norteador. A presunção estaria para"... variante intelectual da ambição" (Idem, p. 285),como uma maneira de ser petulante das personagens.Na esfera comportamental, é possível perceber o tomdisciplinador social. Por fim, a filosófica abarca algunsramos filosóficos contemporâneos ao dramaturgo:2 BERNARDES, 2019. considerando Farsa Vicentina Auto Da Índia: Comicidade E Crítica A Partir Da Personagem "Moça" © 2021 Global JournalsFarsa Vicentina Auto Da Índia: Comicidade E Crítica A Partir Da Personagem "Moça" Year 2021 A * A sátira no teatro de Gil Vicente JoséAugustoBernardes Cardoso Gil Vicente: compêndio 2019 Imprensa da Universidade de Coimbra * Jogos femininos no Auto da Índia: uma abordagem de jogos do liberalismo feminino no século XVI. Idioma, 21 IremarBrito Maciel De Centro Filológico Clóvis Monteiro -UERJ 2001 * Gil Vicente, trovador, mestre das palavras AnaFerreira Carolina De Souza Cadernos do CNLF XVI 2011 Nº 04, t. 1 -Anais do XVI CNLF. Rio de Janeiro * AntónioJoséSaraiva Ã?"scarLopes PortoHistória Da Literatura Portuguesa LdaEditora Porto 1979 * GilVicente Da Índia Porto Editora ClássicosBiblioteca Digital Colecção Da Portuguesa