From Incompatibility to Incommensurability: Notes on Isaiah Berlin's Value Pluralism Jonathan Goudinho Abstract -The contemporary public debate is permeated by diverse challenges to social life, especially because of the plurality of groups and convictions that are articulated in decision-making spaces. In Western societies, because of the process of secularization, there are no more exclusive systems of values that are capable of giving full meaning to the human experience in the community. From the context of the diversity of beliefs and values, this paper research discusses the thought of the Russian-Jewish philosopher and historian of ideas Isaiah Berlin (1909Berlin ( -1997)), who developed a doctrine of value pluralism. For Berlin, a notable advocate of liberalism and one of the leading intellectuals of the twentieth century, pluralism is a principle of crucial importance for contemporary society as it postulates the coexistence of different systems of moral values and conceptions of good without trying to escape of the inevitable conflict between such values and conceptions. Berlin's formulation, situated at the intersection of political philosophy and the history of ideas, indicates that moral values can be equally valid and yet incompatible and incommensurable, resulting in conflicts that do not allow for resolution without reference to particular contexts of decision. Therefore, from a theoretical approach of a conceptual and analytical nature, we seek to interpret Isaiah Berlin's pluralistic notion, that emerges as a valid theoretical system to foster academic approaches to value conflicts within plural societies. Keywords: isaiah berlin, value pluralism, religion and politics, religion and contemporaneity, conflicts between religious and secular. I. # Introdução aõ e? novidade que uma das caracteri?ticas do mundo moderno e? o pluralismo. Trata-se de um traco irremovivel do nosso tempo. A reflexaõ sobre o pluralismo e? uma categoria-chave no percurso intelectual do filósofo político e historiador das ideias russo-judeu Isaiah Berlin (1909Berlin ( -1997)), que se tornou protagonista no campo em questaõ. Naõ e? exagero considerar, como fez Roger Hausheer (2002, p. 38), que "o pluralismo de valores de Berlin e? uma das doutrinas mais ousadas e promissoras a surgir na histo?ia recente do pensamento ocidental". Embora Berlin seja majoritariamente conhecido por sua distincaõ conceitual entre liberdade negativa e liberdade positiva, e? no campo do estudo do pluralismo que provavelmente reside a sua contribuicaõ intelectual mais importante. Para ele, reconhecido como um dos principais intelectuais do século XX, o pluralismo de valor é um princípio caro à sociedade contemporânea, que permite a coexistência pacífica de diferentes interesses, convicções e concepções do bem. A formulação do filósofo, situada no campo da teoria social e política, propõe que os valores humanos existentes nas sociedades são diversificados, frequentemente conflitantes e não combináveis, isto é, não comparáveis por meio de nenhum critério puramente racional. Os valores morais podem ser equitativamente válidos e, ainda assim, incompatíveis e/ou incomensuráveis, o que resulta em conflitos que não admitem resolução sem referência a contextos particulares de decisão. Como Noel Annan (2002, p. 14) já havia advertido, pluralismo é uma palavra pouco precisa, cujo sentido é comumente associado à aceitação de que "há muitos grupos e interesses na sociedade, e uma boa sociedade cuida para que eles tolerem a existência uns dos outros", um compromisso pragmático. De modo objetivo, contudo, pluralismo de valor é o termo que procura expressar a visão segundo a qual os valores humanos são variados em suas fontes e justificativas, o que os torna independentes uns dos outros, "não expressáveis ou conversíveis em qualquer medida comum, não classificáveis em qualquer hierarquia estável e aptos a entrar em conflitos, por vezes insolúveis" (CHERNISS, 2013, p. 44-45). Neste sentido, trata-se de um fenômeno bastante familiar aos seres humanos (RAZ, 1996, p. 179). O pluralismo de Isaiah Berlin postula que já que não é possível darmos uma resposta definitiva às questões morais e políticas, ou em realidade a toda a questão de valor, e mais ainda, já que certas respostas dadas pelas pessoas, e que estão autorizadas a fazê-lo, não são compatíveis entre si, é preciso abrir espaço para uma vida na qual os valores possam se revelar incompatíveis, de maneira que, se devemos evitar um conflito destruidor, compromissos possam ser obtidos, e um grau mínimo de tolerância, mesmo dado contra a vontade, tornar-se-á indispensável. (JAHANBEGLOO, 1996, p. 73). As noções de pluralismo permeiam o trabalho de Isaiah Berlin desde o início de sua carreira, permanecendo durante toda a vida intelectual. A primeira aparição do tema como problema de pesquisa se deu em período anterior à atividade docente, em um artigo apresentado em reunião da Aristotelian Society a.C.) 3 Outro tópico sobre o qual o filósofo se debruçou com os colegas durante o período foi o fenomenismo, na tentativa de descobrir se a experiência humana estava restrita àquela fornecida pelos sentidos ou se existia uma realidade independente desta experiência. Foi no percurso dessa investigação que para esboçar uma espécie de pluralismo metodológico, que o seguiria por toda a vida -e desembocaria em um pluralismo ético. No texto, Berlin denuncia a aplicação de métodos inadequados para a análise de qualquer traço da vida humana, como quando um moralista funda, a partir de seu arcabouço teórico, uma análise estética da moral. O filósofo argumenta que quando os padrões são retirados da sua esfera adequada e aplicados a outras indistintamente, conduzem "a uma completa confusão de palavras e valores, criando um caos, uma atmosfera nebulosa" (BERLIN, 1930, p. 492). Desse modo, conclui que não deveria ser concebível que qualquer ser humano inteligente pudesse conscientemente "negar que cada atividade se desenvolve a partir de si mesma e envolve a conformidade com seu próprio padrão privado e, portanto, requer o uso crítico de seu próprio critério peculiar" (BERLIN, 1930, p. 501). Era o primeiro indício de sua inclinação pessoal ao pluralismo. No período posterior, especialmente na segunda metade da década de 1930, Isaiah Berlin engrossou as fileiras da filosofia analítica. Ele se ocupou, com outros colegas de Oxford, da reflexão sobre a natureza do significado em relação à verdade e à falsidade, especialmente na questão da verificabilidade. O pensamento dominante nos círculos filosóficos de Oxford daquele tempo postulava a ideia de que o significado de uma proposição era o modo como era verificável: se não houvesse nenhuma maneira de verificar o que havia sido dito, então não seria possível atribuir caráter de verdade ou falsidade ao enunciado. Assim, a afirmação seria sem sentido empírico objetivo. Berlin nunca se enquadrou por completo a essa perspectiva, por considerar que as afirmações não eram "necessariamente passíveis de serem verificadas por algum critério simples arrasador" (BERLIN, 2005, p. 18). Por isso, ele costumava afirmarse mais como um herege do que um verdadeiro discípulo desta escola de pensamento. O filósofo sustentava que apesar da experiência empírica ser tudo que as palavras podem expressar -que não há outra realidade -, ainda assim a verificabilidade não é o único, nem realmente o mais plausível critério de conhecimento, crenças ou hipóteses. (BERLIN, 2005, p. 19). Berlin se deparou com o monismo presente em toda a tradição do pensamento ocidental, fator crucial para a elaboração de sua noção de pluralismo. Ele mesmo afirmava que a "suspeita de que uma grande parte da filosofia estava num caminho ilusório veio mais tarde dominar as [suas] ideias numa conexão completamente nova e diferente" (BERLIN, 2005, p. 21). Tal conexão ganhou consistência somente após a Segunda Guerra Mundial (1939)(1940)(1941)(1942)(1943)(1944)(1945), durante a qual Isaiah Berlin atuou como oficial do serviço diplomático britânico em Washington, nos Estados Unidos, e em Moscou, na então União Soviética (nesta última, no período imediatamente posterior ao conflito armado). A partir de então, o enfoque do intelectual passou a ser o significado e a aplicação da noção de liberdade e a formulação de um pensamento pluralista -em resposta ao monismo, "a tese central da filosofia ocidental desde Platão até nossos dias" (BERLIN, 2005, p. 22). # II. # A Questão Dos Valores A esta altura, é necessário clarificar o que Isaiah Berlin compreende por valor, uma vez que este é o núcleo por meio do qual todo o seu pensamento é formulado e estruturado -teórica e praticamente. Em geral, valores são considerados "produtos da mente humana, como pensamos sobre o mundo, nossas categorias conceituais e assim por diante" (DRUGGE, 2013, p. 55). O ponto de partida para a reflexão de Berlin sobre o tópico é a constatação de que "existe um mundo composto de valores objetivos [...], buscados pelos homens por eles mesmos, para os quais as outras coisas não passam de meios" (BERLIN, 1991, p. 21). A reflexão sobre o pluralismo e, em última instância, sobre os valores, é fixada por Berlin como pertencente ao campo do pensamento ético, que consiste no exame sistemático das relações que os seres humanos estabelecem entre si, das concepções, interesses e ideais a partir dos quais surgem as formas com que os seres humanos tratam uns aos outros; consiste igualmente nos sistemas de valor sobre os quais se baseiam esses propósitos humanos. As crenças referentes à maneira como a vida deveria ser vivida, ao modo como homens e mulheres deveriam ser e agir, são objetos da investigação moral; quando aplicadas a grupos e nações e, na verdade, à humanidade como um todo, são chamadas de filosofia política, que nada mais é do que a ética aplicada à sociedade. (BERLIN, 1991, p. [13][14]. A concepção berliniana de valor preconiza ideias sobre o que é bom ser e o que é bom fazer: são noções sobre que tipo de vida, que tipo de ações e a que estado de vida os seres humanos devem aspirar. Desse modo, o entendimento do nosso filósofo sobre ética fundamenta-se na sua crença na importância de conceitos e categorias éticas normativas, especialmente os valores. Isaiah Berlin não se deteve em formular uma teoria sistemática sobre a natureza dos valores, de tal maneira que sua visão sobre o assunto é extraída de seus estudos sobre a história das ideias. Ele parte do endosso da visão romântica segundo a qual os valores não são descobertos no mundo exterior, isto é, não são deduzidos ou derivados da natureza -visão que atribui a Kant e também a Hume. Antes, valores são criações humanas que derivam sua legitimidade exatamente disso. Não obstante, Berlin também considera que há determinadas características dos seres humanos que são invariáveis, constituídas ao longo da história da humanidade e que tornam certos valores importantes ou necessários. Assim, cada valor é obrigatório para os seres humanos em relação às suas próprias reivindicações e em seus próprios termos -e não em termos de qualquer outro valor ou qualquer outro objetivo. Destarte, tem-se que Berlin considera os valores como invenções humanas, mas que são objetivos. Como recordam Cherniss e Hardy (2016), há pelo menos duas considerações sobre a objetividade dos valores no pensamento de Berlin, quais sejam: A primeira é que os valores são "objetivos", pois são simplesmente fatos sobre as pessoas que os detêm -de modo que, por exemplo, a liberdade é um valor "objetivo" porque eu a valorizo e me sentiria frustrado e miserável sem pelo menos uma quantidade mínima dela. A segunda é que a crença em ou a busca de certos valores é o resultado de realidades objetivas da natureza humana -de modo que, por exemplo, a liberdade é um valor "objetivo" porque certos fatos sobre a natureza humana tornam a liberdade boa e desejável para os seres humanos. Essas visões não são incompatíveis entre si, mas são distintas. (CHERNIS; HARDY, 2016, grifos do autor). Para desenvolver sua formulação sobre o pluralismo de valor, Isaiah Berlin partiu da reflexão sobre o paradigma tradicional do Ocidente: a ideia de que todos os bens genuínos são compatíveis e, mais que isso, que acarretam ou implicam uns aos outros (BERLIN, 2002, p. 158). Tal concepção, que por vezes Berlin pontua ser anterior à Sócrates, foi emulada em diferentes épocas e perspectivas, mas quase sempre associada àquela visão preconizada por Aristóteles e que encontra excelente síntese na seguinte declaração: "o aparente e trágico conflito de certo com certo advém das inadequações da razão, não do caráter da realidade moral" (MACINTYRE, 1988, p. 142). A concepção de racionalidade subjacente a tal afirmação revela que para cada questão genuína deve haver, pelo menos em princípio, uma única resposta correta. Isaiah Berlin rejeita fervorosamente essa noção. O autor se insurge contra o compromisso elementar do pensamento ocidental, que resume em três proposições, as quais ressaltamos: (1) todas as perguntas autênticas podem ser respondidas, seguido da ideia de que (2) todas as respostas às perguntas são cognoscíveis, atrelada à suposição de que (3) todas as respostas devem ser compatíveis umas com as outras. A proposta que Berlin interpõe a tal perspectiva é a sua célebre doutrina do pluralismo de valor, que foi assim expressa pelo biógrafo intelectual do filósofo: Ele [Berlin] nega que bens genuínos, ou virtudes autênticas, sejam necessária ou verdadeiramente tais que a coexistência pacífica entre elas seja um estado possível da vida humana. Segundo Berlin, é verdade que muitos bens são rivais ou conflituosos. Além disso, Berlin nega que, ao ocorrer tamanha competição entre bens, ela é sempre passível de resolução pela aplicação de um padrão racional. Os bens humanos não são apenas frequentemente incompatíveis; eles às vezes são incalculáveis. (GRAY, 2000, p. 57). # III. # Conflitos Inevitáveis A inevitabilidade dos conflitos morais -e a agonia da escolha que deles se sucedem -está no cerne do pluralismo de Isaiah Berlin. "Que não podemos ter tudo não é uma verdade contingente, mas necessária" (BERLIN, 2002, p. 271), proclamava. O autor argumenta que os valores genuínos são muitos e podem entrar em conflito uns com os outros, o que, de fato, ocorre muitas vezes, quer seja "entre diferentes culturas, entre grupos pertencentes à mesma cultura ou entre você e eu" (BERLIN, 1991, p. 22). Quando há esse choque, isso não significa que um ou outro valor em disputa tenha sido mal interpretado ou, ainda, que um deles é mais importante que o outro. Disso decorre o nosso principal problema moral: o conflito entre bem e bem. Por isso, Berlin salienta que o mundo que encontramos na experiência comum é um mundo em que somos confrontados com escolhas entre fins igualmente supremos e reivindicações igualmente absolutas, e a realização de algumas dessas escolhas e reivindicações deve envolver inevitavelmente o sacrifício de outras. (BERLIN, 2002, p. 269). # Do que se depreende que esses choques de valores constituem a essência do que eles [os valores ] são e do que nós somos. Se nos dizem que tais contradições serão dissipadas em um mundo perfeito no qual todas as coisas boas podem, em princípio, ser harmonizadas, então devemos responder aos que afirmam isso que o sentido dos termos denotativos dos valores conflitantes não é o mesmo para nós e para eles. Devemos dizer que se encontra totalmente fora de nossa compreensão um mundo no qual não esteja em conflito aquilo que vemos como valores incompatíveis. (BERLIN, 1991, p. 23). A tese defendida por Berlin, portanto, postula que "qualquer moralidade complexa reconhece bens que são em suas próprias naturezas não compatíveis" (GRAY, 2000, p. 59). Ou seja, a possibilidade da incompatibilidade entre valores está atrelada à ideia segundo a qual os bens conflitantes possuem qualidades intrínsecas. Por conta disso, alguns valores mantêm relação tão próxima que transformam a adesão a um em uma exclusão automática de outro. "A liberdade total para os lobos é a morte dos cordeiros", reiteradamente afirmava Isaiah Berlin (1991, p. 22), que concluía dizendo que "a liberdade completa é incompatível com a equanimidade [igualdade, em melhor tradução] total" (BERLIN, 2016, p. 62). Não obstante a isso, a incompatibilidade de valores também é derivada da atitude dos indivíduos em relação aos próprios valores, isto é, está ligada à natureza humana. Dentre os seres vivos, apenas os humanos enfrentam qualidades intrínsecas de alguns valores que são incompatíveis. Assim, os conflitos resultantes do embate "entre concepções justas quanto a uma vida boa e [outros] valores justos devem ser reconhecidos como características inevitáveis de uma compreensão adequada da moralidade e da política" (KEKES, 1993, p. 21). A implicação prática dessa concepção é que o conflito -e a agonia dele decorrente -não pode ser eliminado da vida dos seres humanos, de tal maneira que "a necessidade de escolher entre reivindicações absolutas é, portanto, uma característica inevitável da condição humana" (BERLIN, 2002, p. 270): No final, os homens escolhem entre valores supremos; e assim o fazem porque sua vida e seu pensamento são determinados por categorias e conceitos morais fundamentais que são, pelo menos ao longo de grandes extensões de tempo e espaço, uma parte de seu ser, pensamento e senso de identidade -uma parte do que os torna humanos. (BERLIN, 2002, p. 272). # IV. A Incomensurabilidade Dos Valores Os fins últimos perseguidos pelos indivíduos podem não ser apenas incompatíveis. Eles também podem ser incomensuráveis. Essa é a segunda dimensão da doutrina pluralista de Berlin, amplamente reconhecida como a contribuição central de seu pensamento. 4 A discussão sobre a incomensurabilidade dos valores tem ganhado destaque ao longo das últimas décadas, especialmente após as investigações de Isaiah Berlin. 5 Assumir que dois ou mais valores são incomensuráveis não significa dizer, em absoluto, que haja incompletude ou imperfeição entre eles. Antes, 4 A propósito do uso dos termos incompatibilidade e incomensurabilidade de valores, é pertinente ressaltar que se tratam de fenômenos distintos. Há bens incompatíveis que são comensuráveis e há bens incomensuráveis que são compatíveis. Esse é um pressuposto importante para a reflexão sobre a temática, e que vai se tornando mais claro à medida que os conceitos são melhor esclarecidos. 5 John Gray presta um importante serviço ao elencar, na sua obra sobre o pensamento de Isaiah Berlin, algumas das contribuições mais esclarecedoras em relação à conceituação e implicações de incomensurabilidade de valores. Para verificar a lista bibliográfica completa indicada por Gray, da qual nos valemos para o desenvolvimento deste trabalho, cf. GRAY, 2000, p. 205-206. Volume XXI Issue VI Version I 46 ( ) indica que neles existe a verdade última, e que "não há nada além por detrás dela, nem ela é um sinal de imperfeição" (RAZ, 1988, p. 327). O filósofo israelense Joseph Raz ofereceu um importante esclarecimento a esse respeito, destacando a irredutibilidade inerente à concepção de incomensurabilidade, segundo a qual em uma visão monista-redutora, quando se trocam os prazeres (e as ansiedades) de uma vida familiar por uma carreira como a de marinheiro, a pessoa está obtendo, ou esperando obter, a mesma coisa da qual está desistindo, seja felicidade, prazer, desejo-satisfação ou outra coisa. Enquanto planejar corretamente e conseguir executar os planos, não haverá perda de nenhum tipo. Abandona-se o prazer menor que se poderia obter na vida em família pelo prazer maior da vida no mar. Se o pluralismo de valores estiver correto, tal visão está totalmente errada. O que se perde é um tipo diferente do que se ganha. Mesmo no sucesso há uma perda e, comumente, não há sentido no julgamento de que se ganha mais do que se perde. Quando alguém se depara com opções valiosas e escolhe com sucesso uma delas, então simplesmente escolheu um modo de vida em vez de outro, sendo ambos bons e não suscetíveis à comparação de grau. (RAZ, 1996, p. 179). Desse modo, dizer que alguns valores são incomensuráveis é afirmar que eles não podem ser sujeitos à comparação. Neste sentido, portanto, incomensurabilidade pode ser traduzida por incomparabilidade, tendo como implicação a "realidade de uma diversidade humana definitiva de formas incomparáveis de excelência ou florescimento humanos (e de uma igual diversidade de males incomparáveis)" (GRAY, 2000, p. 68-69). Essa leitura mais radical e drástica da incomensurabilidade afirma que não há "moeda comum" para a classificação dos bens últimos. Assim, "cada valor, sendo sui generis, não pode ser julgado em relação a nenhum outro valor, porque não há nada em relação ao qual ambos possam ser julgados ou medidos" (CHERNIS; HARDY, 2016). De tal percepção depreende-se que, dentro de qualquer moralidade ou código de conduta humana, poderão ser desencadeados conflitos entre os valores últimos dessa moralidade ou código que não serão passíveis de mediação por meio do raciocínio teórico ou prático. Nas democracias ocidentais, por exemplo, bens como liberdade e igualdade, justiça e bem-estar "frequentemente [se] colidem na prática, [porque] são de natureza inerentemente rival, e seus conflitos não podem ser arbitrados por nenhum padrão globalizante" (GRAY, 2000, p. 57-58). Cada um dos valores caros aos seres humanos também podem ser arenas de conflito e irredutibilidade dentro de si mesmos. Isto é, considerando que algumas virtudes humanas são complexas e inerentemente plurais, elas podem ser palcos para uma espécie de subconflitos, já que muitos são constitutivamente incomensuráveis. Se liberdade e igualdade não são bens totalmente harmoniosos, é possível separá-las e encontrar, em cada uma, duelos de valor. Ora, não seria exagerado afirmar, para evocar um exemplo mencionado por Isaiah Berlin, que a liberdade de informação e a de privacidade se entrechoquem. Afinal, se a primeira for levada à instância máxima, certamente limitará o escopo de realização da segunda. É igualmente possível identificar o mesmo conflito a partir da igualdade, se levarmos em conta que igualdade de oportunidade não é permanentemente compatível e comparável à igualdade de resultados. Ampliando a percepção do fenômeno pluralista, chega-se a um outro aspecto das noções de incompatibilidade e incomensurabilidade dos valores, segundo o qual diferentes formas culturais vão gerar diferentes virtudes e moralidades. Essas, por sua vez, serão naturalmente refletidas em distintas acepções do bem -neste caso, comum, uma vez que dizem respeito à sociedade. Assim, "se existem muitos e genuínos valores competitivos, então, quanto maior a medida em que uma sociedade tende a ser de valor único, mais valores genuínos ela negligencia ou suprime" (WILLIAMS, 2013, xxxvii). Nisto reside o "tipo de incomensurabilidade aplicável a bens que são ingredientes constitutivos em modos ou estilos de vida inteiros" (GRAY, 2000, p. 58), como os engendrados por cosmovisões religiosas ou secularistas -para fazer menção a exemplo pertinente a esta dissertação. As formulações de Isaiah Berlin, é apropriado assinalar, são encontradas em contextos históricos, como o nosso, em que tradições culturais não são completamente individuadas e interpenetram uma a outra, possuindo uma herança plural de moralidades complexas. De fato, [...] nossa própria sociedade abriga uma diversidade de moralidades altamente complexas e pluralistas cujos conflitos são frequentemente travados em vidas individuais. (GRAY, 2000, p. 61). V. # Considerações É a partir do panorama examinado que se torna possível sustentar que o pluralismo de Isaiah Berlin nega "que possa ser formulada uma moralidade política coerente expressa num único princípio ou num sistema ordenado de princípios" (GRAY, 2000, p. 78). Sob uma perspectiva pluralista, as pessoas e as sociedades estão sujeitas a um desacordo razoável e permanente, que opta por acomodar a discordância em relação ao bem a endossar uma visão particular e última de bem. A implicação prática desse compromisso não tem a ver com certa anomia em relação aos bens válidos. Ao contrário, os pluralistas aceitarão que alguma concepção do bem comum é inevitável, uma vez que as instituições básicas de qualquer sociedade refletirão alguma seleção geral e classificação de valores -qualquer sociedade viável terá alguma forma ética e política geral em termos dos valores que enfatiza. No entanto, os melhores arranjos políticos a partir de uma perspectiva pluralista irão incorporar uma concepção do bem comum que será maximamente acomodada para concepções mais específicas. (CROWDER, 2008, p. 935, tradução nossa). Do que se conclui, em exposição do nosso filósofo, que o pluralismo, com a dose de liberdade "negativa" que acarreta, parece-me um ideal mais verdadeiro e mais humano do que as metas daqueles que buscam nas grandes estruturas disciplinadas e autoritárias o ideal do autodomínio "positivo" por parte de classes, povos ou de toda a humanidade. É mais verdadeiro, pois pelo menos reconhece o fato de que as metas humanas são muitas, nem todas comensuráveis, e em perpétua rivalidade umas com as outras. Supor que todos os valores possam ser graduados numa única escala parece-me falsificar nosso conhecimento de que os homens são agentes livres, representar a decisão moral como uma operação que uma régua de cálculo poderia, em princípio, executar. [...] É mais humano porque não priva os homens (como o fazem os construtores de sistema), em nome de algum ideal remoto ou incoerente, de muito que eles têm considerado indispensável para sua vida como seres humanos que imprevisivelmente se transformaram a si mesmos. (BERLIN, 2002, p. 272, grifos do autor). Do projeto intelectual de Isaiah Berlin podemos extrair considerações de importância crucial para a atualidade, tais como: a inviabilidade de um grupo reivindicar o domínio sobre outro ou mesmo a hegemonia sobre a definição do que é o bem comum; a existência de dilemas éticos reais, em virtude de diferentes soluções morais, que não são facilmente solucionáveis; e a aceitação de diversos conjuntos de valores dentro de uma sociedade, o que certamente tem implicações no debate público, no exercício político e na elaboração de políticas públicas -já que não há apenas uma visão "oficial" do que constitui o bem comum. Os desafios da convivência social talvez sejam uma das razões pelas quais a obra de Berlin tem despertado maior interesse de leitores, acadêmicos ou não, ao redor do mundo nos últimos anos. Há um vasto campo de possibilidades de estudo pela frente. Volume XXI Issue VI Version I 48 ( ) No ensaio, Berlin usa como epígrafe um fragmento do livro 1 da Ética a Nicômaco, principal obra de Aristóteles no campo da ética, que aqui transcrevemos: "Ora, como são muitas as ações, artes e ciências, muitos são também os seus fins" (ARISTÃ?"TELES, 1991, s/p). Year 2021 F © 2021 Global Journals From Incompatibility to Incommensurability: Notes on Isaiah Berlin's Value Pluralism Year 2021 F From Incompatibility to Incommensurability: Notes on Isaiah Berlin's Value Pluralism © 2021 Global JournalsFrom Incompatibility to Incommensurability: Notes on Isaiah Berlin's Value Pluralism * Estudos sobre a humanidade: uma antologia de ensaios NoelAnnan ;Prefácio IsaiahBerlin Companhia das Letras HenryDe Hardy E Roger Hausheer RosauraTradução De Eichenberg São Paulo 2002 * A força das ideias. Organização de Henry Hardy IsaiahBerlin Companhia das Letras São Paulo 2005 Tradução de Rosaura Eichenberg * Against the Current: Essays in the History of Ideas IsaiahBerlin Henry Hardy. 2. ed. Princeton and Oxford 2013 Princeton University Press * Estudos sobre a humanidade: uma antologia de ensaios IsaiahBerlin Companhia das Letras HenryDe Hardy E Roger Hausheer RosauraTradução De Eichenberg São Paulo 2002 * Limites da utopia: capítulos da história das ideias. Organização de Henry Hardy. Tradução de Valter Lellis Siqueira IsaiahBerlin Companhia das Letras São Paulo 1991 * Some Procrustations IsaiahBerlin May. 1930 52 Oxford Outlook, Oxford * Uma mensagem para o século XXI. Belo Horizonte: Editora Âyiné IsaiahBerlin 2016 * The Development of Isaiah Berlin's Political Thought JoshuaLCherniss Mind Its Time 2013 Oxford University Press Oxford * Stanford Encyclopedia of Philosophy, Stanford, 21 set Joshua;Cherniss HenryIsaiahHardy Berlin 2016 * value pluralism and the common good: a reply to Brian Trainor GeorgeCrowder Berlin 10.1177/0191453708094730> Philosophy & Social Criticism, v 34 8 Oct. 2008 * Tradução de Fábio Fernandes JohnIsaiahGray Berlin 2000 Rio de Janeiro: DIFEL * Estudos sobre a humanidade: uma antologia de ensaios RogerHausheer ;Introdução IsaiahBerlin Companhia das Letras HenryDe Hardy E Roger Hausheer RosauraTradução De Eichenberg São Paulo 2002 * Isaiah Berlin: com toda liberdade. Tradução de Fany Kon RaminJahanbegloo 1996 Editora Perspectiva São Paulo * The Morality of Pluralism JohnKekes 1993 Princeton University Press Princeton * AlasdairWhoseMacintyre Justice? Whose Rationality 1988 University of Notre Dame Press Notre Dame * Ethics in the Public Domain: Essays in the Morality of Law and Politics JosephRaz 1996 Clarendon Press Oxford * The Morality of Freedom JosephRaz 1988 Clarendon Press Oxford * Concepts and Categories: Philosophical Essays BernardWilliams Henry Hardy. 2. ed. Princeton and Oxford 2013 Princeton University Press Introduction