realismo fantástico e a representação do processo de fetichismo da mercadoria, descrito por Karl Marx. A intenção é mostrar que o fantástico pode levar a fantasmagoria, aprofundando ainda mais o conhecimento da realidade social. Através da obraCrônica da Casa Assassinada,será possível empreender uma análise materialista que concebe a arte literária como capaz de estetizar os objetos tanto como uma nova visão quanto como reconhecimento, sendo que, no primeiro caso, o experimento pode vir a ser o reforço do que já se conhecia, mesmo diante de uma nova roupagem. Entretanto, isso não faz da arte algo acrítico; ao contrário, revela seus matizes, cujas origens estão na organização da sociedade. Palavraschave: fantasmagoria; realismo fantástico; crônica da casa assassinada. # I. O Realismo Fantástico e a Fantasmagoria da Realidade formalista russo Viktor Chklovsky, preocupado em explicar a arte como procedimento, explicita que as ações, assim como os objetos, tendem a nos parecer tão familiares que desaparecem suas especificidades da nossa linha de reconhecimento: o objeto se acha diante de nós, sabemo-lo, mas não o vemos. (CHKLOVSKY, 1975, p.45) Nesse sentido, o estudioso discute o papel da arte nesse resgate de percepção e de sensibilidade e, paraalém disso, deixa aberta uma seara importante: quanto mais parte da realidade, do nosso cotidiano e do campo de convivência habitual, mais o objeto e as ações tendem a desaparecer, isto é, uma vez tornadas habituais, elas também se tornam automáticas (CHKLOVSKY, 1975, p.45) Diante do exposto, percebe-se que quanto mais familiar, menos aparente está a realidade, aspecto importante na criação da sua dimensão fantástica. Nessa automatização da vida, a própria figura desaparece e parece se converter em nada. Para o estudioso, o papel da arte é singularizar as imagens dessa realidade de modo a torná-la visão e não reconhecimento. O uso de elementos fantásticos, mudando a semântica do enredo, traz essa especificidade e pode, além de singularizar,apontar para um processo de criação de uma fantasmagoria que, ao invés de afastar da realidade, a aprofunda. Embora pareça levar água ao moinho sobrenatural, místico e metafísico, o fantástico revela a materialidade da dinâmica histórica, que é bastante ampla. Em relação à transformação fantasmagórica, Karl Marx, no livro I do Capital, nos dá exemplos de como a realidade e os objetos que a compõem podem se tornar estranhos em um processo de fetichização. A palavra empregada não é fortuita, pois está relacionada com um enfeitiçamento e com a transformação dos objetos reconhecíveis no seu mistério. Examinando a mercadoria, Marx mostra como ela esconde e sublima o material e o trabalho, satisfazendo as necessidades humanas; ela existe sob duplo aspecto: o valor-de-uso, condicionado a questão mais imediata da matéria, e o valor-de-troca, referindo à questão social, iguala o trabalho empregado em uma abstraçãocristalizada e a necessidade também em pura fantasia, ambos convertidos em valores monetários. Para ser mais claro, Marx explica que 20 metros de linho não são mais que 20 metros de linho, uma determinada quantidade do valor-de-uso. Para entender o valor-de-troca, o linho deve se contrapor a outro material começando aqui seu processo de fantasmagorização, já que a forma natural ou física da mercadoria torna-se forma de valor. As propriedades das coisas agora parecem que não se originam dela, mas da sua relação com as outras e logo mais será materializada em dinheiro. O valor do objeto, a madeira, por exemplo, assume expressão fora dela, encarnada em uma mesa, como num desdobramento de dimensões: "Logo que se revela mercadoria, transforma-se em algo ao mesmo tempo perceptível e impalpável. Além de estar com os pés no chão, firma sua posição perante outra mercadoria e expande as ideias fixas de sua cabeça de madeira, fenômeno mais fantástico do que se dançasse por iniciativa própria". (MARX, 2014, p.93) O mistério do fenômeno da transformação da madeira em mesa está no encobrimento das características sociais, como o trabalho dos homens, apresentadas como inerente ao produto; esse último se apresenta de modo inovador, fantástico, mas é fruto da dinâmica social, sobretudo que diz respeitoà transformação econômica capitalista: A concepção totalmente defeituosa a respeito dessa metamorfose decorre, pondo-se de lado ideias obscuras e confusas sobre valor, da mudança de forma de qualquer mercadoria se realizar pela troca de duas mercadorias, uma mercadoria comum e a mercadoria dinheiro. Atentando-se apenas para esse aspecto material, para a troca da mercadoria por dinheiro, deixase de ver o que deve ser visto, isto é, o que se passa com a forma (...) As mercadorias, tal como são, entram no processo de troca. Este produz uma bifurcação da mercadoria em mercadoria e dinheiro, estabelecendo-se entre estes uma oposição externa em que se patenteia a oposição, imanente a oposição entre valor-de-uso e valor. Na oposição externa, as mercadorias se confrontam, como valor-de-uso, com dinheiro, como valores de troca. Mas ambos os lados que se confrontam são mercadorias, isto é, unidades de valor-de-uso e de valor (MARX, 2014, p.131-132) Marx percebe o fantástico no processo de instauração de valor-de-troca em que ocorre a metamorfose entre mercadoria -dinheiro -mercadoria. Além disso, discute os papeis do sujeito que são vendedores e compradores, ao mesmo tempo. Nesse aspecto, vê-se claramente que a dimensão diferenciada, isto é, fantasmagórica,provém justamente das relações com a realidade, não sendo supra ou ahistóricas. De modo semelhante, o formalista russo, ainda que menos preocupado com a questão econômica, também nota que a ressignificação dos objetos para uma dimensão de estranhamento nasce do próprio objeto em sua relação de interlocução e de uso. Assim, ambos assumem que o fantástico nasça da dimensão real, como se esse fosse um de seus aspectos. Entretanto, há uma diferença nos raciocínios: enquanto Chklovskyvê no estranhamento fantástico a potencialidade da arte; para Marx, esse fantástico pode levar ao fetiche, isto é potencializadore ao mesmo tempo desmerecedor para a estética. Chklovsky é incisivo: o objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da singularização do objeto; é o procedimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção (CHKLOVSKY, 1973, p.45). Indo mais adiante, pode-se dizer que, para o formalista russo, o ato de percepção na arte é um fim em si mesmo; deve-se extrapolar o uso comum e revelar o fantástico como uma função básica da estética. Esse fantástico, que nasce do próprio objeto real, deve ser representado e o que interessa é o devir de experimentalização. Marx, um pouco mais desconfiado do efeitofantástico, diz que ele só importa quando serve como reflexão da realidade socio-histórica. Assim, ele não é um fim em si mesmo: a necessidade de experimentação do objeto é criada pela percepção dele. O objeto de arte -como qualquer outro produtocria um público capaz de compreender a arte e de fruir a sua beleza. Portanto, a produção não produz somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto (MARX, 2014, p.137). Nesse aspecto, a arte e seus procedimentos fantásticos só tem sentido na dinâmica social. Isto posto, a arte autêntica tem, no fantástico,a representação do fetiche e sua crítica. Lukács, estudioso marxista, define a arte como uma forma particular de descrição da realidade, mesmo que venha o fazer pelo procedimento que pareça irrealista. Objetivamente, a arte sempre faz parte da vida social; uma arte incompreensível aos outros só seria possível num hospício (LUKACS, 2010, p.270). Em relação ao fantástico, Lukacs, baseando nos preceitos de Marx, é enfático ao dizer que,na medida em que o capitalismo foi se estendendo a todos os domínios, toda arte foi subordinada, tanto a obra-prima quanto a mais convencional vanguarda. O que importa, nesse contexto, é a perspectiva reflexiva, o que se espera de uma obra autêntica: Trata-se de uma grande tendência social que se realiza por caminhos intrincados, talvez de um modo muito diferente daquele que imaginamos. Se quisermos representar verdadeiramente as ações e os pensamentos dos homens, constataremos que eles tendem a desembocar, a se projetar no futuro, em porções tão mais intensas quanto mais forem ricos os conteúdos (...) Marx afirmou que um passo real do movimento vale mais do que o programa melhor formulado. A literatura vale algo -e, então, vale muito -precisamente quando traduz para forma um passo real dado pelo movimento. (LUKACS, 2010, p.289-291) Crônica da casa Assassinada é uma obra, cuja dimensão misteriosa e fantástica salta aos olhos. Aliás, toda narração parece funcionar em direção a fomentar o clima de mistério. A fortuna crítica da obra cardosiana reconhece isso e tende a interpretação em direção ao estranhamento, como coloca Chklovsky e a fantasmagoria fetichizante, como coloca Marx. Essas são duas fortes tendências ao interpretar o mal que acomete toda família Menezes. Alfredo Bosi (1997, p.628), por exemplo, reconhece no romance uma postura fantasmagórica na abordagem de temas ontológicos. Ele percebe, na composição romanesca, uma combinação de enigma e realidade de modo a incorporar as vanguardas ao discurso local. Assim, há uma ânsia progressista saturada de valorações morais e imagens religiosas derivadas da tradição. O crítico revela, então, uma combinação fantástica e realista a impor uma tensão no enredo e nos fragmentos dispersivos e dissonantes da trama. Otavio de Faria(1997, p.659) analisa o romance cardosiano, destacando nele o trágico, explicitando a dimensão do destino humano sem deixar de notar que essa condição espiritual está dentro da materialística, revelada pelo progresso histórico nacional. Pode-se dizerque ambos os críticos reconhecem a configuração da realidade e de algo estranho, misterioso e fantástico na obra. Aliás, esses estudiosos revelam que essas instâncias são inseparáveis na fatura. Quanto mais se revela o mistério mais se aprofunda na realidade e vice-versa. Além disso, a obra cardosiana consegue sempre fomentar, no conhecido enredo, experimentações que fazem o leitor se surpreender a cada nova leitura. Misteriosa, ela sempre encobre qualquer definição, prevalecendo o enigma: tudo, na sua natureza, naturalmente rica e vária, antinômica e por vezes dialética, tudo é elemento de criação, de coordenação do seu mundo de romancista. Nenhuma dissonância: o homem que sente o problema do destino eternamente adverso, da luta entre o amor e o ódio, da vitória terrena do Mal sobre o Bem, é o mesmo homem que escreve e compõe, que transforma e refunde, que cria enfim o seu mundo de ficção (FARIA, 1997, p. 659). Na obra, o destino humano é fruto de ações, mas, sobretudo, de uma atmosfera opressora e amaldiçoada. A narrativa nos oferece uma visão de mundo "eminentemente trágico e eminentemente desesperado"; os personagens estão em degredo e há "um furor os anima, um destino os condiciona". Além disso, pouco ou quase nada se pode afirmar como verdade dos fatos narrados: Não se sabe se houve assassinato ou suicídio na casa envolvendo Alberto; Valdo teria sido vítima de seu irmão Demétrio?; a paternidade de André e o caso de incesto permanecem em suspensão. Estranhamento e fantasmagoria estão na base de configuração da obra, além da representação de um contexto histórico decadente. # II. O Mistério Como Parte do Concreto: Ruína e Decadência nas Crônica da Casa Assassinada Todo fato relatado na narrativa fica em latência durante a leitura; não se pode confiar nas cartas, nos depoimentos e nos diários. Eles se contradizem, além do mais, foram repaginados por padre Justino a pedido de um interlocutor oculto. Por de trás de tudo, o que existe como motivador de toda dinâmica do enredo é o cenário de decadência construído não só pela derrocada da família patriarcal dos Menezes, mas também das personagens que a compõe. Interessante que esse aspecto é encoberto pelo enfeitiçamentoe pelo mistério. Afantasmagoria está na ênfase da existência de um "Mal sobrenatural" que paira sobre a Casa. Esse destino amaldiçoado pode ser entendido como o processo de modernização que está varrendo do mapa aquele tipo de família no interior das Minas Gerais: [...] a Chácara dos Meneses, apesar de não estar explicitamente enunciado, insere-se num tempo histórico bem definido: as primeiras décadas do século XX, quando se inicia um intenso processo de industrialização no Brasil e Minas sente novamente o problema da decadência. Todo o movimento econômico-social transfere-se do campo para a cidade. Inicia-se um grande êxodo que esvazia as regiões rurais, levando-as quase à extinção (BARROS, 1999, p. 80). Para Nunes (1997, p 262), a oligarquia que insiste em se manter no interior dos estados seria o resultado de uma sobrevivência tradicionalista solapada pelo processo de modernização: "Pensemos na industrialização. Ela cria novas oportunidades para coalizões políticas assim como novos tipos de conflitos; oferece novas bases para a competição política, mina o poder das elites fundiárias e torna impossível para elas governar de forma oligárquica". Esse é o pano de fundo da narrativa e o verdadeiro motivador para o desenvolvimento do fantástico. Aliás, o desenvolvimento do capitalismo proporciona a criação de uma aura progressita e misteriosa que parece obnubilar às questões reais, como a tentativa de apagamento de um sistema arcaico que agora aparece esfumaçado e combinado com a modernização. Na obra cardosiana, a discussão histórica está nas entrelinhas e parece não ser central na figuração dramática, sendo destaque as intrigas entre os personagens, as divergências entre os relatos, depoimentos e cartas. O conflito parece estar restrito aos pontos de vistas e perspectivas; pouca são as ênfases nas diferentes ordens sociais, culminando no poderio místico dos Menezes. Assim, a totalidade das forças sociais e históricaspouco se coloca e a questão central é o fragmentário das percepções e não o todo. Ao dizer da família Menezes, desaparecem ou diminuem de sua representação os fenômenos da vida que não estão em correlação com essa áurea mística por ela passada. Entretanto, ainda que ocultada, é essa dinâmica histórica da ruína que motiva toda a estética do livro. De modo alegórico, todas as partes permitem acessar a dinâmica histórica que apontam para a realidade e para o fantástico. O encaminhamento da narrativa favorece o fantástico na medida em que permanecem dúvidas e incertezas nos relatos dos personagens. Todos vagueiam sobre os fatos e existe muita impressão sem certezas. A confusão na rememoração é frequente: "cheguei a formar uma figura mais ou menos inteira, mas longe de corresponder à realidade" (CARDOSO, 2008, p. 317). Os narradores são réus confessos da dúvida: "não me lembraria de todas, tanto elas já se # Tentando recompor a realidade, os personagens estão longe de correspondê-la. Nesse sentido, pouco interessa os fatos, mas a construção do mistério. Tudo se esfumaça inclusive o aspecto histórico, que surge como um dilema de memória, da lembrança e de algo universal. Há um isolamento, uma fragmentação, uma construção dilacerada que dificulta a exposição clara da dramatização das razões sociais e históricas. Ana escreve um "mar de despojos" (CARDOSO, 2008, p.308) tentando verificar se tudo o que lhe chama atenção realmente existiu. Ela tenta organizar o relato até mesmo para se entender e deixar desaguar seu ódio e sofrimento por uma amor que não volta mais. Faz-se necessário dar uma ordem para a perturbação provocada tanto pela presença de Nina, quanto pela morte de Alberto, oportunidade única de expressão dos afetos canhestros de Ana. Atenta a superposição do tempo, ela se recolhe sobre si mesma num processo de entendimento da culpa, revelando a ruína do seu próprio eu. Assim como o corpo de Nina, a chácara está dilacerada, está também a consciência de Ana. Há uma teia melancólica e real que puxa a todos os Meneses, como observa Betty, a governanta: "Um pouco de fantasia, aliás, não faz mal a esta casa. Ela sofre de realidade demais." (CARDOSO, 2008, p.137). A afirmativa é importante na medida em que todo esse mistério ali presente provém da realidade degradada. Trata-se de uma maneira particular de representação que parece se afastar do real, mas, nesse afastamento, acaba por aprofundá-lo ainda mais. Toda aura misteriosa e de suspensão advém de uma materialidade. Ligado ao grupo de intelectuais católicos, formados por Cornélio Pena, Jorge de Lima, Murilo Mendes dentre outros entre as décadas de 30 e 40, Lucio Cardoso discutia a renovação espiritualista, a transcendência, mas procedia em uma literatura política, como afirma Mario de Andrade: "compreendi perfeitamente a sua finalidade (no livro) de repor o espiritual dentro da materialística literatura de romance que estamos fazendo agora no Brasil. Deus voltou a se mover sobre a face das águas" (Apud CARELLI, 1997, p. 34). Nessa perspectiva, pode-se dizer que a configuração das Crônica da casa assassinada demonstra uma profunda preocupação ética em relação às possibilidades da linguagem e à historicidade da arte (BRAYNER, 1997, p.717). Na narrativa, através da discussão psicológica, se colocam questões importantes para o entendimento do fantástico e da situação nacional. A discussão da moral religiosa tem vistas a deflagrar a ambiguidade da formação ética burguesa, apresentando uma crítica à sociedade mineira. Ainda que a obra pareça representar a falência do ser humano universal, genérico e comum, há muito de típico a dispor de uma sociedade específica. Deste modo, o que salta aos olhos é uma realidade esfumaçada que parece dizer da condição decadente humana frente às irreverências do destino, mas, à contrapelo, mantem-se a dialética no esboço de uma realidade particular, mineira e periférica. Deste modo, o fenômeno estético, através da configuração dos personagens e da narrativa, oferece uma abordagem do trágico remetendo a aspectos metafísicos e ontológicos ligados ao destino do homem, também esclarece quanto a uma nova tendência histórica e estética da desagregação vinculadas à situação da arte no século XX, mas não perde nunca o seu dialogismo com a realidade social e histórica. Basta lembrar-se das caracterizações do romance moderno, colocadas por Anatol Rosenfeld, para entender que o passado histórico é tão importante quanto o esfumaçar do futuro. Toda eternidade proporcionada pela narrativa não deixa de estar vinculada ao mundo. Ele entra na fatura como matéria ainda que pareça subsumido: Importa, portanto, elevar a nova visão a uma expressão adequada. Trata-se pois de transmitir a nova experiência como experiência verdadeira, capaz de ser vivida pelo leitor. Não basta apenas falar tematicamente sobre a precariedade da situação do indivíduo na nossa época e na nossa sociedade; não basta apenas dizer que o indivíduo hoje se sente ameaçado de fora e de dento, ameaçado de fora pelo mundo anônimo e social e de dentro pelas formas anônimas do inconsciente. Sem dúvida, antigamente o homem também estava ameaçado por forças anônimas mas só agora ele o sabe, só agora ele está consciente do inconsciente, se assim se pode dizer. O homem agora tem nova consciência a respeito disso. Sabe que há no seu íntimo, forças anônimas que influem no seu comportamento, que invadem seu próprio ego racional, manifestando-se de uma maneira as vezes arrasadora. Ao mesmo tempo vê-se o homem ameaçado de fora pela engrenagem gigantesca do mundo moderno. Ora não basta apenas discorrer sobre isso, não basta, por exemplo, discorrer sobre a obscuridade e impenetrabilidade do mundo moderno, como agora nós o vemos. Não basta tudo isso para que o leitor tome apenas conhecimento disto, aprendendo como se aprende 2x2 é 4. O conhecimento, neste caso, não transformaria em experiência, seria apenas um conhecimento a mais. O artista tem que trabalhar em um nível superior e profundo para que esse tema se transforme em experiência de vida. (ROSENFELD, 1994, p.43-44) Nesse aspecto, o elemento fantástico é pungente e se revela incorporado à obra na discussão estética do real na medida em que faz pensar na escassez de vida autêntica ou de qualquer projeto futuro. É a dizimação e ausência de solução. Seja na tradição da família ou na novidade incorporada por Nina, tudo fracassa. O trágico no romance funciona como um modo de mimetizar o alheamento do indivíduo na sociedade moderna. Perceba que não estamos aqui discutindo a inscrição da vida pessoal de Lúcio Cardoso na construção dos personagens, como faz Fausto Cunha, ao entender que o autor mineiro busca libertar-se dos dogmatismos, sendo anticanônico: "contra a família mineira. Contra a literatura mineira. Contra o jesuitismo mineiro. Contra a religião mineira. Contra a concepção de vida mineira. Contra a fábula mineira" (apud CARDOSO, 2008, p.9).Não é isso; embora muito do testemunho pessoal esteja presente na narrativa. A ideia que pretendemos é discutir como que a narrativa apresenta o fantástico como parte da falência do homem em geral mostrando sua limitação diante da existência. Aqui, o aspecto histórico é incisivo revelando que há uma ordem oculta no mundo, uma composição no entrelaçamento confuso de suas linhas. Mas é a ordem indefinível de um tapete ou de uma dança: parece impossível interpretar seu sentido e todavia mais impossível renunciar a uma interpretação (...), o trágico que ganha expressão na história não é um trágico inteiramente puro, e nenhuma técnica dramática pode encobrir essa dissonância metafísica. (LUKÁCS, 2015, p. 265-72). Ainda que os destinos individuais estejam representados, eles nos ajudam a entender a totalidade, que embora fragmentária, pode ser recuperada. Assim como ela, estão também os conflitos históricos que aparecem obnubilados na narrativa. A chegada de Nina e o impacto frente ao patriarcalismo dos Menezes gera uma série de mistérios como se uma profecia fosse sendo cumprida. Timoteo esperava por aquele momento em que a família iria à ruína o que para ele era libertação de dogmas e condutas: Quantas e quantas vezes, absorvida num afazer mecânico, pensara no mistério dessa existência, aventura e conjeturas que só poderiam ser absurdas. Diziam tanta coisa, sussurrava-se ainda mais e, ao certo, sabia-se tão pouco a respeito daquela bizarra criatura! Graças ao papel privilegiado que representava junto à família, pude perceber muitas coisas, e adaptá-las ao que supunha. Assim, cheguei a formar uma figura mais ou menos inteira, mas longe de corresponder à realidade. Dona Nina escapava sempre a qualquer conjetura, do mesmo modo como em sua presença jamais se encontrava o que fosse firme e francamente delineado. Seria um bem, seria um mal? O certo é que ela sempre despertava interesse, e não raras vezes paixão. (CARDOSO, 2008, p. # 317) O desenrolar da história revela o apodrecimento de Nina, acometida por um câncer, e também da família Menezes, abalada pela falta de posses e pela derrocada moral no episódio da chegada do Barão. Tudo isso é revelado como um fatalismo misterioso e fantástico: Como se assistisse a? demonstracaõ de um espeta?ulo ma?ico, ia revendo aquele ambiente taõ caracteri?tico de fami?ia, com seus pesados moveis de vinhatico ou de jacaranda, de qualidade antiga, e que denunciavam um passado ilustre, geraco?s de Meneses talvez mais singelos e mais calmos; agora, uma espe?ie de desordem, de relaxamento, abastardava aquelas qualidades primaciais. Mesmo assim era fa?il perceber o que haviam sido, esses nobres da roca, com seus cristais que brilhavam mansamente na sombra, suas pratas semi-empoeiradas que atestavam o esplendor esvanecido, seus marfins e suas opalinas -ah, respiravase ali conforto, naõ havia duvida, mas era apenas uma sobrevivencia de coisas idas. Dir-se-ia, ante esse mundo que se ia desagregando, que um mal oculto o roía, como um tumor latente em suas entranhas. (CARDOSO, 2008, p.130) Os vizinhos se achegavam e era eles que denunciavam esse fim, como em pleno campo os urubus denunciavam a res que ainda ano acabou de morrer. E também dento de mim como se obedecesse a esse mesmo ritmo de destruição, alguma coisa se desfazia. Em vão escutava eu vozes que reabilitavam um sistema de vida irremediavelmente comprometido (Demétrio, seu modo de olhar, de exprimir-se e sobrepairando acima de tudo aquela noção de família...) e sopravam ditames de uma autoridade que não existe mais. Era tão forte essa sensação de desabamento, em mim o vácuo se fazia com intensidade, que eu chegava mesmo a me acreditar ante a iminência de um desastre físico-era possível que realmente a chácara ruísse, viesse ao chão e nos arrastasse no seu vórtice pó. (CARDOSO, 2008, p.451) Esse relato do fim é construído em um tom apocalíptico, como se tentasse dar solenidade aquela família e a figura de Nina. O mistério permanece, mas o interessante é entender que ele se desprende da realidade que já anuncia o engendramento de um progresso que solapa aquelas famílias patriarcais mineiras. Até o baronato é descrito como decadente: o aparecimento do barão, figura emblemática da aristocracia, traz esperanças à Demetrio e à família Menezes. Ele daria a eles o respeito, já cambiante, e talvez as glórias mesmo sem parâmetro econômico. O que se destaca, a partir do luto, é a pilheria da decadência do próprio barão. O riso é inevitável mostrando a demência daquela figura e sua sovinice. A dimensão fantástica opera, portanto, com os aspectos trágico e cômico afim de revelar o assentamento de um progresso nacional que insiste em conservar o atraso, revelando a decadência: Majestosamente tanto quanto lhe era possível: pequeno, como já disse, gordo, o embornal atrapalhava-lhe os movimentos, e ele defendia o objeto como se contivesse Volume XIX Issue XII Version I 19 ( A ) algo de muito precioso. Inclinando a cabeça ora aqui, ora ali, num cumprimento seco e circunstancial, foi sentar-se afinal no fundo da sala, bem distante do corpo exposto, e numa banqueta de veludo ali disposta especialmente para a ocasião. Seus pés, calçados com botinas de cano alto, ficaram suspensos no ar, balançando. Como se olhasse inquisidoramente em torno -um olhar de português rude e disposto a chalaça brutal -os presentes sentiram que deveriam se ocupar de outra coisa, e voltaram a se dispersar pela sala, alguns compondo uma fila contemplativa diante do cadáver. Aí o Barão, que possivelmente só esperava por esta oportunidade, retirou o embornal do braço, abriu-o e, metendo lá a mão, retirou de dentro uma comida qualquer -talvez uma guloseima. (Por esta época já se achava ele dominado pelo demônio da gulodice, que mais tarde o arrebataria depois de uma tão cruel agonia; não podia separar-se daquele saco de alimento e, onde que estivesse, em visita ou em casa, estava sempre mastigando. Flácido, seus olhos haviam adotado um brilho inquieto, sonso, de alguém que se sente espiado a cometer uma falta grave e que, por isto mesmo, está sempre a reclamar misericórdia. E todo ele já começava a dessorar essa coisa açucarada que lhe banhava o rosto, e que lhe emprestava um aspecto tão repugnante, de presunto untado, como se por todos os poros filtrasse a essência dos alimentos que ingeria laboriosa e constantemente.) De longe, mal ousando furtivos olhares (diziam-no senhor da mais ricas terras de Portugal...), as pessoas comentavam: "É o Senhor Barão que está comendo", e não havia nisto nenhum escândalo, como se fosse muito próprio da raça dos barões carregarem para os velórios um embornal de gulodices. (...) todos já se limitavam tranqüilamente a olhar o Barão de longe, esfarinhando uma empada entre os dedos (...) (CARDOSO, 2008, p.472-473) Crônica da Casa Assassinadadesenvolve uma linguagem em que é perceptível a mistura estilística entre a melancolia e o riso; isso tudo conjecturado sob a égide da decadência de uma sociedade em função da implementação da modernidade e da modernização nacional. A obra se afasta da fatura sociológica e panfletária, muitas vezes repetida nos romances dos anos 30, e aprofunda a representação de uma modernização conservadora brasileira por meio da questão intimista, da dramatização da tragicidade dos destinos humanos. Assim, a dissolução fragmentária remetendo ao fantasmagórico eao fantástico da narrativaconsegue recompor uma combinação riso e melancolia, mostrando a combinação de forças da modernidade, sobretudo no contexto periférico nacional. O fantástico faz parte da configuração da fatura; aliás, a mistura estilística entre o horror e o riso, isto é, através da mistura do trágico e do cômico, engendra a vertente fantástica a revelar os matizes da realidade. Essa aparece singularizada nos mistérios envolvendo personagens e objetos que compõe o enredo. Essa aura fantásticaproporciona a singularização e propicia ainda uma nova visada sobre o processo histórico, ainda que ele esteja esfumaçado e pouco aparente. A discussão histórica está presente por detrás desse acaso a determinar a ruína de todos inclusive de Nina e da Família Menezes. Como uma fantasmagoria, ela está ali e é produto do capitalismo que avança e também do processo de decadência. Atravésdos seres cindidos, entendemos a condição de degredo e "o nada como condição":"Não conseguiam se reestabelecer com o passado nem redimensionar com o futuro eles vivenciavam o abismo. Vivia como todo ser humano incerto do valor de suas armas" (CARDOSO, 2008, p.406).A derrocada humana embora pareça metafísica está intimamente associada à derrocada de um sistema econômico que busca sobreviver frente ao progresso. Através do fantástico e do mistério fantasmagórico, percebe-se que as alucinações dos personagens são com coisas reais, por exemplo, apontam para a condenação do moderno e das forças do progresso que vingariam independente do sistema arcaico familiar. Nem Nina nem Demétrio, o humano falece. O que fica são os novos tempos de urbanização que se misturam as ruínas da chácara, que sobrevive: A chácara dos Meneses foi das últimas a tombar, se bem que seu interior já houvesse sido saqueado pelo bando chefiado pelo famoso Chico Hera. (...) no entanto, para quem conhecia a crônica de Vila Velha, que vida ainda ressumava ela, pelas fendas abertas, pelas vigas à mostra, pela telhas tombadas, por tudo enfim que constituía seu esqueleto imóvel, tangido por tão recentes vibrações (CARDOSO, 2008, p.495) Toda uma vibração misteriosa é mantida e a discussão sobre o poder da família Menezes persiste, ainda que abalada frente ao progresso. Assim, há uma relação de tempos importantes entre o que a memória dos personagens guardajunto com o esquecimento. Para o crítico Denílson Lopes (LOPES, 1999), há na narrativa uma "sensibilidade melancólica e um adensamento do imaginário neo-barroco". É a consciência do ser cindido que busca o mito de uma idade de ouro perdida -no caso da fazenda, agora em ruínas, deixa mais explícita a melancolia. Essa surgiria no desagregamento da tradição, no esfacelamento de tudo.Crônica é a história do que já acabou e os personagens ainda buscam, no olhar retrospectivo, entender o que se foi. Para Adonias Filho (apud CARELLI, 1997, p.55), Crônica é como uma teia de desfalecimentos que geram uma tragédia total: "a tragédia surge aos pedaços para adquirir finalmente a projeção inteira". A arquitetura romanesca revela essa pujança do desespero desagregado. Nesse sentido, o texto parece a ruína absoluta. Nele, aparece muito do fantasmagórico, mas esses fragmentos muito ajudam a entender a dinamicidade totalizadora, pois a ruína é parte da história. A arquitetura da casa, os personagens e seus pertences representam o anjo alçado pelos ventos do presente ao mesmo tempo em que olha o que já se foi: Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso. (BENJAMIN, 1994, p.226) As ruínas da casae a melancolia dos personagensconstroemo fantástico que por sua vez revela a fantasmagoria da modernização, implementada junto ao atraso. O fantástico acaba por dar vida e aura poética a um processo cruel e fetichista. Nesse sentido, a arte se torna crítica e, para além do reconhecimento, oferece visão trágica sobre o progresso. Interessante é que o estranhamento é presente na obra e permite a construção do mistério e suspensão do enredo. Entretanto, essa técnica não é um fim em si mesma, ela se comporta como alegoria, evidenciando a totalidade do processo de modernização. Deste modo, o fantástico acaba por desvelar a realidade e mais que isso humaniza a fantasmagoria do processo de modernização, pois é capaz de criticá-la. Nesse sentido, a humanidade afirma-se na negação, à contrapelo, quando se desloca o sentido da representação e do que é representado. # III. Considerações Finais O romance cardosiano tem como técnica o uso de procedimentos antirrealistas no engendramento do mistério que prevalece no seu enredo. A crítica literária muito destacou os aspectos modernos da obra, sobretudo, no que diz respeito à incorporação das vanguardas e a configuração de uma nova narrativa, fragmentária e aludindoàalegorização. Diante dessas evidências, reforça-se a perspectiva de criar impacto, de estranhamento na representação do fantástico da obra. A cada leitura, o romance permite novo acesso ampliando a atmosfera mística. Nesse trabalho, tentamos mostrar que toda essa visão inovadora parte da dinâmica da realidade representada na obra não de modo explícito, ainda sim essa é o motivador de toda derrocada dos homens e da família Menezes. Discutimos, então, que o processo de modernização presente como pano de fundo proporciona a ruína e a fantasmagoria de uma ordem socialem derrocada e de todo um clã. Esse desenvolvimento progressista permitiu, além da criação do fantástico, em uma imagem dialética entre o que foi e já não mais é, o entendimento da fantasmagoria do desenvolvimento do capital. Interessante é que a representação de um processo fetichizante, adentra ainda mais a conhecer a realidade, proporcionando a humanização. A configuração do fantástico em Crônica da Casa Assassinada, para além de uma técnica de mistério, configurou uma forma de engendramento para conhecer a realidade. Os espectros da casa permitiram entender um processo de modernização conservadora típico da realidade brasileira. Além de permitir esse reconhecimento, proporcionaram também uma visão diferenciada sobre a dinâmica da realidade, aderindo a um posicionamento crítico. Nesse aspecto, ocorre a humanização pelo fantástico e entendemos o papel da arte como um modo de mimesis autêntica, em que, confrontando a realidade social-histórica e a ficção, cria-se uma forma de poiese, que faz com que a elaboração da realidade na literatura contribua para a ampliação do sentido do "real". Nota-se que a percepção artística ocorre pela experimentação da forma da obra, a qual não é um invólucro, sem referente, mas uma integridade dinâmica e concreta que tem em si mesma um conteúdo fora de toda correlação. (EIKHENBAUM, 1973, p.13). Nesse aspecto, percebe-se que a forma literária tem natureza compósita e ao mesmo tempo em que possui caráter técnico, elaborando procedimentos narrativos do romance, é perpassada pelas relações históricas e sociais. A forma do romance pode ser vista como uma "forma de formas", um complexo heterogêneo capaz de representar a multiplicidade das relações históricosociais. Isso significa que a configuração depende da objetividade e historicidade das formas sociais. Assim, a obra literária é o mundo imaginário que se constrói sob a lógica de um aspecto real x, o qual é um momento e lugar determinado da totalidade social. (SCHWARZ, 1987, p. 143). 17Volume XIX Issue XII Version I( A ) © 2019 Global Journals * Crônica da casa assassinada: uma sobrevivência de coisas idas MCBarros Revista Múltipla 4 1999 * Obras escolhidas.Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7ed. São Paulo: Brasiliense WBenjamin 1994 * Um grande folhetim tumultuosamente filosófico ABosi São Paulo: ALLCA XX LucioCardoso Da Casa Assassinada MarioEdição Crítica De Carelli 1997 * A construção narrativa: uma gigantesca espiral colorida SBrayner São Paulo: ALLCA XX LucioCardoso Da Casa Assassinada MarioEdição Crítica De Carelli 1997 * Crônica da Casa Assassinada. 7ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira LúcioCardoso 2008 * A arte como procedimento VChklovsky TOLEDO, Dionísio Oliveira de (org.) Teoria da * A teoria do método formal BEikhenbaum Teoria da Literatura-formalistas russos. 2.ed. Porto Alegre: Editora Globo DionísioToledo Oliveira De 1973 * Lúcio Cardoso OFaria De 2.ed. São Paulo: ALLCA XX 1996 * Nós os mortos: melancolia e Neo-Barroco DLopes 1999 Rio de Janeiro: Sette Letras * GLukàcs Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo 2011 * Marxismo e teoria da literatura. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular GLukács 2010 * Regis Barbosa.2 ed. São Paulo: Expressão Popular KMarx Trad 2014 * A gramática política do Brasil: clientelismo e insulamento burocrático ENunes Rio de Janeiro: J. Zahar 1997 * Kafka e o romance moderno ARosenfeld _Letras e Leituras. São Paulo: Perspectiva 1994 * Que horas são RSchwarz São Paulo: Cia das Letras 1987