# I. Introdução série "When They see us" é baseada em fatos reais, e retrata a história de cinco adolescentes acusados injustamente de terem cometido os crimes de estupro, tentativa de homicídio, lesão corporal e motim. No Brasil, a série foi traduzida para "Olhos que Condenam", e está disponível na plataforma Netflix. O fato ocorreu em 1989, no Central Park, em New York, nos Estados Unidos. A vítima, Trisha Meili, uma mulher branca, com 28 anos e bancária. Todos os adolescentes acusados são negros, todos de classe social baixa, e um deles latino-americano. Yusef Salam, Antrom McCray, Korey Weise, Raymond Santana, e Kevin Richardson permaneceram segregados até início dos anos 2000, quando em 2002 o verdadeiro autor dos fatos assumiu o cometimento do crime e, após a realização do exame de DNA, ficou comprovada a autoria do crime, e a inocência deles. Em 2014, a prefeitura de New York realizou o pagamento de US$41 milhões a título de indenização para eles. Esse caso retratado pela série é o reflexo de um sistema falido, criado estrategicamente para o controle dos corpos pretos e pobres. Quatro, dos cinco adolescentes, foram encaminhados para reformatórios juvenis, por serem menores de dezesseis anos. Korey, o único com dezesseis anos -que não estava no local dos fatos, apenas foi acompanhar o seu amigo no depoimento para a delegacia -, foi encaminhado para uma penitenciária de adultos, e durante a sua prisão sofreu os mais diversos tipos de violência física e mental. Além da violência perpetuada nos reformatórios que eles ficaram internados, e na penitenciária que Korey ficou preso, é importante atentar para o papel desenvolvido pela polícia (criminalização primária), como protagonista de uma perseguição que ocasionou a prisão ilegal dos adolescentes. Além disso, ao ficar evidenciado o racismo institucional na prisão ilegal dos cinco adolescentes, foi identificado como o sistema de justiça criminal é falho ao tratar da violência de gênero. A série retratou que vítima do crime de estupro não teve nenhum amparo. As mães dos adolescentes privados de liberdades tiveram que arcar com toda a carga que as prisões ilegais trouxeram, sustentando de certo modo o sistema prisional. Sendo assim, o presente trabalho tem a seguinte problemática: como a série When they see us articula as categorias raciais e de gênero no aprisionamento ilegal dos cinco adolescentes negros? Para isso, o marco teórico a ser utilizado será o da criminologia crítica, partindo de estudos que versam sobre a intersecção de gênero, raça e sexualidade. A técnica utilizada será a dedutiva, com a metodologia exploratória da bibliografia. O trabalho será dividido em duas partes. Em um primeiro momento será abordado como o racismo institucional ainda atravessa os corpos negros, sobretudo de que forma o sistema capitalista está interligado com o encarceramento em massa da população preta e pobre, e como as características do período escravocrata está presente nesse sistema. Na segunda etapa, será retratado como sexo, gênero, raça e classe são fundamentais para sustentar o sistema prisional, além de trazer alternativas para a utilização do sistema penal, tanto estadunidense como brasileiro, tendo em vista sua ineficácia no controle de atos considerados ilícitos. # II. Os Reflexos da Escravização da População Negra Afro-Americana e a Representação Social dos Homens Negros Neste primeiro subcapítulo será trabalhado como o período de escravidão foi fundamental para a construção da representação social destinada ao homem negro na sociedade estadunidense pósescravidão, e como isso foi reproduzido na série. A seguir, serão apresentados os resultados da análise, a partir das contribuições da criminologia crítica, sobretudo utilizando-se das contribuições de teorias raciais para a melhor compreensão do tema abordado. # a) A Representação Social dos Homens Negros: O Caso dos Cinco do Central Park O caso dos cinco do Central Park foi retratado pela série "When they see us", que demonstra muito bem como o racismo serve como estrutura da seletividade do sistema de justiça criminal estadunidense. Contudo, a série deixa de fora todo o contexto histórico estadunidense de exploração, e o lugar que os homens negros ocupavam nele, por isso, este trabalho busca relacionar os fatos narrados na série com os reflexos do período de escravização da população afro-americana. A injustiça e o racismo identificados na série, são herança dos tempos sombrios da escravização no país, que durou cerca de 240 anos, entre os séculos XVIII e XIX. Desde as primeiras interações entre o povo ocidental e a população africana, negros e negras vivem com o estigma de selvageria, suas características físicas e comportamentais eram associadas aos animais (DURU, 2004, p. 3). As pessoas negras eram classificadas como sub-humanas em razão de suas capacidades físicas: maior resistência ao sol, maior velocidade ao correr, e mesmo tendo corpos esguios conseguiam carregar uma grande quantidade de peso. O problema mais temido pelos europeus, estava relacionado ao fato de que à população negra ao ser retirada do seu habitat natural, e ser colocada juntamente com uma raça "superior", eles não conseguiriam controlar seus instintos selvagens, colocando a população branca em risco (DURU, 2004, p. 5). A escravidão como instituição desumanizou negros e negras retendo suas liberdades, reforçando ainda mais o estereótipo de animais que deveriam ficar enjaulados (DURU, 2004, p. 5). Com a abolição da escravidão nos Estados Unidos, em 1865, por meio da décima terceira emenda Constitucional, as instituições de controle tiveram que se reinventar, ou como ensina Angela Davis (2018b), necessitou ser atualizada, e surgiram outros meios para o controle da população afro-americana recém liberta. Nesse sentido, esse período pós-escravidão no país, e com o temor de possíveis revoltas dos "escravos selvagens", foram criadas diversas leis que criminalizavam até as ações mais simples de pessoas negras, como, por exemplo, o simples fato do homem negro olhar em direção de uma mulher branca. Isso gerou uma falsa percepção de que a população negra cometeria mais crimes, quando na realidade o número de estupros ocorridos na época foi minimamente desproporcional em relação às alegações feitas (MAIER, 2008, p. 306). Na história dos Estados Unidos, a acusação fraudulenta de estupro se destaca como um dos artifícios mais impiedosos criados pelo racismo. O mito do estuprador negro tem sido invocado sistematicamente sempre que as recorrentes ondas de violência e terror contra a comunidade negra exigem justificativas convincentes (DAVIS, 2016, p. 172). Assim, esse período pós-escravidão é fundamental para compreender como os reflexos da escravização dos corpos negros estão presentes no sistema penal estadunidense. Davis, ainda leciona, que o mito do homem negro estuprador é irmão do mito da mulher negra raivosa, ambos foram criados como subterfugio facilitador da exploração de homens negros e mulheres negras (DAVIS, 2016, p. 173). No entanto, é necessário destacar que esse período pós-escravidão é marcado pelo racismo estrutural, mas que torna-se importante distinguir os conceitos entre racismo inidividual e institucional. Os primeiros autores a teorizar sobre o racismo institucional foram Charles Hamilton e Kwame Ture, que na obra Black Power: Politics of Liberation in America, que conceituaram como uma prática de toda a comunidade branca contra a comunidade negra (HAMILTON; TURE, 1967). Para exemplificar a diferença entre o racismo individual e o institucional, eles tratam da seguinte forma: Quando terroristas brancos bombardeiam uma igreja negra e matam cinco crianças negras, isso é um ato de racismo individual, amplamente deplorado pela maioria dos segmentos da sociedade. Mas quando nessa mesma cidade -Birmingham, Alabama -quinhentos bebês negros morrem a cada ano por causa da falta de comida adequada, abrigos e instalações médicas, e outros milhares são destruídos e mutilados fisica, emocional e intelectualmente por causa das condições de pobreza e discriminação, na comunidade negra, isso é uma função do racismo institucional. Quando uma família negra se muda para uma casa em um bairro branco e é apedrejada, queimada ou expulsa, eles são vítimas de um ato manifesto de racismo individual que muitas pessoas condenarãopelo menos em palavras. Mas é o racismo institucional que mantém os negros presos em favelas dilapidadas, sujeitas às pressões diárias de exploradores, comerciantes, agiotas e agentes imobiliários discriminatórios (CHARLES; KWANE, 1967, p. 2). Assim, essa visão dos autores sobre o racismo institucional, segundo Almeida (2019), não pode ser analisada como se houvesse uma ação deliberada de todos os brancos contra os negros, tendo em vista que isso levaria em consideração algo individual, mesmo que em grupo. É necessário observar que "as instituições atuam na formulação de regras e imposição de padrões sociais que atribuem privilégios a um determinado grupo racial, no caso, os brancos" (ALMEIDA, 2019, p. 31). Dessa forma, é possível concluir que a escravização da população negra trouxe reflexos para a sociedade no período pós-abolição, e a série vai reproduzir um desses reflexos, qual seja, a associação do homem à selvageria dos animais enquanto seres irracionais e instintivos. Essa reprodução do homem negro enquanto um animal selvagem, também foi reproduzida em diversos filmes, o que colaborou para a manutenção desse estereótipo de criminoso, com o nítido objetivo de controlar e erradicar a população negra. Em 1915, o filme intitulado "O Nascimento de uma Nação" (The Birth of a Nation), se popularizou por trazer diversos estereótipos de negros selvagens, que sem restrições de liberdade, tornavam-se animais sexualmente insaciáveis. Além disso, o filme ressaltava a supremacia e o heroísmo do homem branco em detrimento do homem negro, reforçando os estereótipos, e sendo responsável pelo linchamento e morte de diversos homens negros na época (DURU, 2004, p. 6). Fica nítido, portanto, que o fato de pessoas negras viverem livremente em sociedade ainda causava pânico no período pós-escravidão, e isso significava que era preciso tomar alguma atitude para controlar esses "animais selvagens", por meio do controle social através da criação de leis segregadoras. Ou até mesmo por meio da utilização do entretenimento para colaborar com a manutenção desse imaginário social de que as pessoas negras eram violentas. É exatamente nesse ponto em que o contexto histórico de colonização e escravidão se cruzam com os fatos verídicos dramatizados na série. Korey Wise, Kevin Richardson, Raymond Santana, Antron McCray e Yusef Salaam já no primeiro episódio são levados para a delegacia para prestar depoimento sobre os fatos ocorridos no dia 19 de abril de 1989, no Central Park, onde uma mulher branca, com 28 anos de idade, havia sido estuprada, espancada e deixada para morrer. Ao iniciar as investigações, traçando uma linha do tempo sobre a noite do ocorrido, a promotora Linda Fairstein, responsável pela Unidade de Crimes Sexuais da Ministério Público de Manhattan, mesmo sem ter nenhuma prova do envolvimento dos garotos com o fato, proferiu a seguinte frase "e pensar que íamos mandar esses animais à vara de família e colocá-los de volta nas ruas". Nas cenas seguintes, a personagem reitera por diversas vezes a comparação dos jovens negros com animais. Ao iniciar a análise sobre a representação dos homens negros na série, pode-se verificar algumas classificações, a demonização é uma delas. A comparação feita pela promotora Linda Fairstein é algo histórico, os colonizadores reduziam os negros a estereótipos criados pelo racismo, e um deles está ligado a mentalidade primitiva e o erotismo animal que os negros possuíam (SOUZA, 2009, p. 100). Esse tipo de representação segue durante os episódios da série, durante a primeira audiência, a testemunha Srta. Dean, que passeava de bicicleta pelo local na noite do ocorrido, diz lembrar de "um grupo de garotos fazendo sons de animais no local". Nesse sentido, cabe aqui trazer algumas reflexões do psiquiatra e filósofo negro Frantz Fanon, que ao analisar a diáspora negra e as violências coloniais, constatou que "para a maioria dos brancos, o negro representa o instituto sexual (não educado). O preto encarna a potência genital acima da moral e das interdições" (FANON, 2008, p. 152). O mito do "the bestial black man" é originário da época da escravidão, onde durante muito tempo acreditou-se que os escravos negros poderiam estuprar facilmente as moças brancas devido ao seu instinto animal (DURU, 2004, p. 5). O negro não possuía sexualidade, mas sim sexo, contrastando com o homem branco civilizado, a lascívia também era algo inerente do homem negro e seus genitais, que no século XVI eram medidos e expostos pelos observadores europeus (DURU, 2004, p. 3). "O branco está convencido de que o negro é um animal; se não for o comprimento do pênis, é a potência sexual que o impressiona" (FANON, 2008, p. 147). A demonização dos cinco meninos negros também aparece durante os interrogatórios, os quais são realizados somente por policiais homens e brancos, sem a presença de qualquer responsável, e sempre mediante muita violência, seja física ou mental. Durante o interrogatório, que durou mais de trinta horas, os policiais fizeram uso de uma técnica chamada Reid. Esse método faz com que o acusado acredite que há provas suficientes de sua autoria sobre o ato, mesmo que essas provas não existam. Nessa parte, a hipersexualização do homem negro reaparece quando o policial pergunta para Raymond se ele "quis enfiar o pinto em uma moça branca". É importante mencionar que os suspeitos estavam sem advogados/as, sem familiares, ou responsáveis, por perto, enquanto o interrogatório estava sendo realizado. Além disso, a técnica utilizada é considerada controversa e proibida em diversos países. A partir disso, é possível conferir mais uma forma de demonização do homem negro herdada da época escravagista, que é o perfil de criminoso, pois para os colonizadores brancos, os negros não possuíam escrúpulos, eram malfeitores e inerentemente criminosos (DURU, 2004, p. 4). De acordo com Angela Davis, para o imaginário hegemônico branco e europeu, os criminosos são sempre idealizados como pessoas negras, em virtude do poder persistente do racismo (DAVIS, 2016, p. 12). Ainda durante a fase de investigação, a promotora Linda Fairstein se refere aos cinco meninos negros como "bandidinhos". Esse imaginário hegemônico foi corroborado pela forma como o país tratou a população negra no período pós-escravidão, pois o estereótipo de criminoso foi sempre reforçado pelos meios de controles sociais formais e informais. Conforme a teoria interacionista ou da reação social da criminologia, a construção da criminalidade e do criminoso não é algo ontológico ou pré-constituído, mas sim algo que depende de uma reação social. O controle e a criação do que será considerado desvio, e quem será considerado desviante, é selecionado de forma discricionária por uma parte privilegiada da sociedade (ANDRADE, 2015, p. 205). Nesse sentido, pessoas não brancas são historicamente consideradas pré-dispostas a cometer ilícitos e, por isso, devem ser mais observadas por esse sistema de controle: A construção do criminoso 'tipo criminal' somente foi possível com a exposição absoluta dos encarcerados ao 'olhar dos especialistas', ou seja, a partir de uma relação concreta de poder que se estabelecia prisões, transformando em jaulas destinadas à observação de novas espécies (CARVALHO; DUARTE, 2017, p. 50). O sistema de justiça criminal serviu, e serve até hoje, como mecanismo de controle dos corpos negros, tendo como objetivo manter o privilégio de parte da sociedade branca e rica. Isso faz com que pessoas negras continuem na base da pirâmide social, sendo pobres e oferecendo mão de obra barata e precarizada (BORGES, 2018, p. 93). Todos esses fatos verificados até aqui, justificam a razão de Korey, Kevin, Raymond, Antron e Yusef terem sido considerados os criminosos perfeitos no caso do Central Park, cinco meninos pobres, e negros, sendo um deles de origem latinoamericana. Somando-se a esse estereótipo construído historicamente, pode-se identificar a influência midiática na manutenção da população negra nesse local subalternizado, e essa influência também esteve presente neste caso. No início do segundo episódio, é possível verificar vários telejornais e programas de rádio falando sobre o caso, e ao se referirem aos cinco acusados, proferiram as seguintes frases: "eles vieram à cidade de um mundo do crack, armas, facas, indiferença e ignorância. Vieram de uma terra sem pais. Vieram da região selvagem dos pobres, e guiados por uma fúria coletiva repleta de uma energia violenta das ruas". A mídia teve um papel fundamental para a condenação dos cinco meninos, e reforçou o estereótipo de criminoso e selvagem atribuído historicamente às pessoas negras. Além do estereótipo de animal criminoso, uma outra representação do homem negro retratada na série, é a do homem negro que deixa de se reconhecer como pertencente à uma porcentagem da população que historicamente é marginalizada, e que reproduz a opressão racista do sistema de controle social. Em três momentos esse tipo de representação aparece na série. A primeira ocorre logo no início durante a intervenção policial no Central Park, onde um dos policiais que aborda os meninos de forma violenta, é negro. A segunda é durante as investigações na delegacia, onde um dos policiais que está auxiliando no caso é negro, porém mesmo presenciando diversas irregularidades, como: a alteração da linha do tempo pela promotora Linda Fairstein para parecer que os meninos cometeram o crime; e presenciar o interrogatório ilegal de Kevin Richardson por dois policiais brancos sem a presença de um responsável por ele no local, o referido policial não tomou nenhuma atitude que pudesse ajudar os meninos. Em um terceiro momento, mais precisamente no último capítulo da série, Korey é transferido para a penitenciária de Wende e, um guarda negro da penitenciária organiza o que ele chama de "comitê de boas-vindas", e Korey é espancado e esfaqueado pelos outros detentos, nas cenas seguintes o guarda diz a Korey que fez isso para que ele não se achasse estrela, o forçando a ficar na solitária. Dessa forma, a série retrata os homens negros de forma ambígua, em um primeiro momento como um animal selvagem criminoso. Em um segundo plano, retrata o homem negro como sendo aquele que, por estar em uma posição de privilégio, acabou se rendendo às prerrogativas do sistema de controle social criado por pessoas brancas para manutenção do poder e privilégios, fazendo com que não possua empatia com seus semelhantes. Nesta parte da análise é importante ressaltar o trabalho importantíssimo de Neusa Santos Souza, mulher negra, psiquiatra e psicanalista brasileira, em sua obra "Tornar-se negro". Nessa obra, a autora trata sobre como é ser negro em uma sociedade branca, e a partir disso analisa a experiência emocional do negro em ascensão. De acordo com Souza, após terem sido dominadas, colocadas em estado de submissão, demonizadas e serem inferiorizadas, as pessoas negras perderam as suas individualidades e concepções positivas sobre si mesmas. Esse fato fez com que pessoas negras tornassem o branco como o modelo de identidade levando em consideração as prerrogativas brancas para ascender socialmente (SOUZA, 1983, p. 19). O cidadão era o branco, os serviços respeitáveis eram os serviços -brancos, ser bem tratado era ser tratado como branco. Foi com a disposição básica de ser gente que o negro organizou-se para a ascensão, o que equivale dizer: foi com a principal determinação de assemelhar-se ao branco que o negro buscou, via ascensão social, tornar-se gente (SOUZA, 1983, p. 21). Nesse sentido, esse processo de integração das pessoas negras na sociedade capitalista criou diversos bloqueios e fragmentações de identidade que por muitos anos desmantelou a solidariedade entre a população negra. Sendo assim, "aproximar-se do dominante é uma estratégia, entre outras, de sobrevivência social criada em contextos de pressão, e constante violência simbólica no sentido da negação do EU. Negar a identidade coletivamente atribuída, ou fugir à identificação com os semelhantes" (GOMES, 2007, p. 537). A partir desse processo de dominação e pertencimento, os fundamentos trazidos por Souza contemplam a representação dos policiais negros da série que não se reconheceram nos meninos negros criminalizados de forma injusta. De acordo com Souza, o fato de pessoas negras escolherem como ideal as prerrogativas brancas correm o risco de muitas vezes se tornarem seus próprios algozes (SOUZA, 1983). Verifica-se, portanto, que a série retratou de que forma a estrutura racista do sistema penal atravessa os corpos dos homens negros, sobretudo ao trazer à tona características herdadas pelo período escravocrata que ainda estão presentes nesse sistema. Isso somente reforça como o sistema penal está deslegitimado, e sofre uma crise estrutural, uma vez que atua de forma seletiva e discricionária. Segundo Davis (2018a), o sistema penal somente será superado, caso o racismo seja extinto da sociedade. Posto isso, no próximo tópico será problematizada a utilização do sistema penal como função simbólica para coibir os crimes em decorrência de gênero, e como o racismo vai se articular para reforçar estereótipos herdados do período de escravização da população negra. # III. A Herança do Período Escravocrata na Utilização do Sistema Penal Como Meio de Controle Social A série When They see us retrata, em forma de documentário, um crime de estupro praticado contra uma mulher branca que estava correndo no Central Park, em New York, em 1989. O foco da série é retratar a prisão ilegal dos cinco adolescentes negros, justamente para demonstrar como o racismo esteve (e ainda está) por detrás de prisões ilegais. Neste subcapítulo será abordado como o racismo, intercruzado com a desigualdade social e de gênero, influenciam na estrutura do sistema penal, centrando o debate sobre os crimes sexuais. # a) "Se você estiver livre? Eu também estou": Como a raça, a classe e o gênero estruturam o sistema prisional estadunidense Na primeira parte deste trabalho foi compreendido como a série When they see us retratou a forma seletiva da atuação do sistema penal estadunidense, sobretudo no que se refere à reprodução do estereótipo do homem negro como criminoso. Contudo, outra análise importante que se extrai da série, que foi baseada em fatos reais, é como o sistema penal intercruzado com as teorias raciais, de gênero e de classe social foram representados na série. Nos dois primeiros episódios da série é narrado o crime de estupro ocorrido em abril de 1989, no qual teve como vítima Trisha Meili, uma mulher branca, de 28 anos. No dia dos fatos ela estaria fazendo sua corrida naquela noite no Central Park, momento em que teria sido atacada por oito homens, e violentada no próprio parque. A vítima permaneceu em coma por 12 dias, e teve algumas sequelas. Sem maiores investigações, conforme analisado anteriormente, a polícia do local indiciou os cinco adolescentes, e durante a série foi possível observar que nenhum amparo foi dado à vítima, afinal, a série tinha como foco retratar a prisão ilegal dos cinco acusados. Ao analisar o crime de estupro a partir do viés criminológico crítico feminista, estudos demonstram que o ponto central dos crimes praticados contra as mulheres é sobre uma "violência misógina pelo fato de serem mulheres" (LAGARDE, 2007, p. 153). No entanto, apesar dessa dominação, as teorias que trabalham o tema de violência sexual afirmam não ser possível limitar a violência doméstica somente sobre a dominação de gênero, para não recair em um debate raso sobre o tema. Campos (2015) revela que há um menosprezo ao corpo da mulher quando são cometidos crimes sexuais, principalmente no cometimento do crime de estupro. Davis (2018b) faz um estudo histórico sobre o surgimento das prisões nos Estados Unidos e, em sua pesquisa, constatou que as prisões inicialmente foram criadas para o controle social dos corpos masculinos, sobretudo porque as mulheres não possuíam o status de indivíduo, mas sim eram propriedade de algum homem (pai ou marido). Diante disso, concluiu que "a persistência da violência doméstica é uma evidência dolorosa desses modos históricos de punição por gênero" (DAVIS, 2018b, p. 36). É possível concluir que há um percurso histórico de dominação sobre os corpos das mulheres para ser possível compreender toda a problemática que envolve a violência de gênero, principalmente sobre o crime de estupro, não sendo possível ser feito um debate profundo sobre o tema neste momento. Contudo, a problemática que será abordada nesta parte do trabalho, a partir da análise da série e do crime de estupro, diz respeito à utilização do sistema penal como meio para prevenção/punição desse crime. Em um primeiro momento é de suma importância revelar que há uma grande divergência dentro dos movimentos criminológicos críticos feministas 1 1 Mendes (2014) sustenta a ideia de uma pluralidade de movimentos criminológicos críticos feministas, partindo de epistemologias diversas, envolvendo outras análises do sistema penal, não somente o viés sexista. acerca do uso simbólico do sistema penal nos crimes de violência contra a mulher. Isso porque, a partir de uma análise abolicionista, que visa o fim das prisões, e do próprio sistema de justiça criminal, é possível que ocorra uma legitimação do sistema penal quando se está diante do uso simbólico do sistema penal como meio para coibir crimes em decorrência de gênero. Isso porque "a única resposta que o direito penal é capaz de lhe dar é a resposta punitiva, o acionamento do castigo. Não favorece a construção de mecanismos alternativos de solução de conflitos que valorizam a própria autonomia das partes" (BUDÃ?"; GINDRI, 2016, p. 249). Nesse sentido, a partir dessa crítica abolicionista, mesmo que haja uma punição ao autor do fato, a seletividade do sistema penal impediria que efetivamente houvesse a aplicação da lei de forma igualitária, pela sua estrutura racista e capitalista. Ao fazer uma análise do sistema prisional estadunidense, Davis (2018b) menciona que o avanço do capitalismo, e a privatização das prisões, ocasionou um grande interesse pelas indústrias no aprisionamento em massa, com o único objetivo de se ter acesso à mão de obra barata. Outros estudos do século XIX vão indicar que o quantum de pena a ser aplicado a cada indivíduo também foi influenciado pela ascensão do capitalismo, pois quanto maior a pena a ser cumprida, mais mão de obra para as indústrias beneficiadas (CURTIN, 2000, p. 6). Por isso, algumas autoras fazem uma análise cautelosa acerca da utilização do sistema penal. Flauzina (2016) faz uma análise cautelosa acerca da utilização do sistema penal. Sua análise está atrelada ao fato de que com o encarceramento dos homens, sobretudo dos homens negros, há uma dupla penalidade às mulheres. Além de serem vítimas de uma violência que é estruturada pela existência de uma sociedade patriarcal, terão de arcar com diversas outras responsabilidades interligadas com o encarceramento em massa da população masculina, o que demonstra um grande comprometimento do sistema prisional com o sexismo (FLAUZINA, 2016). As mulheres vítimas de violência são as que sustentam os lares após a prisão dos seus companheiros, além de muitas vezes terem que prover o sustento do próprio indivíduo encarcerado, demonstrando que o aprisionamento do (a) agressor (a) não encerra a violência que é institucionalizada. Pelo contrário, a pena de prisão acaba por sobrecarregar cada vez mais as mulheres, principalmente as mulheres negras. Esse dado foi notável na série, pois foram as mães dos adolescentes que arcaram com toda a responsabilidade por trás das prisões ilegais. Elas foram as responsáveis por contratar advogado, pelo acompanhamento nas audiências, pelas realizações de visitas, e pelo o próprio sustento da família, reproduzindo o que a sociedade patriarcal de maneira estrutural impõe à mãe, pois ela é a responsável pela criação dos filhos e filhas. Essa realidade demonstrada pela série não destoa da realidade brasileira. Em um estudo recente publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais, foi constatado que nas audiências para revisão da medida de internação, em um centro socioeducativo localizado no interior do Rio Grande do Sul, as pessoas que acompanharam os adolescentes privados em liberdade, eram em sua maioria mulheres, sobrerrepresentadamente negras (SILVA; BUDÃ?"; DIAS, 2019). Na série, a única exceção foi Raymond Santana, o latino-americano que foi criado pelo pai e pela avó paterna. O seu pai não mediu esforços para lutar pela sua liberdade, contratou advogado, realizou visitas durante a internação, embora após certo período ele tenha deixado de acompanhá-lo nas audiências. Mas, a maior carga enfrentada por essas mães e por esse pai, foi o sentimento de injustiça e impotência com as prisões. Se torna emblemático ressaltar o sofrimento de Korey e de sua família. Korey, foi o único adolescente encaminhado para a prisão, pois na data dos fatos estava com 16 anos. Ele teve que passar por diversas violências físicas e psicológicas longe da mãe e da irmã. Inclusive, durante parte do cumprimento da sua pena, teve que suportar a perda da sua irmã, Marci Wise, assassinada por transfobia. Necessário destacar que a visibilidade dada pelo sistema de justiça à morte de sua irmã foi ínfima perto de todo o pânico moral causado pelo crime praticado contra Trisha. Isso porque a irmã Korey era negra, pobre e transgênera, ou seja, não tinha o perfil ideal de vítima. Considerando isso, foi possível perceber que a mãe de Korey teve que suportar toda a dor pela perda da sua filha transgênera, -isso após tê-la expulsado de casa por não aceitar a sua condição de mulher transgênera -e, ainda, ser forte para suportar a prisão ilegal e totalmente violenta do seu filho. O comprometimento do sistema penal com o sexismo também é retratado pelo abandono afetivo do pai de Antron, que em depoimento em sede policial obrigou o seu filho a mentir, demonstrando uma postura completamente conivente com a estrutura racista do sistema prisional. Somando-se a isso, durante o julgamento do seu filho acabou saindo de casa, e também deixou de acompanhar as audiências. Ficou nítido na série que a relação de Antron e seu pai nunca mais foi a mesma, apesar do cuidado despendido pelo filho nos últimos dias de vida do pai. Esse abandono também foi emblemático, pois a mãe de Antron além de ter acompanhado todo o julgamento, e posterior cumprimento de medida, foi a encarregada pelos cuidados ao pai de Antron, quando ele foi acometido por um câncer. Esse papel da mulher negra com forças para suportar todas as particularidades que a atravessam, também pode ser entendido como um reflexo do período de escravização. Isso se deu pelo fato de que durante o período de escravização, não havia distinção entre o trabalho das mulheres negras, e dos homens negros, pois ambos exerciam trabalhos braçais, com a distinção de que para as mulheres negras o estupro era regular e tratado com naturalidade. Todos esses fatos, são retratados pelo famoso discurso de Sojourner Truth (1851), no qual ela questiona se realmente as mulheres negras e pobres são mulheres. Isso é questionado pela ativista negra, pois a carga histórica escravocrata demonstra que a feminilidade foi subtraída das mulheres negras, visto que desde cedo tiveram que suportar estupros, abandono forçado dos(as) filhos(as), violência contra seu companheiro, e demais violências oriundas do racismo. A autora bell hooks (1981) afirma que essa força das mulheres negras muitas vezes foi romantizada pelos movimentos das mulheres brancas, principalmente por elas não incluírem em seus debates uma forma de superação da estrutura racista e sexista da sociedade. Ironicamente, enquanto o recente movimento de mulheres chamava a atenção ao facto de as mulheres negras serem duplamente vitimizadas pela opressão sexista e racista, as feministas brancas tendiam a romancear a experiência feminina negra mais do que a discutir o impacto negativo dessa opressão. Quando as feministas num único fôlego reconhecerem que as mulheres negras eram vitimizadas e no mesmo fôlego enfatizaram a sua força, elas sugeriram que apesar de as mulheres negras serem oprimidas elas conseguiam contornar os impactos causados pela opressão sendo fortes -e isso não é simplesmente um acontecimento. Usualmente, quando as pessoas falam da "força" das mulheres negras elas referem-se à forma pela qual elas percebem como as mulheres negras lidam com a opressão. Elas ignoram a realidade de que ser forte perante a opressão não é o mesmo que superar a opressão, que a sobrevivência não é para ser confundida com a transformação. Frequentemente os observadores das experiências das mulheres negras confundem estas questões. A tendência em romancear a experiência das mulheres negras que começou com o movimento feminista refletiu-se na cultura como um todo. A imagem estereotipada da "força" das mulheres negras já não é mais vista como desumanizante, tornou-se a nova insígnia da glória feminina negra (hooks, 1981, p. 8). A série retrata, portanto, que esse papel ainda está enraizado na sociedade, uma vez que foram as mães dos adolescentes, mulheres pretas, que mais sofreram com as prisões ilegais de seus filhos, o que demonstra todas as consequências da estrutura racista e sexista da sociedade. Todos esses sentimentos retratados pela série demonstram uma ampla ambiguidade sobre o conceito de justiça e, por isso, segundo Flauzina (2016), considerar o sistema penal como meio para coibir crimes cometidos em decorrência do gênero é problemático. Nos(as) personagens envolvidos(as), foi possível observar que a busca incessante por justiça representada pela procuradora Linda Fairsten, está atrelada ao conceito de vingança, principalmente pelo crime cometido ter sido o crime de estupro. Não à toa, é relatado no documentário que Donald Trump, expresidente dos Estados Unidos (na época um empresário milionário), custeou quatros anúncios no jornal de grande circulação, The New York Times, no valor de US$85mil, solicitando a volta da pena de morte em New York. Verifica-se, portanto, que o crime cometido aflorou sentimentos distintos em cada personagem envolvido(a) na trama. Para a procuradora Linda, a justiça estava sendo feita com as prisões, e posteriores condenações, dos "animais", independentemente se eram ilegais ou não. Para Donald Trump, a justiça seria mais eficaz caso houvesse a volta da pena de morte. Para as mães negras, e para o pai, que tiveram os seus filhos presos injustamente, a justiça significava a liberdade dos seus filhos. Foi possível verificar que a legitimação do sistema penal como uma função simbólica de conscientização da violência contra a mulheres pode ocasionar graves prejuízos, tendo em vista que esse sistema foi desenvolvido para atuar de maneira seletiva. Ficou demonstrado na série que as prisões dos adolescentes bastaram para si mesmas, pois essa é a função não declarada do sistema penal, que sofre com uma crise em sua estrutura (ZAFFARONI, 1991). Com as prisões, não houve qualquer discussão acerca do racismo institucional e da violência em decorrência do gênero, pelo contrário, o debate apenas ficou centrado na punição dos cinco adolescentes como representação de justiça. A justiça em suas diversas formas representadas na série deveria seguir para inibir conjuntamente as violências nos reformatórios/prisões, o racismo e a própria violência de gênero. Mas, para possibilitar alternativas ao sistema penal, segundo Davis (2018a), o debate acerca do sistema prisional precisar se afastar da dualidade crime e punição. Ela atenta para a necessidade de incluir no debate sobre abolicionismo prisional melhorias no sistema educacional, na assistência à saúde, principalmente à saúde mental, além de ser necessário descobrir formas de abolir a falta de moradia. Por outro lado, acerca do uso simbólico do direito penal para coibir os crimes em decorrência de gênero, Pires e Souza (2019) analisaram trabalhos desenvolvidos sobre o tema no Dossiê Gênero e Sistema Punitivo da Revista Brasileira de Ciências Criminais e em eventos nacionais na mesma área. Elas verificaram que a abordagem feita pelos movimentos feministas, e pelas próprias pesquisadoras, acabam por fazer uma análise rasa sobre o tema. Elas relataram que o uso do sistema penal de forma simbólica não pode ser romantizado, mas ao mesmo tempo não deve ser minimizado, mesmo que ainda não tenham sido colhidos os efeitos desejados, sobretudo porque a não criminalização de tais condutas poderia inviabilizar o processo de conscientização da violência em decorrência do gênero (PIRES, SOUZA, 2019). Segundo elas, apesar do grande comprometimento do sistema prisional com o sexismo, o uso da lei penal não deveria ser desconsiderado por completo, principalmente com a justificativa de que as mulheres vítimas de violência, em sua maioria, não pretendem ver o seu violador privado de liberdade. Para tomar a sério esse argumento é importante considerarmos algumas de suas dimensões. De um lado, esse dado pode representar que as mulheres têm absorvido as críticas ao sistema penal, mas, para chegarmos a essa conclusão é preciso cotejarmos esses dados com outros índices que medem a adesão popular a demandas punitivistas como, por exemplo, redução da maioridade penal, ampliação do excludente de ilicitude para mascarar o abuso de autoridade e os homicídios cotidianos cometidos por agentes de Estado, revisão da lei de drogas, propostas de desencarceramento, entre outras. Sem uma análise mais ampla, podemos estar diante de um discurso que banaliza a violência contra às mulheres como conduta que não deve ser vista como merecedora de intervenção pública (SOUZA, PIRES, 2019, p. 151/152). As autoras aduzem que de nada adianta as mulheres vítimas de violência não desejarem a prisão do (a) seu (sua) agressor (a), sem que haja um debate profundo acerca do racismo institucional estruturante do sistema penal, e principalmente se esse debate é afastado do tema da redução da maioridade penal. Embora esse diálogo seja bastante delicado, e que ainda não tenha convergência dentro dos movimentos feministas e abolicionistas, as autoras afirmam que deve ser investido em conscientização por meio de assistência social, e psicológica da sociedade em geral, não somente em casos de violência (SOUZA, PIRES, 2019). Gindri e Budó (2016) ao analisarem discursos de movimentos feministas na internet -conhecido como cibe feminismos -, sobre a utilização do sistema penal em sua função simbólica de proteção à violência de gênero, chegaram à conclusão que é imprescindível a intersecção entre criminologia e feminismo, sobretudo para alcançar políticas criminais emancipatórias e humanizadoras. Assim, como foi retratado na série, o sistema penal vem sendo utilizado somente como meio de controle que reproduz violências, sob um viés extremamente racista, herança do período escravocrata, conforme retratado no subcapítulo anterior. Verifica-se que durante a apuração do crime, tanto a polícia como judiciário foram coniventes com as atrocidades cometidas com os adolescentes, ao mesmo tempo em que não foram efetivas para dar qualquer amparo à vítima de violência sexual. Foi verificado, portanto, que o conceito de justiça reproduzido na série foi ambíguo, e foi cooptado por discursos racistas e sexistas, o que colabora com as teorias aqui abordadas, de que o sistema penal não está apto para tratar das violências de gênero. Isso porque o discurso do sistema prisional a partir da sua doutrina de lei e ordem ocasiona o encarceramento em massa da população negra, ao mesmo tempo em que é falho no momento da aplicação da lei, pois está estruturado em uma estrutura racista e que também reproduz violência de gênero. Posto isso, é possível concluir que não há unanimidade sobre a sua utilização do sistema penal como função simbólica para conscientização da violência de gênero dentro dos movimentos feministas e abolicionistas, apesar de ser muito debatido. Desse modo, a atual possibilidade é que não haja debates rasos sobre o tema, principalmente por se tratar de um tema muito complexo e que precisa ser aprofundado cada vez mais, para que a violência de gênero, e a estrutura racista, sexista e classista da sociedade sejam extintas. IV. # Considerações Finais Este trabalho se propôs a analisar como a série When they see us articulou as categorias raciais, de gênero e de classe no aprisionamento ilegal dos cinco adolescentes negros. Em um primeiro momento, foi abordado como a escravização dos corpos negros colaborou para a construção do estereótipo do homem negro criminoso, selvagem, e do papel da branquidade e do capitalismo no afastamento da identificação dos homens negros policiais com os adolescentes negros retratados na série. Como conclusão, foi identificado que o período pós-abolição estadunidense foi cercado da criação de mecanismos para colocar o homem negro em uma posição de selvagem e criminoso. As legislações criadas e a mídia foram identificadas como fatores que colaboraram para a reprodução desses estereótipos, sobretudo pela institucionalização do racismo, e que foram amplamente expostos na série. Isso ficou nítido com a linguagem utilizada pelos/as personagens, que explicitamente colocavam o homem negro na posição de animais, e como suspeitos no momento de abordagem pelos policiais. Além disso, foi perceptível que a reprodução do racismo institucional alcançou até mesmo os policiais negros, que durante a série agiram de forma violenta com os adolescentes negros que foram apreendidos. Isso é justificado segundo a teoria de Neusa Santos, que os homens negros em ascensão social tendem a reproduzir mecanismos de opressão com o objetivo de aproximar-se da dominância branca, apesar de também sofrerem com o racismo institucional. Na segunda parte do trabalho, foi trabalhado como sistema penal encontra-se deslegitimado, pois ao atuar de forma seletiva, não cumpre com a sua função declarada de coibir os crimes, sobretudos aqueles sexuais, pois além de perpetuar o racismo como continuum do período da escravização, se estrutura a partir do gênero e da desigualdade social. Foi possível observar que a vítima de estupro não teve nenhum amparo pelo sistema de justiça criminal. As mães dos adolescentes, mulheres negras, sofreram imensamente com as prisões ilegais, além de que tiveram de arcar com o custo de advogados e demais despesas durante o aprisionamento dos adolescentes, o que leva a crer que o sistema prisional é estruturado também pela violência de gênero. Com todos esses dados analisados na série, é possível concluir que o caso dos cinco do Central Park é um exemplo de como o sistema prisional é falho, e que toda a sua estrutura é cercada pelo racismo institucional. Ao se pensar no conceito de justiça, foi verificado que há uma ambiguidade na sua utilização, e nenhum dos grupos foi contemplado. Assim, mesmo que se pense na utilização do sistema penal com uma função simbólica para coibir a violência de gênero, qualquer debate deve ser pensado com cautela, para que esse sistema não seja legitimado, priorizando sempre o fim de toda e qualquer opressão, tendo em vista que não há hierarquia entre elas. A Critical Criminological Analysis of the Series "When they See us" and Some Considerations about the Institutional Racism * SilvioAlmeida Luiz De. Racismo Estrutural. São Paulo 2019 Sueli Carneiro. Pólen * A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Vera Regina PereiraAndrade De 2015 * O que é encarceramento em massa? Belo Horizonte: letramento JulianaBorges 2018 * Feminicídio no Brasil: uma análise crítico-feminista. 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