Letters to the Fight: The Liga Newspaper and its Sayings about/to the Peasant's Education Resumo-Ocupamo-nos, neste trabalho, dos modos de dizer para/sobre os camponeses no seu movimento de educação/instrução para a luta, que se materializam em recortes do Jornal Liga. Vamos trabalhar, a partir desses recortes, com vistas a compreender os imaginários que se colocam em jogo nesse processo de dizer o camponês e a necessária elevação de sua consciência, observando, de modo especial, a insistência na necessidade de conhecer o camponês e sua forma de vida para, então, inscrever novas trajetórias de sentido acerca desses sujeitos e sua forma de ) Abstract-In this paper, we worked on the modes of saying to or about the peasants in their movement of education and instruction for fighting, which are materialized in clippings of theLiganewspaper. Based on these clippings, we will work in order to understand the imaginaries that are implicated in this process of saying the peasant and the necessary raise of their awareness, especially observing the insistence of knowing the peasant and their way of life in order to recreate new sense paths regarding these subjects and their way of existence, which allows them to become subjects for the fight. These reflections are based on notions from the theoretical framework of Pecheux's Discourse Analysis, which guides us through the work of describing and interpreting the setting of the peasantry's discourse in Brazil between 1955 and 1964. # I. Introdução este trabalho, retomamos discussões realizadas em um artigo anterior (SOUZA; DE NARDI, 2019) para lançarmos um olhar sobre os modos de dizer a educação/instrução do camponês no contexto da Liga Camponesa de Galileia, movimento que entendemos como parte de processos de resistência contra práticas sociais que oprimem o camponês. Este trabalho é parte de um projeto de pesquisa mais amplo que tem como propósito analisar e compreender os modos de dizer sobre os camponeses e sua luta nos discursos de/sobre a Liga de Galiléia 2 2 Este trabalho, como outros que temos produzido, são recortes da pesquisa que vem sendo realizada, como trabalho de Doutoramento de Fabiana F.N. Souza, sob a orientação da Professora Doutora Fabiele S. De Nardi (UFPE). Nessa pesquisa investigamos os sentidos construídos sobre o camponês e suas lutas através das Ligas Camponesas compreendidas como uma resposta aos anseios dos camponeses às condições, sócio-político-econômicas desfavoráveis em que eles viviam. Isso se mostra para nós nas páginas dos Jornais Diário de Pernambuco e Liga -o primeiro materializa o discurso hegemônico, que criminaliza as práticas das Ligas Camponesas e este traz as vozes do campesinato, que furam o discurso hegemônico e chamam camponeses, intelectuais, estudantes para lutar pela terra. , movimento inscritos em um longo processo histórico que marca a trajetória de luta dos camponeses no Brasil. Nossas atenções, neste trabalho, portanto, voltar-se-ão para a Liga Camponesa de Galileia, especificamente, sobre os modos de dizer para/sobre os camponeses no seu movimento de educação/instrução para a luta, compreendido como forma de livrar-se da tutela dos latifundiários em busca de sua autonomia como cidadãos. Para tanto, analisaremos uma matéria do Jornal Liga intitulada Camponês é Camponês e o boletim Guia do Camponês. Iniciamos este artigo retomando elementos que conformam as condições de produção (em seu sentido amplo) dos discursos em análise. Num primeiro momento, apresentamos a classe camponesa e suas características a partir de uma breve passagem pela distinção entre trabalhadores rurais e camponeses, bem como sobre os modos de compreensão do campesinato em sua relação com o capital. No tópico seguinte, ocupar-nos-emos de descrever a Liga de Galileia, apontando, ainda que de forma sucinta, elementos de sua criação e os objetivos a que se propôs, com destaque para a preocupação expressa com a alfabetização dos camponeses. Buscamos, neste tópico, trazer à tona elementos históricos da constituição da Liga com vistas a que se possam compreender, de forma mais consistente, os elementos que sustentam a produção dos discursos em análise, que chegam até nós mediante sua materialização no jornal Liga, de que são parte os recortes que adiante analisaremos. No quarto tópico de nosso trabalho, que intitulamos O Jornal Liga e os Boletins: a letra como instrumento de luta, é que passaremos a analisar os recortes selecionados. Retirados do Jornal Liga e de seus Boletins, esses recortes, conforme procuraremos mostrar, permitem que olhemos para a importância atribuída, nos discursos da Liga, à educação/instrução do camponês e os modos de dizer essas práticas, os quais estão constituídos por uma imaginário sobre o camponês e aquele a quem se lhe atribui o dever de instruí-lo. # II. Sobre os Camponeses: Quem São os Sujeitos Com Quem se Fala? A classe camponesa... "toda ela se encontra manietada pelo regime de servidão, movendo-se dentro do mesmo cenário trágico, de onde só emerge para ir habitar o mocambo, a favela, a maloca, o prostíbulo, o hospital, o cárcere e, por fim, o cemitério." (JULIÃO,1962). As palavras acima foram escritas por Francisco Julião 3 3 Francisco Julião Arruda de Paula, advogado, Deputado estadual de Pernambuco pelo Partido Socialista Brasileiro, tornou-se defensor da Liga de Galileia (sobre a qual discorreremos com mais detalhes no próximo tópico deste trabalho) depois de ter sido procurado por camponeses que estavam sofrendo perseguição do dono das terras do Engenho Galileia no Agreste de Pernambuco. O assédio ocorria por conta da criação da Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco, logo chamada de Liga Camponesa de Galileia, acusada de congregar os camponeses a fim de promover agitação no campo. Francisco Julião acompanhou intensamente a luta dos camponeses, no decorrer de nove anos de luta, juntamente com outros intelectuais e políticos, com o intuito de difundir as Ligas pelo Brasil inteiro para ver realizada uma Reforma agrária radical. na década de 1960, e carregavam a denúncia de quem, por acompanhar a rotina de exploração vivida pelos camponeses, precisava fazer ver a trajetória de quarenta e cinco milhões de seres humanos. Esse percurso revela o lugar de condenação imposto aos camponeses que, em meados do século XX, nasciam como que marcados para morrer. Tal situação de exploração, para que pudesse se perpetuar, contava com o silêncio e a conivência do Estado e com o silenciamento dos camponeses, sob pena de serem expulsos de suas casas, terem suas plantações destruídas e até perderem suas vidas. Diferentemente do trabalhador rural, cujos direitos eram previstos em lei, os camponeses, insistentes em se manterem no cultivo da terra para sustentar suas famílias, habitavam num espaço movediço dentro do regime societário capitalista. Devemos, porém, registrar que a exploração, o abandono e as injustiças não são uma condição exclusiva dos camponeses, como veremos a seguir. Os trabalhadores rurais são aqueles que recebem salários dos seus empregadores, normalmente, donos de fazendas, pelo trabalho que desempenham na terra, assim como "um trabalhador industrial é pago para manter em funcionamento um alto-forno ou uma máquina de fiar" (WOLF, 1970 No artigo 2º do estatuto, definia-se trabalhador rural como "toda pessoa física que presta serviço a empregador rural ou prédio rústico, mediante pagamento de salário pago em dinheiro ou In natura, ou parte In natura e parte em dinheiro.". Essa Lei estendeu para os trabalhadores rurais os mesmos direitos dos trabalhadores urbanossindicalização; salário mínimo; férias; repouso semanal remunerado; aviso prévio e indenização. A eles, acrescenta-se a proteção às mulheres e aos menores. A resposta dada pelos proprietários de terras a essa determinação foi a demissão em massa dos trabalhadores e a contratação de trabalhadores temporários. Nessa correlação de forças entre o Estado que normatiza e o Latifúndio que resiste às leis, resta a massa de trabalhadores possuidora de direitos que não se efetivam na prática. Se observarmos a situação dos camponeses, a eles, não resta sequer, como já afirmamos, o amparo das leis, já que não fazem parte dessa engrenagem que polariza o trabalhador e o grande proprietário rural. A dinâmica do campesinato se distingue da condição do trabalhador rural, basicamente, por incorporar: a) A propriedade rural familiar como unidade básica da organização econômica e social; b) A agricultura como principal fonte de sobrevivência; c) A vida em aldeia e a cultura específica das pequenas comunidades rurais; d) A situação oprimida, isto é, a dominação e exploração dos camponeses por poderosas forças externas. Vemos, pois, que o camponês necessita controlar os próprios meios de produção (e isso inclui a posse da terra), tendo em vista uma economia de subsistência, independentemente do regime societário no qual ele esteja inserido (SHANIN, 2005). No regime capitalista, ele está exposto a categorias como salário e lucro, (do qual ele está apartado em sua essência) e é nesse regime que a proletarização do camponês é iminente. Para Marx (Apud SHANIN, 2015), a dissolução das unidades de produção familiares camponesas seria uma consequência natural do desenvolvimento capitalista, alcançada através da reestruturação da sociedade em duas classes fundamentais -a burguesia e o proletariado. Importa-nos enfatizar que havia uma previsão dos marxistas para a extinção do campesinato. Marx considerava que o aprofundamento do capitalismo seria inevitável, consequentemente, só haveria espaço para a produção de trabalhadores assalariados e de capital. Esse prognóstico, no entanto, não se consumou em relação aos camponeses. A sua existência e persistência evidenciam que a capacidade dos grandes centros capitalistas não transformaria o modo de vida do campesinato. Não queremos com isso afirmar que a proletarização não seja um processo digno de nota, no entanto não foi totalizante. A sociedade não se resumiu à polarização entre burguesia e proletariado, esses conviveram e convivem com o campesinato portador de uma lógica própria de vida, centrada na satisfação calórica de seu núcleo familiar e na constituição de excedentes 5 5 Segundo WOLF (1970), existem dois conjuntos de imperativos sociais para os quais os camponeses precisam alocar excedentes. O fundo cerimonial e o fundo de aluguel. O primeiro consiste nas que são imperativos sociais (WOLF, 1970, p. 20). Ou seja, os camponeses, mesmo sob certas condições, que os marginalizam, não se dissolvem, nem se diferenciam "em empresários capitalistas e trabalhadores assalariados..." (SHANIN, 2015, p. 58). Eles continuam a existir, adaptando-se à economia capitalista da qual passam a fazer parte. É nesse sistema societário que o campesinato enfrenta a expropriação e a privação da terra como o maior obstáculo para se manterem camponeses. Guimarães (1963) chama a nossa atenção para os artifícios utilizados pelos latifundiários com a finalidade de manter os camponeses privados de terras próprias para cultivar. Ressalta a expropriação como um desses mecanismos, ao citar Rocha Pombo, pontuando que, desde o século XVII, os camponeses que detinham poucas terras e uma "engenhoca" para fazer aguardente e farinha foram proibidos, por decreto, de produzirem a aguardente. A farinha, produto de pouco valor agregado, não conseguia dar o sustento às famílias de camponeses. O autor afirma (GUIMARÃES, 1963, p. 46) que o decreto visa a proteger o mercado consolidado da aguardente importada, assim como fazer com que a plantação de cana dos camponeses, em vez de ser beneficiada em suas próprias terras, sirva como insumo a ser negociado com os grandes latifundiários. Estes formam cartéis entre si para pagar um preço baixo ao produtor, que acaba por se endividar com grandes proprietários e são, por isso, obrigados a vender suas terras. O efeito perverso, com uma roupagem de caridade dos senhores, consiste, enfim, em permitir que o camponês fique nas terras, na qualidade de rendeiros, nessa situação, serão obrigados a pagar aluguel ao latifundiário das terras que cultivar. A privação das terras aos camponeses também foi uma artimanha utilizada politicamente pelo próprio Estado, que defendia os interesses da aristocracia rural. Eles agiam por meio de princípios que norteavam as ações dos fidalgos desde à época do Brasil-colônia e que Walkefield (Apud GUIMARÃES, 1963, p. 49) chamou de "colonização sistemática". Esta se fundava no princípio de que as pessoas pobres não deveriam ter acesso às terras virgens, para isso era necessário pô-las à venda por um preço impagável pelos camponeses mais carentes. O receio dos latifundiários era que os homens e mulheres mais capazes se reservas a serem direcionadas para que se mantenham as relações sociais com seus companheiros, por exemplo, as reservas para a manutenção de contato com famílias diferentes para que se realizem os casamentos. Já o fundo de aluguel, que é impulsionado pela existência de uma ordem social em que se verificam os camponeses pobres e os detentores da terra, consiste nas reservas feitas a fim de que se pague pela terra utilizada para o cultivo, o que resulta em perda para o camponês e ganho para os latifundiários, ou ainda, "...o fundo de aluguel levantado pelo camponês é parte do 'fundo de poder' através do qual os dominadores se alimentam." (WOLF, 1970, p. 24). tornassem produtores independentes, e, assim sendo, não se colocassem à disposição dos latifundiários como trabalhadores de sua propriedade (GUIMARÃES, 1963). "Para assegurar reservas de braços disponíveis, convinha aos senhores, portanto, estabelecer um preço suficientemente alto a fim de que a terra não pudesse ser adquirida com facilidade pelos pobres do campo.". (Ibidem, p. 49). Os latifundiários, afirma Guimarães (1963), usavam todos os artifícios para impedir que os camponeses, "massas humanas oprimidas...que se agregavam aos engenhos e fazendas" (Ibidem, p. 45), pudessem ali se fixar permanentemente. No entanto, urge observar que, como a extensão de terras dos latifundiários era maior do que a capacidade de cultivo dos membros de família, eles propunham aos camponeses sem terras que se sustentassem pela inserção de sua mão de obra, assim como pela dos seus filhos como parceiros 6 Não faltam nomeações que se façam corresponder aos mais diversos modos de exploração do camponês. Ser considerado morador-de-condição ou, simplesmente, morador, por exemplo, diferenciavase do regime de parceria e consistia na assunção de dois dias semanais de trabalho gratuito para o latifundiário em troca da moradia no sítio. Nos demais dias, o camponês, além de poder cultivar as terras para . Conta-nos Julião (1970, p. 25) que "a parceria é uma modalidade de exploração do campesinato cuja origem se perde na noite dos tempos. Antecede o feudalismo propriamente dito e lhe sucede.". Apresenta modalidades que variam de acordo com a região do país, o tipo de lavoura e a "boa vontade" do proprietário, que determina, em geral a meação, a terça e a quarta como regra de contrapartida pela ocupação de suas terras. A metade de todos os ganhos, a terça ou a quarta parte são ajustes iniciais que, não raras vezes são alterados ao bel-prazer dos proprietários. Nessa "parceria", os latifundiários ditavam as normas da negociação e, os camponeses acolhiamnas, assim como a todas as suas consequências, afinal, uma vez firmados os acordos, os subordinados eram obrigados, por exemplo, a consumir no barracão da fazenda, cujas contas eram feitas para subtrair do camponês mais dinheiro do que ele devia; os donos da terra ainda se davam ao direito de colocar o seu gado para consumir a forragem (palha do milho, rama de fava, folha e maçãs verdes do algodão herbáceo) dos camponeses no fim da colheita. Essa forragem, se pudesse ser vendida pelo camponês, ajudaria a matar a sua fome. ele disponibilizadas, podia trabalhar para o engenho do proprietário (se fosse o caso) e, assim, ter uma remuneração, que se chamava ganho (LANNA, 1995). Outra forma de os camponeses prestarem serviço aos latifundiários era através do Foro, que "corresponde à quantia em dinheiro que o camponês paga pela renda do sítio." (JULIÃO, 1970, p. 28). Essa quantia era paga uma vez ao ano, geralmente em dinheiro, "e em alguns casos também na forma de produtos agrícolas." (LANNA, 1995, p.86). O foreiro era considerado, dentre todos, o trabalhador com mais autonomia. Sua independência era proveniente do fato de sua prestação com o proprietário ser, em tese, monetária. Isso lhe dava o direito, inclusive, de cultivar áreas maiores que a dos moradores (Ibidem). Não podemos deixar de mostrar que, independentemente da modalidade de organização na prestação de serviços ao latifundiário, a exploração e a falta de garantias para os camponeses faziam-se sempre presentes nessa relação sob a forma, por exemplo, de despejos dos foreiros, moradores e parceiros; de aumento do foro e, principalmente, do cambão. Este instituto consistia em impor aos camponeses certo número de dias a serem trabalhados, gratuitamente, fazendo o que os donos das terras designassem -limpeza de açudes; conservação de estradas; trabalhos nas lavouras dos proprietários. Estes, ao imporem o tipo do serviço e a quantidade de dias trabalhados, faziam-no usando o pretexto de que o cambão trazia benefícios coletivos. A revolta contra o cambão foi o primeiro lampejo de incômodo e indignação que partiu dos foreiros, ao julgarem que, se pagavam o foro aos donos das terras, trabalhar de graça para eles seria uma humilhação, um vexame (JULIÃO, 1970). O cambão consistia no menor dos problemas que o camponês enfrentava na sua relação com os donos da terra. Se atingia, no entanto, o pudor do camponês, envergonhando-o, eis uma forma contundente de "acender a consciência do camponês e transformá-lo num animal político." (Ibidem, p. 29). Motivos para uma revolta camponesa se avolumam, contudo envolver-se numa luta consistente e duradoura contra o que os oprimia era custoso. Eles sempre foram alijados de todo processo de tomada de decisão que não envolvesse diretamente as suas lavouras. Consequentemente, calar-se e aceitar a moradia, as terras para plantar -mesmo diante de toda contrapartida que lhes era exigida -considerava-se uma dádiva num cenário de controle da posse da terra pelos latifundiários e um enorme contingente de homens, mulheres e crianças sem casa e sem terras. # III. # A Liga Camponesa de Galileia Mesmo que o camponês seja apontado na sociedade como tardio em se manifestar contra as injustiças que pesam sobre si, a história nos mostra diversos movimentos de resistência do campesinato brasileiro. O surgimento da Liga Camponesa de Galileia pode ser lido como um desses gestos de resistência dos camponeses pernambucanos do município de Vitória de Santo Antão em Pernambuco. Diz-nos Julião (1962) que a Liga surgiu como consequência da criação da Sociedade Agrícola e pecuária dos Plantadores de Pernambuco (SAPPP), criada, segundo ele, por iniciativa dos próprios camponeses do Engenho (de fogo morto) Galileia, como uma sociedade de ajuda mútua. Há, no entanto, outras visões sobre a criação da Liga, que apontam um antigo líder comunista José dos Prazeres como responsável pela congregação de camponeses, em litígio com latifundiários, a fim de que se organizassem para lutar por justiça no campo. Depois da criação da SAPPP, tornaram-se recorrentes as chamadas à delegacia; as arbitrariedades policiais; o aumento exorbitante do foro; as tentativas de despejo dos foreiros. Resta, então, aos camponeses buscar ajuda na capital. É nessa busca que os foreiros se encontram com o advogado Francisco Julião -que se torna, posteriormente, um fervoroso defensor da Liga de Galileia -e, em seguida, com alguns parlamentares que passaram a lutar contra as arbitrariedades policiais cometidas contra os foreiros do Engenho. Conquanto não haja unidade na versão sobre sua origem, a existência da Liga de Galileia e das Ligas vindouras são entendidas: Como organização, se caracterizam pela forma centralizada de atuação. Trata-se de uma associação, o nome pouco importa, que organiza delegacias em qualquer lugar onde haja camponeses. A sede central deve ficar na capital do Estado ou na maior cidade da região em que se funde. Porque aí estão a classe operária, os estudantes, os intelectuais revolucionários, a pequena burguesia, uma justiça mais avançada ou menos reacionária do que aquela que se deixa sufocar, numa cidadezinha do interior, sob o peso do latifúndio. (JULIÃO, 1962, p. 47) Embora Julião tenha expressado que "o nome pouco importa", é pelo nome que os processos de luta pela terra e de igualdade por direitos se inscrevem na história, para significar. É pelo nome que se faz eco, e são os ecos produzidos pelo uso da palavra "Liga" que ditam o efeito de sentido nessa passagem de SAPPP para Liga Camponesa de Galileia. O imaginário (dos detentores do poder) sobre a Liga dos comunistas, correspondendo à União operária criada em meados do século XIX 7 7 A união de trabalhadores, que se formou por volta de 1848, composta, principalmente, de artesãos alemães exilados em outros países da Europa, constituía a Liga dos Justos. Contrapunha-se ao socialismo que, à época, era considerado uma doutrina burguesa, pois pregava diversas manobras reformistas dentro do sistema de exploração capitalista. Alinhava-se com os comunistas que, por sua vez, estavam a favor da derrubada revolucionária da ordem existente e da construção de uma sociedade igualitária. A Liga dos Justos, ao , projeta-se nas ações dos oprimidos em busca de reparação contra injustiças. Portanto, a criação de sociedades, associações, por suscitar o medo da classe dominante de perder sua propriedade e, imaginariamente, vincular-se ao esfacelamento da estrutura da sociedade capitalista, corresponde ao que um dia, consolidou-se como uma Liga: lugar de perigo, desordem, ameaça? A Liga de Galileia tinha como objetivos imediatos -segundo Julião (1962) -formar um fundo para adquirir caixões de madeira destinados, principalmente, às crianças, cujo índice de mortalidade era assustador; obter auxílio governamental de assistência técnica; adquirir sementes, adubos e instrumentos agrícolas para os foreiros e, principalmente, fundar uma escola primária para que todos pudessem se alfabetizar. À época, em Galileia, já viviam 140 famílias, totalizando mais de 1.000 pessoas no engenho. A Constituição de 1946 (vigente em 1955, ano da fundação da Liga de Galileia) no seu artigo 168, inciso III, previa a obrigatoriedade da oferta de ensino gratuito nos estabelecimentos industriais, comerciais e agrícolas com mais de cem servidores, mas o dono do Engenho Galileia descumpria a constituição. No que se refere ao aspecto educacional, a educação formal é a primeira bandeira de luta levantada pelas Ligas Camponesas. Alfabetizar os camponeses é pré-requisito para o acesso ao universo letrado. A partir daí, cria-se a possibilidade de sua instrução para a luta contra o imperialismo, contra as imposições do latifúndio e contra o regime capitalista. Julião (2012) afirmava: Elevar o nível de consciência das massas deve ser a nossa maior preocupação. Dando-lhes consciência, aprimora-se a sua organização, fortalece-se a sua unidade. Quanto mais crescer a consciência política dos camponeses e operários, mais resistente será a aliança operário-camponesa, que é a força básica da luta pela libertação nacional. ( Fundar uma escola primária para que todos pudessem se alfabetizar. Que esse tenha sido um dos objetivos primeiros das ligas enquanto organização e uma de suas bandeiras de luta não é questão sem importância quando pensamos, ainda hoje, nas contradições do sistema educativo brasileiro, seus furos e mecanismos de exclusão. Se segue sendo entre nós uma ferida aberta o analfabetismo de uma parcela considerável de nossa população, não é de se estranhar que se haja incumbido a Liga de travar sua batalha a partir desse lugar, o da necessária inserção dos sujeitos no mundo da letra 9 Mas como se diz a educação do camponês? Como se diz o camponês que se quer educar? O que é instruir para a luta no discurso da Liga? São essas algumas das questões que nos orientam nessa trajetória em busca dos efeitos de sentido sobre educação/instrução no corpus em análise, com o qual passamos a trabalhar. Entendemos que essas materialidades nos permitem vislumbrar um modo de compreender a alfabetização (e a forma de orientar esse processo) como instrumento de luta, ou seja, temos em construção nessas materialidades um discurso sobre a importância desse processo e o modo 'acertado' de conduzi-lo, considerando o lugar desse sujeito que enuncia na posição de liderança do . O analfabetismo nesse período, especialmente no campo, não era um problema apenas brasileiro, mas questão que afetava de maneira radical a vida dos sujeitos no campo e suas possibilidades de contestação das diferentes formas de violência sofridas, constituindo-se a impossibilidade de ler e escrever como elementos fundantes de práticas de silenciamento desses sujeitos e de negação de seus direitos. Não pudemos deixar de lembrar, sobre isso, de uma passagem belíssima pintada pelas tintas de Juan Rulfo em seu "Nos han dado la tierra". A passagem, que usamos como epígrafe, remete ao diálogo (ou tentativa de) entre um camponês e um representante de governo. No conto, ao questionar a impossibilidade de viver e plantar na terra que lhes havia sido dada, el llano, a personagem de Rulfo, recebe como resposta um "diga isso por escrito". A "orientação", que funciona como um movimento de interdição para esse sujeitode um lugar de contestação do que lhe é "oferecido", marca o silenciamento de sua voz, revelando o funcionamento cínico de um discurso que enreda o sujeito na burocracia do Estado e ignora a condição de analfabetismo de uma população historicamente alijada dos processos de escolarização. movimento. É, portanto, conforme dissemos na introdução, um olhar sobre os modos de dizer de/sobre os camponeses no seu movimento de educação para a luta que lançaremos sobre esse corpus. Para os nossos propósitos neste trabalho, é fundamental explicitarmos que partimosda compreensão dos Boletins enquanto fragmentos de um manifesto numa luta pela alfabetização e, também, enquanto objetos desse processo, ou seja, instrumentos de orientação das práticas a serem construídas.Mas são, também, os Boletins, matéria 10 Logo no primeiro número do Jornal, numa matéria intitulada O Camponês é Camponês, Julião se dirige às classes que ele considera mais avançadas no processo de aliança com o campesinato. É desse (Liga, n. 01, p. 5) 10 Reforçamos essa compreensão porque, embora as palavras educação/instrução não apareçam explicitamente nas sequências recortadas, entendemos que tais sequências representam, por um lado, um recorte do conjunto de textos dirigidos aos que vão promover esse movimento entre os camponeses, e por outro, no caso específico dos Boletins, o material dirigido aos próprios camponeses e, portanto, orientado para falar, ao camponês, sobre aquilo que ele precisa "saber". 11 O Periódico Liga foi fundado por Francisco Julião e por outros intelectuais e ativistas das Ligas Camponesas em 1962. Segundo Aguiar (2014), o jornal semanal tinha como objetivo dar sustentação política e ideológica ao movimento, servindo como instrumento em busca da união entre o povo trabalhador e os camponeses a fim de resolver os "problemas da atualidade, agravados com a ambição e a falência das classes exploradas." (A LIGA, n. 01, p. 1). # Volume XX Issue X Version I # ( G ) diálogo que devem surgir homens e mulheres que, por passarem a compreender as particularidades do universo do camponês, deverão tornar-se aptos a instruí-los para que se garanta a hegemonia nas lutas pela libertação dos camponeses: é preciso conduzir o camponês para a aliança com a classe operária, mas para conduzi-lo é preciso compreendê-lo. O discurso de Julião, por nós compreendido como uma prática historicamente determinada, permitenos entrever as determinações das lutas de classe no capitalismo. Para se firmar uma aliança operáriocamponesa a fim de que se travem transformações nas condições materiais de produção, é necessário um alinhamento ideológico entre o proletariado e o campesinato que, embora se igualem por serem oprimidos pela burguesia, trazem traços que os diferenciam, que os antagonizam, vemo-los no enunciado: "Tanto o individualismo como o personalismo Gostaríamos de destacar, a partir de nossa leitura da SD1, o contraditório que atravessa a luta de classes e que se materializa, especialmente, nas relações entre o camponês e a propriedade e entre a exploração e a tomada de consciência de seu lugar nessa luta, que aponta para a necessidade de um reconhecimento-identificação daquele que é o seu "idêntico" nesse processo. ? se opõe diametralmente ao espírito coletivista da ideologia proletária.". A proposta de luta será, portanto, vencer -pela educação do camponêso individualismo e o personalismo que são características atribuídas ao camponês no enunciado da SD1.O que vemos nesse discurso, que conclama os mais esclarecidos a trazerem instrução aos camponeses, é a preocupação com o que representa o individualismo e o personalismo, como resquícios do feudalismo, essas são as marcas daqueles que prezam pela propriedade privada, e sua manutenção representa um contrassenso em relação às lutas socialistas. Para Julião (Liga, n. 01, p. 5), "O camponês quer a divisão das terras, a propriedade privada que toma proporções acentuadas nas reformas agrárias saídas das revoluções burguesas?". Tal apego à propriedade privada serviria de obstáculo à irrupção de uma economia socialista, na qual a classe operária, além de ser hegemônica, conduziria os destinos da Reforma Agrária e do campesinato. Estamos, aqui, lidando com as lutas sociais concretas, nos termos de Zizek (1996, p. 27) e, por isso, como alerta o autor, movimentando-nos na direção de compreender que a "elaboração consequente" do conceito de luta de classes "obriga-nos a admitir que não há luta de classes "na realidade": a "luta de classes" nomeia o próprio antagonismo que impede a realidade (social) objetiva de se constituir como um todo fechado em si mesmo." Ela é real, explica o autor, remetendo à noção lacaniana, enquanto "uma dificuldade, um empecilho que origina simbolizações sempre renovadas". Que sejam antagônicas, portanto, essa duas classes, constituídas por sujeitos igualmente explorados, igualmente ameaçados pela maquinaria perversa do capital, não é algo estranho à compreensão do "caráter intrinsecamente contraditório de qualquer modo de produção que se baseie numa divisão de classes, isto é, cujo "princípio" seja a luta de classes", como nos mostra Pêcheux (1996, p. 143); assim como podemos pensar que é essencialmente contraditório o funcionamento ideológico, o que nas palavras Pêcheux (1996, p. 146), torna impossível "atribuir a cada classe sua própria ideologia". É interessante perceber, no entanto, que, ao mesmo tempo em que Julião diz, em SD1, sobre duas classes e suas correspondentes ideologias, também diz que, contraditoriamente, os elementos que caracterizariam cada uma dessas ideologias permeiam a outra, dividida em sua própria contradição: "Tanto o individualismo como o personalismo, se bem que não sejam estranhos ao âmbito das organizações proletárias, se opõem diametralmente ao espírito coletivista da ideologia proletária." Se o individualismo e o personalismo não são estranhos ao âmbito das organizações proletárias, é porque também aí se fazem presentes, penetrando pelas falhas do ritual ideológico que convoca os sujeitos a reconhecerem-se com esse lugar do proletariado. Nesse jogo da luta social concreta, portanto, não há nenhuma garantia de que o indivíduo que está na condição de explorado se reconheça "naturalmente" como tal, tampouco que reconheça aquele que o oprime e suas formas de ação como instrumentos de opressão. O camponês quer a terra, quer a posse da terra, entre outras coisas, porque talvez sinta que a terra lhe pertence, enquanto locus e objeto de seu trabalho e existência. Não se trata de tarefa fácil, portanto, construir o entendimento de que é a defesa da propriedade privada justamente o que o transforma em sujeito da exploração, porque entrega a quem detém a propriedade o direito de explorar aquele que trabalha essa terra. É pela instrução, portanto, que se acredita ser possível vencer a barreira que impede que esses sujeitos, divididos por "duas ideologias" (ou, talvez seja melhor dizer, divididos na ideologia) -a do individualismo e do personalismo que advém do apego à propriedade privada, e caracteriza o camponês, em confronto com o espírito coletivista, que abriga a luta a fim de que tudo seja comum a todos, que aponta para o proletariado ideal -, possam constituir uma força única de luta. É o desejo de unidade, portanto, que se faz sentir no movimento de instrução: compreender o camponês para poder fazê-lo compreender o seu lugar na luta. Ao pensar pelo viés do discurso esse desejo da instrução como forma de construção de uma força massiva de luta contra a exploração, somos levados a olhar para as formas de subjetivação pelas quais se caracterizam os modos de o sujeito relacionar-se com os saberes de uma formação discursiva (FD). Parecenos pertinente, aqui, lembrar da teorização feita por Pêcheux (1996, p. 149) acerca da "figura da interpelação" pela qual se nomeia "a ligação entre o 'sujeito perante a lei' [...] e o sujeito ideológico (aquele que diz de si mesmo; "Sou eu!")". Por interpelação ideológica entende-se o processo por meio do qual somos, todos, chamados a ser sujeitos, a partir de nossa identificação com um universo de saberes que fala de nós e sobre nós antes mesmo de que possamos dizer eu. Nesse trabalho de dizer quem é o camponês e quem é aquele que deve instruí-lo, parece funcionar de modo muito forte o jogo de projeções que caracteriza uma formação imaginária enquanto terreno sobre o qual se constrói o discurso. Nesse sentido, o alerta de Francisco Julião parece antever um imaginário já consolidado sobre o camponês, no qual ele, ao mesmo tempo se apoia, ao descrever os pilares do que chama de sua ideologia, e questiona, ao chamar o operariado à necessária compreensão desse sujeito se o que se quer é trazê-lo para a luta. No plano do desejo, camponeses e operários -os primeiros por meio da instrução recebida destes, os segundos, por meio de um conhecimento profundo dos que viriam a conduzirfariam a educação para a luta unidos por um espírito coletivista. Constrói-se, esse desejo, sobre as bases de uma possível identificação, total e completa, com esse espírito, que representaria, aqui, o ideal do proletariado. Parece escapar a esse sujeito do discurso, no entanto, que há um espaço da falha que produz, para o sujeito, diferentes modos de (des)identificar-se com os discursos, e que, como dizia Pêcheux ([1975] 1996, 304), permitem afirmar que "não há dominação sem resistência" e "ninguém pode pensar do lugar de quem quer que seja". Entendemos que no trabalho de dizer o camponês, a quem se deve instruir, o que se produz nesse discurso é um movimento de (re)conhecimento, de explicitação desses imaginários que permeiam os modos de olhar o camponês e o campesinato. Está na base desse discurso um (des)conhecimento do que seja o campesinato, de quem são os camponeses enquanto classe, como veremos em SD2, e ao mesmo tempo uma pressuposição de que é preciso fazê-los alçar um nível ideológico que lhes permita ser sujeitos da luta: A SD 2 descortina ainda mais o conflito, os antagonismos e a heterogeneidade no próprio campo que se contrapõe à burguesia. Existe, porém, dentre eles a superveniência do sujeito operário ao qual se atribui o poder e a função de incutir no camponês os ideais do proletariado, os ideais de coletividade e, por consequência, da aniquilação da propriedade individual tal qual o camponês a concebe. Esse modo de dizer o sujeito operário em sua relação com o campesinato se funda, até onde conseguimos recuperar, nas reflexões de Engels sobre o campesinato. Aquilo que se diz em SD 2 surge como um efeito parafrástico da recusa de Engels em conceber o camponês como aliado na revolução proletária, mantendo-se em seu lugar de proprietário individual -"Em nosso partido não há lugar para o camponês que reivindica que lhe eternizemos a posse da sua propriedade parcelar, assim como nele não há lugar para o mestre-artesão que deseja perpetuar a sua situação de mestre." (ENGELS, 1981, p. 200). e não como uma simples mecânica do maquinismo da frente única ou da aliança com setores da burguesia ou com a classe operária. Vemos, portanto, que a produção de sentidos em SD2 não se dissocia, como nos aclara Pêcheux ([1969] 2010, p. 167), das relações de paráfrase "entre sequências tais que a família parafrástica desta sequência constitui o que se poderia chamar de 'matriz do sentido'. Isso equivale a dizer que é a partir da relação no interior dessa família que se constitui o efeito de sentido?". Nessa direção, podemos dizer que é o eco dessa repetição histórica, de um modo de dizer o camponês e o seu (não)lugar na luta, que consolidam as projeções imaginárias a que nos referimos acima, e que, uma vez convocadas a esse discurso por Julião, fazem ressoar um modo de dizer como possibilidade de superar a divisão que ele inaugura. Reproduz-se aí, então, o discurso revolucionário, que busca alianças, mas não a qualquer custo, não pretendendo ganhar o camponês da noite para o dia (ENGELS, 1981, p. 199)... tampouco tomando-o como um ente sem forma para engrossar as fileiras da revolução proletária: "é mister entender bem o camponês como classe e não como uma simples mecânica do maquinismo Nesses modos de dizer o camponês e sua necessária educação, se faz trabalhar, pelo discurso do jornal, a relação entre um estado de (in)consciência e sua superação pela educação. O camponês, ainda individualista, apegado à propriedade da terra, centrado na sobrevivência dos seus, precisa dominar a letra e educar-se para a luta, preparando-se para participar, da frente única ou da aliança com setores da burguesia ou com a classe operária." Volume XX Issue X Version I 35 ( G ) como sujeito, desse lugar da luta. Aquele que o educa precisa antes compreendê-lo para fazê-lo melhor compreender como se mover a partir desse lugar que ocupa. Em suma, vemos, tanto na SD1 quanto na SD2, um movimento das Ligas camponesas a fim de dar instrução aos mais esclarecidos para que essa vanguarda possa orientar o campesinato na luta revolucionária. Seguros do quão importante era essa tarefa foi criada pelas Ligas Camponesas Brasileiras uma Comissão de Educação que se compromete a empreender estudos marxista-leninistas com o intuito de "forjar verdadeiros revolucionários 12 b) Os Boletins: um texto a ler, um mundo a compreender ". (JULIÃO, 2012, p. 212). Como já afirmamos antes, o próprio Julião, além de arregimentar os intelectuais para dar instrução aos camponeses, lançou-se nessa empreitada, doutrinando (para usar a expressão dele) inicialmente os de Galileia e, posteriormente, os camponeses do Brasil inteiro. Para levar esse empreendimento à frente e alcançar um maior número de camponeses, passou a utilizar o espaço do Jornal Liga. Foi na publicação de Boletins, escritos em linguagem simples e tom apelativo que Julião logrou despertar, conscientizar e organizar os camponeses em Ligas. Vejamos agora algumas sequências discursivas recortadas dos boletins Guia do Camponês a fim de compreendermos como se dá esse processo de instrução dos camponeses e como este discurso de injunção à luta se apresenta como forma de resistência ao discurso hegemônico que naturaliza a exploração das massas camponesas? . Não te afastes dele. Segue para a frente. A viagem é penosa. Encontrarás espinhos e traição. Não te deixes vencer pelo cansaço ou pelo medo. Nem voltes do meio do caminho. Porque no fim da tua viagem encontrarás a liberdade, o agasalho, o pão e a paz. 12 "A prática tem demonstrado que a conquista do socialismo é fruto da organização leninista de um povo, e só com esse tipo de organização poderão as LCB melhor servir o Brasil. Mas só conseguirão impor essa organização por meio do estudo, pois é pelo estudo que se impregna o espírito revolucionário[...] Convencidas da importância dessa tarefa, as LCB criaram a sua Comissão de Educação, que já iniciou a batalha em favor do estudo marxistaleninista, que deve ser permanente, resoluta e imediata. Devemos tomar todas as medidas para tornar o trabalho de educação, dentro das LCB, um trabalho capaz de, pela sua qualidade, forjar verdadeiros revolucionários." (JULIÃO, 2012, p. 212). SD As Sequências Discursivas de 3 a 5 foram recortadas do Boletim "Guia do Camponês" publicado por Julião no segundo número do Jornal Liga. Escrito a partir do mote "Liberdade, agasalho, pão e paz", possui 12 estrofes numeradas de caráter injuntivo com o intuito de unir e organizar os camponeses em Ligas. Os períodos, com orações absolutas curtas e tom informal, produzem um efeito que se assemelha muito mais a uma conversa do que a um trabalho de proselitismo das massas camponesas (JULIÃO, 1962). Eles são muitos milhões espalhados pelo Brasil. E vivem miseravelmente. Como animais de carga. A eles não dão nada. E deles tiram tudo. São eles que cuidam da terra. Com as mãos duras de calos.[...] E matam a fome de milhões. Mas morrem de fome. Ou vão esmolar nas portas das igrejas, nas estações de ferro e pelas feiras. Ou apodrecem nos hospitais. Para eles não há liberdade, agasalho, pão e paz. (Julião) Usado como elemento para despertar os camponeses e precipitá-los para a luta contra o latifúndio e contra as mazelas que dela decorrem, o boletim faz emergir um sujeito que, ao produzir um discurso pedagógico, conativo, ocupa um lugar que fere o discurso hegemônico sobre a ordem estabelecida no campesinato. Essa ordem, pautada na tutela do latifundiário sobre o camponês, tira deste o protagonismo e a autonomia, fazendo-o curvar-se ao foro, à morada, ao barracão e ao cambão, naturalizando esses institutos e atribuindo-lhes um caráter de dádiva. 13 Na SD3 se expressa a promessa e a forma de alcançá-la. Se o que se quer é liberdade, agasalho, pão e paz, é preciso que os sujeitos façam seu caminho, construam o caminho para a luta, e convidem os outros a caminhar ao seu lado. É preciso mover-se, e nesse mover-se é necessário construir o percurso do movimento.Nessa SD, a mesma voz que conclama os camponeses para a luta o faz respondendo a um discurso que marginaliza a Liga. Ao afirmar que a Liga é GUIA, que a Liga é o CAMINHO, para que se alcance Liberdade, agasalho, pão e paz, abrem-se frestas no discurso dominante proferido pelos latifundiários, os quais ameaçam, e chantageiam os camponeses em nome de Deus. De um deus que permite a pobreza e a miséria, prometendo recompensas aos sacrifícios terrenos somente depois da morte dos pobres. "Ouçam o que eu digo e sigam meu conselho: quem já entrou na Liga, saia dela. O mesmo demônio que tentou a Cristo tenta o cristão. A Liga tem parte com o diabo, porque está com o olho na terra que não é dela?". (AGUIAR, 2014, p. 187). Na leitura desses fragmentos, o funcionamento pedagógico desse discurso se marca como forma necessária de instrução para a luta também pelos sentidos das palavras 14 consistir num sistema de reciprocidades tácitas, no entanto, na prática, essa instituição do parentesco ritual traz como consequência obrigações unilaterais em que, além do camponês, o afilhado também passa a dever obediência ao dono das terras. Em algumas regiões, estudos etnográficos mostraram que "a autoridade do patrão, do marido e a do padrinho são semelhantes, na medida em que ela pode ser simultaneamente violenta e sagrada." (LANNA, 1994, p. 294). É, então, resguardado pelo manto da obediência a quem faz a criança nascer socialmente no seio de uma comunidade, que se recrudesce a exploração: a toda dádiva corresponde sempre a imposição da retribuição. 14 "No terreno da linguagem, a luta de classes ideológica é uma luta pelo sentido das palavras, expressões e enunciados, uma luta vital por cada uma das duas classes opostas que têm se confrontado ao longo da história. E essa luta continua hoje como uma luta revolucionária incessante contra o estágio final do capitalismo." (PÊCHEUX, [1978] 2011, p. 273) , que se fazem presentes nos movimentos de ressignificação dos dizeres sobre a Liga, conforme já tematizamos em outros trabalhos (SOUZA; DE NARDI, 2019). Dizer a Liga como guia, caminho, "cimento" que une os camponeses, é contrapor-se ao discurso dos latifundiários, no qual dizerLiga é dizer ameaça, coisa do diabo. A Liga" está de olho numa terra que não é dela?", diz o latifundiário, "esquecendo-se" de dizer ao camponês, que ela também não será sua, porque é dele a propriedade, o que lhe dá o direito, divino, de fazer o outro trabalhar a terra para servir-se dos lucros que ela(e) produzir. A luta pelo sentido das palavras, a nosso ver, não é uma representação da luta de classes, e, sim, a encarnação da própria luta na voz do campesinato, para quem, apropriar-se da palavra Liga significa demarcar um lugar de insistência/resistência: é pela Liga e com a Liga que se insiste em continuar camponês, em não se proletarizar. É pela reivindicação da palavra Liga como espaço de união e de luta que os camponeses responderão à opressão por eles sofrida. Parece-nos necessário, aqui, fazer algumas considerações sobre o discurso pedagógico, tratado por Eni Orlandi (1996, p. 15) a partir da discussão sobre a possibilidade de distinguirmos, por seu funcionamento, três tipos de discurso, que a autora designa como lúdico, polêmico e autoritário: "procuraremos caracterizar o discurso pedagógico (DP), tal qual ele se apresenta atualmente, como um discurso autoritário". Esses tipos de discurso se caracterizam, segundo a autora, a partir do tipo de polissemia, "enquanto processo que representa a tensão constante estabelecida na relação homem/mundo", que os caracteriza. Assim, teríamos, no discurso lúdico, uma polissemia aberta; no polêmico, controlada, e, no autoritário, uma polissemia contida. Essa polissemia contida, característica do DP tal qual analisado por Orlandi, no momento específico em que situa seu texto 15 Em nosso corpus, segundo a leitura que fizemos, temos, também, nas sequências que compõem o bloco que ora analisamos, um funcionamento que poderíamos caracterizar como de um discurso pedagógico, conforme apontamos anteriormente, cuja direção é a persuasão do sujeito para luta. Entendemos, no entanto, que há uma mudança de direção, com relação ao descrito por Orlandi (1996) acerca do DP, justamente por estar, no centro desse discurso, um questionamento sobre o referente e um trabalho justamente de desestabilização dos sentidos que se faz como condição para essa adesão. Não se apaga, com isso, o fato de que aquele que fala nos boletins se inscreve num lugar de autoridade acerca do que diz, enquanto sujeito marcado por sua posição de intelectual, mas é na negociação dos sentidos que esse discurso se estabelece, num movimento de colocar "no lugar de" uma verdade já estabelecida, aquela do latifúndio, um , expressa-se pela imposição de um saber, constituído como O saber, visto que se diz a partir do lugar de autoridade que o professor ocupa na relação com o aluno: A ensina B = A influencia B, o que leva a autora a dizer que "mais do que informar, explicar, influenciar ou mesmo persuadir, ensinar aparece como inculcar". A pergunta sobre o referente aparece, nesse sentido, não como algo a se construir, mas como algo que se deve saber, como um já-posto que não se movimenta e que fixa o sentido em um lugar de fazê-lo se mover. outro modo de dizer as Ligas, os camponeses e seus direitos. Assim, ainda que não se possa negar que esse dizer também se assenta sobre uma forma autoritária de dizer ao outro, talvez até num entrelaçamento com o discurso religioso que ele convoca e cuja forma/tom reproduz, chamando o sujeito a aderir a esse dizer como forma de encontrar a verdade e a salvação, entendemos que, considerando as condições sóciohistóricas em que se inscreve esse discurso, não podemos nos furtar de dizer que esse movimento se fazia necessário enquanto forma justamente de romper com uma ordem já estabelecida, construindo uma possibilidade de inversão tanto nas formas de naturalização da exploração, como na promoção de uma leitura do discurso cristão não como um discurso da dor, e da aceitação passiva do sofrimento, mas sim como um chamado para a ação, a libertação e a justiça. Por isso entendemos que, o discurso pedagógico que caracteriza o funcionamento dos boletins, ainda que se faça a partir de um lugar de autoridade, não anula o camponês enquanto sujeito, mas procura se aproximar dele, entender os discursos em que está mergulhado e propor, pelo tensionamento dos sentidos, a possibilidade de que esse mundo em que vive venha a ser outro. Numa direção semelhante, falou Paulo Freire (1996, p. 138) . Nos enunciados que compõem essa sequência discursiva, são evidenciados dois fatores que afastam o camponês da educação e, consequentemente, da lutao jogo e a bebida alcoólica. E para fazer com que os camponeses entendam essas práticas como nefastas e afastem-se delas, Julião busca uma aproximação com eles, que, nesses enunciados, dá-se pelo uso de palavras e expressões típicas do universo do camponês. Chama o Jogo de "Roleta" e de "Bozó"; faz referência ao consumo de bebida alcoólica, dizendo: "na porta da venda Se trouxermos para cá uma reflexão de Julião (1970) sobre a "Religião, cachaça e capanga", veremos que ele põe os três elementos num mesmo campo de sentido como recursos do latifúndio para a manutenção do "atraso do camponês". Nos moldes do Latifúndio vemos: Uma religião que condiciona o camponês a pensar que ele não pode fugir à realidade, à contingência, caso contrário, não herdará o Reino dos céus; a cachaça (aguardente) que funciona como uma forma "pacífica" de anestesiar o camponês, escraviza-o as horas estão perdidas" e, assim, busca a adesão "daqueles que, marginalizados, forjam uma verdadeira cultura, em cujos valores é preciso penetrar se se quer chegar a eles. (GUTIÉRREZ, 2000. p. 258). realidade de miséria, opressão e exploração vivida na América Latina. Segundo Gustavo Gutiérrez (1996, p. 12) não se pode "separar processo histórico libertador e discurso sobre Deus.", o que mostra que a proposta em torno da implementação da teologia da Libertação se coaduna com o discurso praticado no Concílio Vaticano Segundo que visa a integrar a fé em Cristo, vivida em comunhão eclesial, com as necessidades dos empobrecidos. (SOUZA, 2013) ao vício químico, mantendo-o, inclusive, preso ao latifundiário pelas dívidas no barracão. Assim, o camponês "entrega o corpo à cachaça e a alma a Deus." (JULIÃO, 1970, p. 16). Se essas duas são formas "sutis" de anestesiar o camponês, o capanga mostra a face ostensiva e violenta dessa dominação. É contra os mecanismos que imobilizam o camponês que Julião propõe a alfabetização: "Aprender a ler para te guiares melhor na vida?"; "Troca o Bozó pela carta de ABC?"; "aprendendo a ler tu servirás melhor ao teu irmão sem terra.". Guiar-se melhor na vida e servir ao irmão sem terra tendo como instrumento a alfabetização faz o camponês dar um salto de consciência de seu papel na luta pelo direito de ter a terra e de viver nela com dignidade(com liberdade, agasalho, pão e paz). A proposta de Julião -de trocar o jogo pela carta de ABC -ilustra seu esforço no desmascaramento da ideologia dominante, já que os camponeses só deixarão de morrer de fome, de esmolar nas portas das Igrejas e de apodrecerem nos hospitais se mudarem a lógica de vida que os acorrenta ao latifúndio. V. # Considerações Finais Longe de ser um ponto final, nossas palavras aqui são uma tentativa de dar um laço, acrescentar mais um ponto a esse bordado de linhas muito curvas como se tem caracterizado o nosso trabalho sobre esse corpus. A escrita desse artigo nos exigiu muitos recortes, fazer diversas escolhas. Isso porque a questão da educação/instrução do camponês é algo que atravessa a quase totalidade do material com que trabalhamos, de forma direta ou indireta, visto aparecer como uma condição da organização dos sujeitos para a luta e um dos objetivos essenciais da Liga enquanto organização. Ao iniciar essa escrita, orientamo-nos, basicamente, por três questões: (a) como se diz o camponês que se quer educar? (b) como se diz a educação do camponês? (c) o que é instruir para a luta no discurso da Liga? Talvez a primeira consideração importante, ao se olhar para esse corpus, é entender que estamos diante de um camponês que insiste em manter-se camponês, consideração que nos leva a retomar o que, em nossa análise, mostrou-se como um movimento significativo no trabalho atribuído aos que são chamados a educar esses sujeitos: (re)conhecê-los. Esse camponês é apresentado como sujeito à dominação e exploração dentro do sistema societário capitalista, que usa todos os recursos para mantê-los no seu devido lugar: no lugar de parceiro, de morador, de foreiro, todos eles manietados pelos latifundiários por meio da religião, da cachaça e do simulacro de uma relação de amizade e parentesco entre os camponeses e os donos da terra. # Volume XX Issue X Version I # ( G ) Coloca-se em evidência, nesses modos de dizer o camponês, o jogo das projeções imaginárias acerca daqueles de/com quem se fala. Um jogo sobre o jogo, diríamos, no sentido de que nessas materialidades comparece, por um lado, um imaginário do camponês e sua forma de vida, convocado para fazer compreender ao outro quem é o camponês com quem se fala, e, por outro, ao se falar com o camponês, um imaginário sobre aquele que o oprime, imaginário longamente construído pela nomeação das relações de trabalho e pessoais entre camponeses e latifundiários, por meio das quais se vão apagando as marcas da opressão. É preciso capturar esse imaginário, descarná-lo, virá-lo do avesso, porque, sem isso, não se pode alcançar a subversão dessa lógica perversa. E é justamente pela via da educação que isso se pode fazer. Uma educação que, nas cartilhas e no Jornal Liga, é dita como um movimento de instrução, instrução para a luta, instrução que demanda revirar os sentidos já estabilizados e colocar outros em seu lugar, "dar nome aos bois" para poder abrir caminho para a luta. Uma luta pelas palavras e por seus sentidos. Não junto a minha voz à dos que, falando em paz, pedem aos oprimidos, aos esfarrapados do mundo a sua resignação. Minha voz tem outra semântica, tem outra música. Falo da resistência, da indignação, da "justa ira" dos traídos e dos enganados. Do seu direito e do seu dever de rebelar-se contra as transgressões éticas de que são vítimas cada vez mais sofridas. (FREIRE, 1996, p. 10) Dar instrumentos para que possam se rebelar, como diz Paulo Freire, é o que busca a Liga nesse desejo de educar/instruir, por isso é que se propõe a subversão da lógica da religião, a troca do jogo e da cachaça pela alfabetização e pela instrução como forma de construir o camponês como sujeito da luta. Mas para isso é necessária uma compreensão sensível acerca do camponês e de sua forma de existência, especialmente por parte daquele cuja tarefa é ser seu guia.Ainda que os termos educação e instrução não se façam presentes nos recortes que aqui trazemos, entendemos ser possível afirmar que é num discurso de educação/instrução para a luta que esses recortes se inscrevem como parte de um corpus mais amplo em que os termos funcionam numa relação de sinonímia: só se pode educar se for para a luta e, a luta, no caso dos camponeses, exige que eles sejam instruídos por aqueles que, já tocados pela ideologia do proletariado, são capazes de levá-los a superar o individualismo e o personalismo que está na base do que se caracteriza como a ideologia camponesa. A educação, portanto, tem um fim muito claro, "o de elevar a consciência das massas", conforme referimos ao citar Julião (2012), promoção de uma consciência que, em nossa leitura, implica construir para esse sujeito da educação a possibilidade de se contraidentificar com o discurso de que é objeto (o do latifúndio) e identificar-se com o discurso do proletariado, assumindo como seu não apenas o discurso, mas o dever de fazer-se sujeito da luta. Volume XX Issue X Version I 41 ( G ) Caminante, son tus huellasel camino y nada más;caminante, no hay camino,se hace camino al andar.Al andar se hace camino,y al volver la vista atrásse ve la senda que nuncase ha de volver a pisar.Caminante, no hay camino,sino estelas en la mar.(Proverbios y cantares, Antonio Machado1 à agricultura.Somente em março de 1963, o Presidente JoãoGoulart sancionou a lei 4.214/63, que ficou conhecidacomo Estatuto do trabalhador rural. 31IV.JULIÃO, Vemos que o intuito de Julião (2012) era 2012, p. 211) promover a união operário-camponesa a fim de que, juntos, pudessem conseguir a libertação nacional. Para tanto, instruir, educar o camponês -através das Ligas e de todos os mecanismos pensados a partir dela -era urgente. Dentre os instrumentos usados para alcançar esse objetivo, estavam os Boletins e o Periódico Liga, criado por Francisco Julião juntamente com outros intelectuais e com ativistas das Ligas camponesas. Os aderir às concepções de Marx acerca da natureza da sociedade O Jornal Liga e os Boletins: a Letra Como Instrumento de Luta Nos dijeron: -Del pueblo para acá es de ustedes. Nosotros preguntamos: -¿El Llano? capitalista, tornou-se a Volume XX Issue X Version I ( G ) -Sí, el llano. Jesus Cristo também foi pobre como tu . E queria que opobre tivesse a liberdade, o agasalho, o pão e a paz.SD 511. Julião, no entanto, torcem essa concepção, queaprisiona o camponês, fazendo-o compreender olatifundiáriocomoinimigodoscamponeses,subvertendo o que já está socialmente estabilizado e,para isso, apresenta os gestos dos donos das terrascomo violentos, falsos, astutos e mentirosos. Essemovimento de subversão na/pela linguagem visa a"ressignificarsentidoserituaisenunciativos,deslocando processos interpretativos já inscritoshistoricamente, já institucionalizados."(SOARES et al,2015, p. 10), como condição para a luta pelo direito decontinuarem a existir como camponeses.Se compreendemos, então, que aquilo quefunciona nos processos discursivos são formaçõesimaginárias que designam os lugares que osinterlocutoresatribuem-semutuamente,comoprojeções socialmente regradas (PÊCHEUX, [1969]2010, p. 81), entenderemos também a urgência quetem Julião em "esclarecer o camponês" a fim de que,como sujeitos de suas lutas, compreendam que osdonos das terras não são seus companheiros, nãocompartilham de suas dores e, sim, ao explorá-los,devem ser entendidos como inimigos. É só então, apartir dessa nova correlação de forças, que a luta pelaterra pode acontecer.Julião afirma que o proselitismo das massasem Pedagogia dacamponesas é uma arma necessária para que se inicieAutonomia:essa luta, desde o seu início, marcada pelaNo fundo diminuo a distância que me separa dasdesigualdade. (AGUIAR, 2014). Os latifundiários tinhamcondições malvadas em que vivem os explorados, quando,ao seu lado seus feitores e capangas, "a insensibilidadeaderindo, realmente, ao sonho de justiça, luto pelahistórica e anacrônica da ordem jurídica e do governomudança radical do mundo e não apenas espero que elado general Cordeiro de Farias" (AGUIAR, 2014, p. 186),chegue porque se disse que chegará. Com relação a meus alunos, diminuo a distância que me separa de suas condições negativas de vida na medida em que os ajudo a aprender não importa que saber, o do torneiro ou o do cirurgião, com vistas à mudança do mundo, à superação das estruturas injustas, jamais com vistas à sua imobilização. (Grifo nosso)que perseguia violentamente os movimentos sociais e, como se isso não bastasse, o lado tradicionalista da Igreja Católica. É, em nome da fé, que buscam manter os camponeses resignados. Aguiar (2014, p. 187) nos apresenta um episódio protagonizado por um parente próximo de Francisco Julião, que se fustiga osEntendemos que essa necessidade de mexer com o já posto aparece quando observarmos SD 4. Ao trabalhar com essa sequência sentimos a necessidade de trazer novamente o que nos diz Pêcheux ([1969] 2010) quando nos propõe reflexões sobre formações Imaginárias. Dizer que "O processo discursivo não tem de direito início" (PÊCHEUX, [1969] 2010, p. 76); dizer que ele se conjuga sobre um discurso anterior que acaba por se projetar em outros discursos faz-nos pensar na noção que o camponês possui sobre quem é o latifundiário. O dono das terras, não raras vezes, é tido como o compadre que oferece um frasco de remédio, que disponibiliza o jipe para levar a esposa do camponês ao hospital? (CARTA DE ALFORRIA DOcamponeses com ameaças em nome de Deus, dizendo: "A terra em que vocês vivem eu herdei do meu pai. E vocês o que herdaram? Nada. Portanto, nem eu tenho culpa de ser rico nem vocês de serem pobres. Tudo foi previsto por Deus. Ele sabe o que faz.". Respondem a esse discurso, que atribui a Deus a permissão para a vida miserável que leva o camponês, as palavras de Julião, quando adverte os camponeses: "Até o nome de Jesus Cristo será usado contra ti.". Julião nos seus boletins usa os símbolos e a mística da própria religião, aos quais o camponês já teme, já guarda devoção e respeito, para acender-lhes a consciência. Retoma uma discussão muito presente dentre os que praticam aCAMPONÊS, Liga, nº. 02, p. 5). E é a partir de feitoscomo esses que os camponeses projetam aconcepção deste latifundiário, imaginariamente, comobondoso, solidário e desinteressado. Os dizeres de "Parceiro, como ninguém ignora, é o camponês que arrenda um pedaço de terra, mediante a entrega obrigatória ao senhor de parte do que produz (um quarto, um terço ou a metade da produção). O senhor é o proprietário, o dono das terras, o latifundiário, que, em várias regiões do Brasil, e no Nordeste, em particular, recebe a designação genérica de coronel."(JULIÃO, 1970, p. 24). Year 2020© 2020 Global JournalsLetters to the Fight: The Liga Newspaper and its Sayings about/to the Peasant's Education Considerando os objetivos deste trabalho, não nos aprofundaremos aqui nessa questão, nem mediante a exposição exaustiva de dados, nem no sentido de uma discussão teórica sobre o analfabetismo e sua conceituação, embora se trate de tema de relevância ao qual deveremos voltar em momentos posteriores. Lanna (1994) nos afirma que, na relação hierarquizada entre o patrão e os trabalhadores rurais ou foreiros, os patrões agem como se os subalternos estivessem permanentemente endividados. Se o patrão usufrui da prerrogativa de nunca iniciar quaisquer contatos sociais, os empregados ou camponeses são sempre os que têm "algo a pedir" e, assim, o patrão permite-se um alto grau de manipulação das trocas. Isso se aprofunda, quando o trabalhador ou o camponês convidam o latifundiário para serem padrinhos de suas A linguagem e seu funcionamento foi escrito em 1983 e a edição que mencionamos neste trabalho é uma edição revisada que data no ano de 1996. Consideramos importante, também, mencionar que as reflexões da autora se dirigem ao discurso pedagógico tal como se realiza nas instituições escolares, vinculando-se, portanto, a uma análise da educação formal no Brasil nesse período. A Teologia da Libertação -no confronto entre a fé cristã e as situações de opressão vividas pelos empobrecidos -nasceu, com esse nome, vinculado mais fortemente à Igreja católica, pouco antes da Conferência Episcopal de Medellín e foi fruto de reflexões sobre a © 2020 Global JournalsLetters to the Fight: The Liga Newspaper and its Sayings about/to the Peasant's Education * CláudioFranciscoAguiar Julião Uma Biografia JaneiroRio De 2014 Civilização Brasileira * As Ligas Camponesas FernandoAzevedo Antônio 1982 Paz e Terra Rio de Janeiro * FriedrichEngels Engels São Paulo José Paulo Netto; Coordenação: Florestan Fernandes 1981 * Lutas de Classes na Alemanha Friedrich;Engels KarlMarx 2010 São Paulo; Boi Tempo * Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa PauloFreire 1996 Paz e Terra São Paulo * Formação da pequena propriedade: Intrusos e Posseiros, In: quatro séculos de latifúndio AlbertoPGuimarães 1963 Fulgot São Paulo * GustavoGutiérrez Teologia Da Libertação Perspectivas. São Paulo: Loyola 2000 * Que são as ligas camponesas? FranciscoJulião RJ: Editora Civilização Brasileira 1962 Rio de Janeiro * Cuernavaca: Centro intercultural de documentación _____ Cambão Cuaderno Nº 13 1970 * Educação de quadros: Tarefa da organização política das Ligas _____ A questão agrária no Brasil -História e natureza das Ligas Camponesas São Paulo Expressão Popular 2012 * Troca e patronagem no Nordeste brasileiro. Campinas: Editora da Unicamp MarcosP DLanna Dívida Divina 1994 * AntonioMachado Poesías Madrid 1989 Espasa Calpe * A linguagem e seu funcionamento. Campinas, SP: Pontes EOrlandi 1996 * Por uma análise automática do discurso. Campinas: Editora da Unicamp MichelPêcheux 1969. 2010 * MichelPêcheux 1975 * Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação Semântica e discurso. Campinas: Pontes 1996 * As massas populares são um objeto inanimado MichelPêcheux Análise do discurso. Michel Pêcheux. Campinas, SP: Pontes, 2011. Textos escolhidos por Eni Orlandi 1978 * O mecanismo do (des)conhecimento ideológico. In. ZIZEK, Slavoj. Um mapa da ideologia MichelPêcheux 1996 Contraponto Rio de Janeiro * El llano en llamas. México: Fondo de cultura Económica JuanRulfo 1996 * A definição de camponês: conceituações e desconceituações -o velho e o novo em uma discussão marxista TeodorShanin Revista Neraano 8 2005 * A Cartilha do Camponês, o Documento "bença, mãe!" e sua recepção pela Liga Camponesa do Engenho Galileia. Recife: UFPE Reginaldo JoséSilva Da 2015. 2015 Recife Centro de Educação, Universidade Federal de Pernambuco Dissertação (Mestrado em Educação) -Programa de Pós-Graduação em Educação * AlexandreSSoares Ferrari (org PR: EDUNIOESTE resistência e? Cascavel 2015 * Entre o desejo e a contradição: os (des)caminhos em busca de uma Igreja Nova. Recife, PE: UFPE, 2013, 144 f, Dissertação (Mestrado em Letras), Programa de pós Graduação em Letras FabianaSouza Ferreira Nascimento De 2013 Recife Universidade Federal de Pernambuco * Universidade do Vale do Sapucaí (UNIVÁS) FabianaSouza ;Ferreira Nascimento De FabieleDe Nardi Stockmans 10.20337/ISSN2179-3514revistaENTREMEIOSvol20pagina139a157 dez. 2019 Seção Estudos, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem (PPGCL) 20 Especial, Dossiê "Língua, discurso e trabalho na contemporaneidade * EricRWolf Sociedades Camponesas 1970 Zahar Editores: Rio de Janeiro * SlavojZizek Espectro Da Ideologia Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto 1996